O impasse europeu

O Secretário de Relações Internacionais do PSOL analisa as recentes eleições na Itália e a formação do governo Merkel na Alemanha.

Israel Dutra 13 mar 2018, 13:30

No domingo, 4 de março, dois resultados despertaram as expectativas do cenário político europeu. Por um lado, o resultado da consulta à militância do SPD alemão para conformar o governo da “grande coalizão” com Merkel à frente; por outro, a eleição geral na Itália, onde novas tendências políticas se polarizaram, soterrando o antigo governo do PD, Renzi e seus aliados. A nova rodada de eleições refaz o panorama político geral, no marco de uma crise “orgânica” dos regimes. A tentativa de uma nova normalidade pela via do “novo centro” que Macron patrocina na França não conseguiu se estabelecer. O retorno à terceira versão da “grande coalizão” alemã é um sintoma da crise do regime, não de um fortalecimento de um campo alternativo. A nova investida da direta dura e da extrema- direita também assusta, nas ruas e nas urnas. A esquerda radical enfrenta dificuldades, mas não tem outra saída senão a construção da resistência aos ajustes e à xenofobia, dando passos rumo a uma alternativa necessária e anticapitalista. Tudo isso num quadro de ampla apatia e indignação de todo um setor do movimento de massas, como os altos índices de abstenção verificam. Essas são as tendências fundamentais que se encontram no impasse que arrasta toda a União Europeia.

Alemanha: Retorno ao “extremo-centro”

Depois de meses sem governo, finalmente se decidiu a terceira repetição da “Groko”- Grande Coalizão. Sem conseguir formar maioria, Merkel e seu partido, CDU, precisavam do aval do tradicional Partido Social Democrata (SPD) para seguir governando, depois do resultado insatisfatório nas urnas. Alguns articulistas chegaram a cogitar a formação de um governo com os liberais, o que não se confirmou após primeiras negociações. Ao buscar o SPD, tradicional sócio nas anteriores “Grokos”, Merkel se deparou com uma surpreendente resistência interna. A liderança do SPD entrou em crise com o tamanho da rebelião da bases partidária para não dar aval aos planos de ajuste de Merkel. A crise começou no setor da juventude- conhecido como Jusus (Juventudes Socialistas) chegando a dividir o partido, que teve que recorrer a um método de consulta aos filiados.

O resultado eleitoral do final do ano passado desnudou ainda mais a “crise orgânica” que vive o regime do principal país da União Europeia. As duas formações partidárias que desde a unificação alemã compartilham a direção política do aparelho de estado fizeram, somadas, pouco mais da metade dos votos, apenas. Essa crise das expressões políticas foi combinada com o avanço de um partido de extrema-direita, com tendências xenófobas abertas e posições bastante reacionárias. Depois de mais de 50 anos, um partido desse tipo conseguiu entrar no parlamento, com 13% para AfD (Alternativa para a Alemanha).

O desenlace provisório – e precário – da crise política foi a vitória da proposta de participação na ‘Groko’ por parte do SDP, garantindo a posse de um novo governo Merkel, a partir do dia 15 de março. Como já citado, esse resultado apertado gera uma fissura inédita no partido da social-democracia alemã. Um terço dos votantes se posicionou de acordo com a ala juvenil e defendeu não participar do governo, apesar da campanha que todo establishment tinha feito para ratificar o acordo, utilizando o fantasma da ingovernabilidade como argumento principal. O cenário alemão, contudo, apesar da propalada estabilidade econômica, começa a se mover. A recente onda de greves, com o setor metalúrgico entrando em ação, indica que há uma mudança importante no ambiente social. E a crise do SPD, como maior partido de massas, com peso entre os sindicatos e a forte classe operária alemã, terá efeitos e desdobramentos. Na esteira da crise de outros projetos de centro-esquerda, o SPD se envolve outra vez, arrastado para o extremo-centro, numa tentativa de reeditar um tipo de coalizão que tem poucas chances de dar certo. Como vai reagir a juventude e os setores críticos do partido? Que capacidade terá a principal força da oposição de esquerda, o Die Linke, para interferir nessa recomposição?

O vácuo de representação abre uma perigosa porta para a extrema- direita. O efeito colateral da conformação da Grande Coalizão é que AfD será a principal força de oposição parlamentar, num governo que já nasce débil. A dinâmica dos próximos meses vai dizer como a luta entre diferentes forças políticas e sociais vai impactar um regime longevo que apresenta suas primeiras fissuras graves, depois dos anos de “reconciliação, prosperidade e estabilidade”.

