O regime de apartheid imposto por Israel ao povo palestino

Nesta entrevista, o antigo relator da ONU para a Palestina discute o que ele entende como um regime de apartheid imposto por Israel.

Richard Falk 20 dez 2017, 12:04

A publicação em março, pela Comissão Econômica e Social das Nações Unidas para a Ásia Ocidental (ESCWA em inglês), do relatório “As práticas israelenses em relação ao povo palestino e a questão do apartheid”, denunciando o “regime de apartheid” imposto por Israel ao povo palestino provocou uma polêmica no interior da ONU. Após críticas dos embaixadores estadunidense e israelense, o seu secretário geral, Antonio Guterres, pediu a retirada do relatório do site da ESCWA. Sua secretária executiva, Rima Khalaf, se demitiu em sinal de protesto apoiada pelos 18 governantes árabes que compõem o ESCWA.

Richard Falk, professor estadunidense de Direito internacional na Universidade de Princeton (Nova Jersey) e antigo relator especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados (2008-2014), coautor desse relatório, volta às suas conclusões e à polêmica que elas suscitaram. Essa entrevista foi realizada antes do anúncio, por Donald Trump, do reconhecimento estadunidense de Jerusalém como a capital de Israel.

Por que comparar a política de Israel em relação aos palestinos e o apartheid na África do Sul?

O conflito entre Israel e Palestina é apresentado como um conflito territorial, no qual o coração da disputa seria o fim da ocupação. Contudo, a querela revela mais um conflito entre dois povos do que um conflito de território. Enquanto os dois povos não tenham um estatuto igual, a paz não será estabelecida. A fórmula pertinente é o fim do apartheid. Ela se aplica aos territórios ocupados, mas também à forma pela qual o povo palestino – incluindo os refugiados e cidadãos de Israel – são administrados.

O termo de apartheid foi utilizado pelos responsáveis políticos em Israel. O primeiro ministro David Bem Gourion tinha previsto, em 1949, que se o problema da Palestina não fosse resolvido, Israel se tornaria um regime de apartheid. Os antigos primeiros ministros Ehoud Olmert e Egoud Barak também utilizaram esse termo, enquanto que o seu uso no exterior é denunciado como se fosse um discurso incendiário

Como justificar essa comparação de um ponto de vista jurídico?

A definição jurídica de apartheid é a dominação de uma raça sobre outra, para manter uma estrutura de controle, através de atos desumanos.

No início, o movimento sionista queria estabelecer uma residência judia, mas o Estado de Israel foi fundado sobre a desigualdade entre os judeus e os palestinos. O desafio sionista era maior que aquele do regime de apartheid na África do Sul: ele procurava fundar um Estado judeu e democrático. Era necessário, então, encontrar um equilíbrio demográfico. A partir de 1947, quer dizer, depois da expulsão de 750 mil palestinos e da recusa de qualquer direito a seus descendentes, a política israelense visa impedir uma maioria palestina, vista como uma ameaça, uma “bomba demográfica”.

Essa preocupação não era apresentada na África do Sul, onde não existia uma pretensão democrática: cada povo deveria se desenvolver separadamente. Israel seguiu outra abordagem, que é a política da fragmentação e da divisão dos palestinos através da recusa do direito de retornar, o controle militar dos diferentes territórios conquistados depois de 1967 e de outras táticas para a minoria palestina de Israel.

O aspecto mais problemático é que judeus podem vir do mundo inteiro, enquanto que palestinos refugiados no exterior são excluídos. O apartheid [em Israel] funciona por um sistema de controle: ocupação coercitiva há cinquenta anos, uso excessivo da força, táticas administrativas e punição coletiva para fazer do Estado judeu uma realidade imutável.

O seu relatório foi vilipendiado por Israel e pelos Estados Unidos, o secretário geral da ONU se dissociou e outros governos jugaram essa comparação excessiva…

É uma questão de julgamento e de interpretação. Se nos colocarmos no ponto de vista das vítimas, é difícil de enxergar uma comparação excessiva. Eu vivi esse sofrimento visitando os campos palestinos durante seis anos como relator da ONU. Eu encontrei nessas pessoas uma paciência extraordinária e uma disposição para alcançar um compromisso.

Em Israel, o sentimento que um compromisso não é mais necessário e que só conta o sonho de Israel bíblico cresce. Os israelenses querem que os palestinos renunciem a um Estado em troca de direitos econômicos e da paz. O primeiro ministro Benjamin Netanyahou quer manter esse status quo ambíguo: obter uma paz relativa e aumentar as colônias ao mesmo tempo. A escolha entre ser judeu ou democrático deve ser feita. Tudo vai no sentido de uma escolha a favor de um Estado judeu, mas não democrático. Netanyahou evolui em direção a uma democracia não liberal.

A comparação com o apartheid na África do Sul não tem o efeito de impedir o debate?

