A ‘crise no Golfo’ – compreendendo as raízes

Catar, futura sede da Copa do Mundo, vive uma ofensiva capitaneada pela Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e o Egito.

GIlbert Achcar 1 set 2017, 16:57

Para entender a campanha violenta lançada pelos governos da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, do Bahrein e do Egito contra o Catar, é necessário olhar além das trivialidades, como o resgate que os catarianos supostamente pagaram no Iraque (para grupos xiitas, a fim de libertar mais de vinte vendedores ambulantes que costumam caçar no território iraquiano) e acusações de que o Catar apoia o terrorismo. Tais acusações perdem credibilidade porque são feitas por atores que fizeram exatamente isso por décadas. Devemos voltar ao contexto antes da Primavera árabe e como este foi afetado pelo Grande Levante.

Durante o reinado de Emir Hamad Ben Khalifa Al Thani, o emirado de Catar adotou uma abordagem que era muito diferente daquela adotada pelo Kuwait depois que este declarou sua independência da Grã-Bretanha, em junho de 1961. A declaração indignou a República do Iraque, a qual demandava que o emirado lhe fosse devolvido como parte de seu território. Mas o Kuwait tirou vantagem das tensões entre o Iraque – liderado por Abd el-Karim Qasim (julho de 1958 e fevereiro de 1963) – e o Egito de Gamal Abdel Nasser para conseguir que os países árabes aceitassem a independência do Kuwait, que se beneficiasse, sobretudo, da proteção da Grã-Bretanha. Para desencorajar as ambições cultivadas por sua vizinhança iraquiana, o Kuwait subsequentemente adotou uma política de neutralidade árabe, mantendo boas relações com os dois polos naquilo que era chamado de “a Guerra Fria Árabe”, isto é, entre Egito e o reino saudita.

Do mesmo modo, como é bem sabido, o Catar historicamente teve um relacionamento tenso com o seu vizinho saudita, especialmente porque declarou a independência da Grã-Bretanha em 1971. Depois de assumir o poder, Emir Hamad prosseguiu uma política que buscava compensar o pequeno tamanho do emirado através do fortalecimento de seus laços com os dois eixos principais do conflito regional à medida que eles surgiram após o grande desdobramento das tropas dos EUA no Golfo: os Estados Unidos e a República do Irã. O Catar também conseguiu simultaneamente hospedar (e financiar) a base aérea regional mais importante dos Estados Unidos (Al-Udeid) e cultivar relações cordiais com o Irã e o Hezbollah libanês. A política de boas relações com forças opostas também se manifestou no estabelecimento de relações diplomáticas com Israel, ao mesmo tempo que apoiava o Hamas.

Durante o reinado de Emir Hamad, entretanto, Catar não se limitou a cultivar boas relações com forças diferentes como fez o Kuwait, que permaneceu neutro e passivo. Catar também usou sua considerável riqueza para desempenhar um ativo papel na política regional, notavelmente por patrocinar a Irmandade Muçulmana. O reino saudita, que patrocinava a Irmandade desde sua fundação em 1928, cancelou esse apoio, especialmente por causa de sua oposição à intervenção estadunidense na crise entre Kuwait e o Iraque em 1990. O peso do papel político do Catar aumentou significativamente com o estabelecimento da rede de televisão Al Jazeera, que encontrou um amplo eco entre as populações árabes por dar voz às vozes árabes da oposição, em particular a Irmandade Muçulmana.

O curso político do Catar face às revoltas de 2011

Quando o vulcão do Grande Levante Árabe entrou em erupção em 2011, o Catar conseguiu desempenhar um papel importante por causa do patrocínio à Irmandade Mução e do papel do canal Al Jazeera. Como resultado, os dois pólos de conflito que dominaram o mundo árabe desde então – os velhos regimes (no sentido dos estabelecidos) e a oposição fundamentalista islâmica liderada pela Fraternidade Muçulmana – também ganharam apoio do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC, por sua sigla em inglês). Enquanto a Arábia Saudita apoiava os velhos regimes por toda a região – com a exceção da Líba onde permaneceu neutra e a Síria onde elementos sectários (no sentido religioso) levaram a uma aliança entre o regime de Bashar Al-Assad e o Irã -, o Catar apoiava as revoltas, especialmente onde a Fraternidade Muçulmana estava envolvida, exceto no caso de outro membro do GCC, Bahrein, por razões óbvias (um levante popular ocorreu no Bahrein em fevereiro de 2011 e, desde então, a repressão foi incessante). O conflito entre o emirado e o reino tornou-se evidente desde o início da Primavera Árabe, o apoio do Catar à revolta tunisiana contrastou com o asilo político garantido pela Arábia Saudita para o presidente deposto da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali.

