Onde andará Caio Fernando Abreu?
No dia que marca o nascimento do artista publicamos artigo que discute o legado da obra riquíssima do escritor gaúcho.
Este pequeno artigo presta uma homenagem a um dos maiores escritores gaúchos.
Recentemente, uma das notícias que ganhou destaque na mídia foi o quanto as citações — nem todas elas verdadeiras — de trechos de obras de Caio Fernando Abreu tinham se multiplicado nas redes sociais. Chama atenção duas coisas: como um escritor falecido no início dos anos 90, portanto distante das tecnologias de rede iria ganhar tal amplitude nos novos formatos de comunicação? E para além disso, atrás das citações, algumas efêmeras como a temporalidade da maior parte da leitura nas redes sociais, ainda não se conhece a obra densa e profunda de Caio F. como um todo.
Uma obra riquíssima, que pode ser apreendida como um complexo e atraente quebra-cabeças, onde a sofisticação e a linguagem popular vão sendo costuradas, num processo de clara identificação com o tempo partido da segunda metade do século XX e com o desencanto com o qual muitas gerações encararam sua própria subjetividade.
Hoje completam vinte anos da morte de Caio F. Sua última morada, a casa tranquila e jardinada do bairro Menino Deus em Porto Alegre contrasta com a universalidade, múltipla e turbulenta de sua vida e obra.
Escreveu romances, contas, crônicas, peças de teatro, críticas, trabalhou em inúmeros jornais, morou em muitos lugares.
Sua literatura, como uma expressão de solidariedade com as gerações futuras, tratou de compartilhar uma angústia no tempo presente como reflexão para o futuro.
A dimensão do “trágico” no social
Caio Fernando nos trouxe diferentes lugares de fala. Sua transgressão na literatura tinha uma correspondência com sua transgressão na vida cotidiana. Nascido numa cidade do interior, Santiago do Boqueirão, com forte tradição militar, como muitos jovens foi estudar o ensino médio em Porto Alegre; seus primeiros passos na capital gaúcha coincidem também com sua estreia na literatura — com o conto premiado “O príncipe sapo” e um romance com maior densidade, chamado “Limite Branco” — que só seria publicado alguns anos mais tarde. Nessa história, Mauricio é um personagem do seu tempo, vivendo os dilemas políticos e sociais do golpe militar na sua transição de cidade interiorana para a capital do Rio Grande do Sul. Surge sua imaginária “Passo do Guanxuma”, alter ego de Santiago, que vai povoar brilhantemente toda a sua obra posterior.
Caio Fernando chegou numa Porto Alegre marcada pelo golpe recente, onde tinha sido a capital da legalidade, com forte movimento estudantil e intelectual e onde os militares precisavam exercer pela via da força seu controle.
Sua primeira obra a ser publicada foi o “Inventário do (Ir)remediável”, já fruto de sua primeira partida para além do Rio Grande do Sul: a imensa São Paulo.
Suas obras posteriores já refletiam um amadurecimento visibilizando a dimensão do “trágico”, a partir de uma expressão dos conflitos subjetivos sobre diferentes temas: sexualidade, futuro, família, costumes; ao contrário de outros autores, seu intimismo jamais perdeu o aspecto ordenador do “social”. As obras dos anos setenta refletiriam bem essa dialética entre o trágico e o social como “Pedras de Calcutá” e “O ovo apunhalado”.
A derrota definitiva do movimento estudantil em 1968, o fechamento do regime, com a repressão contra a esquerda social e os movimentos alternativos de resistência no plano cultural impõe aos anos setenta um cenário socialmente desesperançoso.
Caio oscila entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, chegando a ir para o exterior, onde vive importantes experiências na efervescência londrina. Retorna ao Brasil em 1974.
Como afirmou o prefácio histórico de Heloisa Buarque de Hollanda em “Morangos Mofados”, Caio F vai desvelar as frustrações da geração ferida com a repressão da ditadura.
“Morangos não deixa de revelar uma enorme perplexidade diante da falência de um sonho e da certeza de que é fundamental encontrar uma saída capaz de absorver, agora sem a antiga fé, a riqueza de toda essa experiência”.
O desencanto marcado pela derrota dessa geração também faria com que saídas fugazes pudessem povoar o itinerário da abordagem deCaio. Isso se nota claramente na sua “paixão pela astrologia”, inspirado em Fernando Pessoa, bem como o flerte com posições estotéricas e místicas.
Tal derrota, contudo, merece ser compreendida numa mirada mais geral: Caio F sempre foi um escrito comprometido, engajado, apesar de não ter se vinculado diretamente com organizações de esquerda.
A retomada do humor do movimento de massas, a partir das grandes mobilizações do final dos anos setenta, abriria um novo ciclo político no país.
Caio adentra os anos 80, morando no centro do país, com intensa produção cultural e jornalística, alternando seu domicílio profissional entre o Rio e São Paulo.
A angústia como síntese de um tempo partido
Outro traço na trajetória e obra de Caio é angústia como marca do tempo presente. Sua narrativa, rica em detalhes, sempre oferece ao leitor uma angústia marcada por um tempo veloz. A temática da morte, presente desde seus primeiros textos, o acompanhou até o final da vida.
Essa condição, de “desencaixe” entre a perspectiva do tempo presente e da projeção do futuro, talvez explique a identificação de milhares de jovens, duas décadas depois de sua morte.
Sua forma escrita, impecável, refinada e sistemática dava voz a angústia intimista. Justamente a partir dos anos oitenta, quando os avanços da psicanálise no Brasil, começariam a buscar compreender as lacunas da alma para além da suposta racionalidade.
O tema da sexualidade, que no Brasil que lutava para enterrar a ditadura ainda era considerado um tabu enorme, foi outra das grandes “pedras de toque” da obra de Caio F.
Sua literatura foi pioneira no país — com peso grande do conservadorismo — para tratar com beleza e liberdade a diversidade nas relações sexuais e afetivas. Um de seus contos mais polêmicos foi “Sargento Garcia”, onde com genialidade fez sátira do conservadorismo militar com relação aos homossexuais.
O paraíso que os dragões desconhecem
Depois da explosão cultural, social, literária dos intensos ’80, o refluxo dos anos noventa novamente traria desencanto.
Imerso numa acelerada produção Caio F publicaria o romance “Onde Andará Dulce Veiga”; livros de contos como “Ovelhas Negras”; reunião de crônicas em “ Pequenas Epifanias”.
Sua transgressão o acompanharia até suas últimas crônicas.
Seus últimos anos, marcados por complicações decorrentes do vírus HIV, o levaram de volta a casa dos pais em Porto Alegre — onde seguiu colaborando com jornais e escrevendo colunas periódicas. No ano de 1995, foi escolhido patrono da feira do livro anual de Porto Alegre.
Para além da recente “onda Caio F” nas redes sociais, sua obra é uma das mais ricas da produção literária nacional na última quadra do século XX. Descobrir, no prazer das suas palavras, a ambiguidade entre a busca de uma esperança — mesmo fugaz — e o desencanto, pode ser uma boa forma de responder a provocação inicial de onde andará Caio e seu legado.
Existem ótimas biografias e novas publicações a respeito de sua obra, também muitas dissertações e trabalhos acadêmicos.
O calmo olhar, o cuidado com as suas plantas, a tranquilidade de seu recanto na casa do Menino Deus é uma imagem que se pode guardar com definitiva. A intensidade da calma das suas horas finais é do tamanho da intensidade das turbulências das horas de sua vida, em arte e escrita.