Quem apoia Israel é reticente em se engajar em um debate, porque isso dá crédito a essas acusações. Não há nenhum argumento substancial contra nossa conclusões. A questão permanece: como fazer com que esses dois povos vivam conjuntamente em uma paz real? É preciso acabar com o sistema de desigualdade e atacar a estrutura de dominação. A experiência da África do Sul é pertinente porque a sua liderança (branca) teve que recalcular seu interesse e liberar Nelson Mandela para se engajar na via de uma Constituição democrática e o fim do apartheid.

Israel queria mais passar de um sistema de dominação “soft” do que de permitir a criação de um Estado palestino. Contudo, seria também uma coisa boa para o povo judeu sair desse sistema de dominação. É necessário envolver a parte dominante para que ela aceite a ilegalidade dessa desigualdade.

Após sessenta anos, a lua palestina ainda tem um futuro?

O roteiro de Israel consiste em fazer acreditar que sua força e os desenvolvimentos regionais são tais que a luta palestina é uma causa perdida. Esse raciocínio funciona para os governos. Eles ignoram, contudo, a influência crescente das sociedades civis em detrimento dos Estados. É por isso que Israel mira, sobretudo, a agenda dos ativistas. O que o inquieta não é mais a luta armada, mas a campanha “Boicote de desinvestimentos e sanções” (BDS) que ele procura deslegitimar. É uma guerra de legitimidade que está em disputa: quem vai ganhar a batalha da opinião? Deste ponto de vista, os palestinos estão ganhando. Todos os movimentos de descolonização ganharam contra os exércitos. Do seu lado, os Estados Unidos, como Israel, não conseguem pensar fora do quadro militar. Contudo, nesses últimos cinquenta anos, os conflitos militares foram frequentemente ganhos pela parte mais fraca….

O Hamas se engajou em uma reconciliação com o Fatah, você acha que ele mudou?

Eu penso que o Hamas está seriamente comprometido com sua vontade de chegar a um cessar fogo de longo termo com Israel. Depois das eleições de 2006, ele abriu canais de discussão com os Estados Unidos para chegar a acordos. Ele não abandonou a ideia de uma Palestina unificada em sua carta, mas ele abandonou o tom antissemita. Ainda há elementos que podem ser vistos por Israel como uma ameaça existencial. Israel quer manter o Hamas na categoria de “terrorista”.

O abandono da luta armada pelos palestinos pela via diplomática é uma boa escolha?

Sim. Realizando ataques terroristas é a força de Israel que se comprova, enquanto que a sua fraqueza reside na dimensão moral e jurídica do conflito. O erro dos palestinos foi de não tomar essa via desde os acordos de Oslo.

Você repete que as Nações Unidas fracassaram em resolver o conflito entre Israel e Palestina. A ONU serve para que?

A ONU é muito importante na guerra de legitimidade. Ela detém a autoridade para distinguir o bem e o mal, a legitimidade da ilegitimidade. Nisso ela continua sendo importante. Mas ela não pode modificar os comportamentos. As Nações Unidas são muito frágeis para exercer uma pressão independente fora de um consenso geopolítico. No que se refere ao conflito entre Israel e a Palestina, a ONU, assim como a Europa, tem um papel pequeno.

Você é favorável aos Estados Unidos desempenharem um papel de liderança nas negociações de paz?

A geopolítica fez com que os palestinos aceitassem os estadunidenses como mediadores, mesmo eles não sendo um intermediário equitativo. Se você tem uma luta entre duas partes, você quer que a ala mais próxima de um dos campos seja o mediador do conflito? Os palestinos são ingênuos: eles aceitaram o processo de Oslo, enquanto que ele não incluía nem mesmo o direito de autodeterminação.

Uma solução diplomática pode ser encontrada?

Netanyahou não quer um acordo. É necessário convencer a opinião pública israelense que a paz é possível e desejável. É preciso criar as condições para a igualdade, abandonar as estruturas que mantêm a desigualdade e a ideia de um Estado judeu – o que não significa o abandono da ideia de uma residência judia.

Você apoia a campanha BDS. Por quais razões?

Para modificar o clima político é preciso modificar o clima diplomático. O antigo presidente americano Barack Obama estava evoluindo nisso no fim do seu mandato. A Europa tem um papel a realizar. Com Donald Trump, não há nenhum razão de pensar que Israel se sentirá pressionado a oferecer qualquer coisa que seja aos palestinos. O único debate em Israel é: deve-se formalizar nosso controle sobre a Cisjordânia e Gaza, ou permanecer nesse status quo?

Eu apoio toda iniciativa não violenta que exerça uma pressão sobre a liderança israelense para se conformar no direito internacional e evoluir em direção a uma solução pacífica. A campanha BDS é um instrumento eficaz de pressão em uma guerra de legitimidade. Houve uma campanha BDS que teve muito apoio contra o regime sul-africano. Seus iniciadores nunca foram tão atacados como são os que fazem essa campanha a favor dos palestinos O debate suscitado em Israel confirma a ameaça que representa esse tipo de iniciativa. Ela já funciona ao ponto de Israel ter tentado deslegitimar essa campanha taxando-a de antissemitismo.

Entrevista realizada e publicada pelo jornal Le Monde. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento


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