O governo Obama viu o Catar como um meio para evitar o perigo de uma radicalização do levante árabe que ameaçaria os interesses americanos. Os Estados Unidos, portanto, apostaram nos dois lados, às vezes apoiando os velhos regimes com os sauditas (como no Bahrein) e às vezes tentando conter o levante junto com o Catar através da Irmandade Muçulmana e seus aliados (como na Tunísia e no Egito). Mas o papel do Catar ao encorajar Washington para adotar uma política de sedução em relação aos levantes despertou a indignação da Arábia Saudita e escandalizou os Emirados Árabes Unidos, que designaram a Fraternidade Muçulmana como inimigo público número 1. A pressão exercida pelos dois países do Golfo intensificou-se quando a aposta na Fraternidade Muçulmana sofreu um revés: em outras palavras, quando o Presidente Mohammed Morsi foi derrubado (em julho de 2013) pelo exército egípcio e a Fraternidade Muçulmana foi violentamente reprimida. Foi durante esse período que Emir Hamad decidiu renunciar em favor de seu filho Tamim, o atual; a pressão do Golfo atingiu seu primeiro pico em 2014, ao forçar o novo emir a mudar o curso.

Após esse pico, parecia que o conflito do Golfo havia chegado ao fim. Mas o acordo dos três estados do Golfo para apoiar a oposição síria contra o regime de Assad tensionou as relações entre o Catar (e com ele a Irmandade Muçulmana) e o Irã. Mais tarde, o Catar participou da campanha militar contra a aliança estabelecida entre Ali Abdullah Saleh (no poder de 1990 a 2012) e os Houthis no Iêmen. Isto foi no contexto da ascensão de um novo rei ao trono saudita, o que parecia demonstrar que era possível um acordo entre os membros do GCC. Esta tendência foi reforçada pela busca da Arábia Saudita por um momento de consenso sunita contra o Irã, incluindo a Fraternidade Muçulmana. Isso coincidiu com a tensão entre Riade e Cairo. Este curso correspondia perfeitamente com a política do governo Obama.

No entanto, a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos modificou a equação. O novo presidente é favorável a uma política de confronto e oposição à mudança e à revolução na região árabe. Ele também é muito hostil ao Irã e está se definindo como um amigo íntimo de Israel. De acordo com uma correspondência de seu embaixador para Washington, alguns de seus conselheiros principais querem colocar a Fraternidade Muçulmana na lista de grupos terroristas, em concordância neste ponto com os Emirados Árabes Unidos. Esta mudança fundamental na equação levou os Emirados Árabes Unidos a se reconciliarem com al-Sissi no Egito. Juntos, acompanhados pelos emirados e pelo Bahrein, lançaram o atual ataque frenético sobre o Catar com o objetivo de impor uma mudança radical em sua política.

Este último episódio reflete quase completamente o recuo do Grande Levante Árabe e o contra-ataque lançado pelos antigos regimes em toda a região, apoiado na maioria dos países pelo eixo do Golfo e pelo Irã na Síria e no Iêmen. Mas uma nova onda de revolução inevitavelmente surgirá mais cedo ou mais tarde (e seus sinais de alerta já estão visíveis no Marrocos e na Tunísia). Quando ela explodir, ninguém será capaz de conter, e Riade e Abu Dhabi podem muito bem se arrepender de ter eliminado o papel do Qatar neste domínio.

Em 20 de junho de 2017, numa coletiva de imprensa do porta-voz do Departamento de Estado, Heather Nauert, o governo Trump ‘duvida’ das razões dadas pelas Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e seus aliados, principalmente no que diz respeito a um suposto “apoio ao Terrorismo “do Catar, que desencadeou um grave bloqueio aéreo e naval. Foi anunciada uma mudança de atitude do governo dos Eua? Como Al Jazeera informa em inglês, seria imprudente esquecer que os Estados Unidos tem a base militar de Al-Udeid. É o lar de mais de 100 aviões operacionais e mais 11.000 militares estadunidenses e aliados. A BBC, em 15 de junho de 2017, anunciou a compra pelo Qatar dos Estados Unidos de quinze aviões de combate F-15 por uma soma de 12 bilhões de dólares. Um pouco mais que para os vendedores ambulantes. O embaixador do Catar nos Estados Unidos, Meshal Hamad al-Thani, deu as boas-vindas às declarações do Departamento de Estado, resumindo num tweet: “Confiamos na capacidade dos Estados Unidos para resolver esta crise”.

(Artigo originalmente publicado no International Viewpoint.)


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