Impasses múltiplos

O outro impasse registrado e acentuado no final de semana foi o resultado da eleição na Itália. A terceira economia da Zona do Euro segue somando-se no espiral de instabilidade. Renzi fazia um governo que parecia trazer um cenário positivo, mas rapidamente caiu em desgraça. Ao apostar num referendo para mudar os critérios do sistema eleitoral, abriu o caminho para o descontamento, acabando derrotado e tendo que abreviar o governo. Isso lhe custou uma cisão dentro do PD- uma parte de figuras mais ligadas à antiga centro-esquerda conformou outro partido, “Liberi e Uguali”. O PD foi o grande derrotado nas urnas no último domingo, não alcançando 20% do eleitorado.

O resultado eleitoral não apontou nenhum vencedor imediato. O partido mais votado foi o Movimento 5 Estrelas, fundado pelo comediante Beppe Grillo, atualmente com Luigi Di Maio em sua liderança, com 31.6% dos votos. Foi o coroamento de um processo de meteórico de ampliação do eleitorado, com um discurso contrário à corrupção, distanciado da esquerda e das pautas progressivas, com ataques virulentos à “casta” e aos partidos e políticos tradicionais. O outro polo que ampliou sua votação, foi a “direita populista”. Berlusconi, quase um imortal, retorna às urnas, mesmo proscrito, indicando voto no partido “Força Itália”, fez 14%; o grupo que mais cresceu foi a antiga “Liga do Norte”, partido de extrema-direita, rebatizado apenas de “Liga”, encabeçado por Matteo Salvini. Vale registrar o baixo comparecimento às urnas em todo o país. A indefinição quanto ao novo governo é o que marca. Há setores que chegam a cogitar a convocação de novas eleições.

A Itália “desgovernada” é o retrato da crise múltipla que assola o país. A dívida pública soma quase 133% do orçamento do país; a explosão do fluxo migratório é outro problema real, além da perspectiva econômica modesta, incapaz de recompor os índices pré crise de 2008. Há uma retomada da oposição entre o norte e o sul da Itália. A Liga foi o partido mais votado nas regiões do norte, enquanto o M5S venceu com folga no sul.

A nova situação italiana agrava a crise e os “múltiplos impasses” na Europa. Depois da crise do Brexit, temos vários focos de conflito como toda a crise nacional no Estado Espanhol, com a luta pela república catalã; a guerra social promovida na França por um Macron que busca equilíbrio para passar um ajuste mais duro, com retirada de direitos dos trabalhadores e imigrantes; a defesa do serviço ferroviário na França e na Bélgica, diante da oferta privatista.

O fato é que a burguesia europeia marcha unida na necessidade de impor o ajuste e utilizar os imigrantes como alvo. Por outro lado, a condução política está atualmente fragmentada, sem uma posição clara para consolidar uma hegemonia de um setor ou liderança europeia, no auge da falta de credibilidade dos tradicionais partidos diante do movimento de massas.

A ascensão da extrema-direita

A outra cara do fenômeno de crise aguda dos regimes é o surgimento pela direita, de alternativas “populistas reacionárias”, como forma de resposta extrema à falência do centro e dos regimes bipartidário. Com peso de massas, ainda que diferentes entre si, uma ampla gama de partidos de nacionalistas de direita, alguns com posições inclusive fascistizantes. Na Itália, foi o caso da votação ampla da Liga e na Alemanha o fato de AfD ganhar peso como força de oposição.

Esses novos fenômenos tem recorrência na história em épocas de crise aguda; contam para isso, além da crise política econômica, a explosão do fluxo migratório. A linha da direita europeia é reforçar seu nacionalismo de forma mais atrasada possível. Ocupam também o espaço dos velhos partidos social-democratas, ganhando votos em antigos bastiões operários. O discurso da guerra ao terror, num formato de ataque aos imigrantes, com a bandeira contrária a “islaminização” da Europa, coesiona esses setores. Cresceram na Holanda e na Hungria, e associam formações políticas partidárias com bandas de choque abertamente anti-imigrantes como o PEGIDA.

A retomada da organização da “desesperança” é a base do projeto desses grupos direitistas. O congresso da Frente Nacional de Le Pen foi um fato político na França. Além da mudança no nome [agora essa formação direitista se denomina “Reconstrução Nacional”], a presença do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon é a busca por uma relação mais direta entre os projetos nacionais que levanta a extrema-direita.

A via da esquerda radical: reconstrução e projeto

Para atuar num cenário tão instável é decisivo construir um projeto à esquerda, separado da social-democracia agonizante. A defesa incondicional dos trabalhadores imigrantes como parte da classe trabalhadora é uma bandeira cara, que condiciona o projeto da esquerda radical. Combinar a luta democrática com a luta contra o ajuste é a única saída. Os governos, de diferentes tipos, atuam como uma máquina para retirar direitos, uma guerra social contra o povo.

A lista que combinava alternativas de esquerda anticapitalistas diversas, Potere al poppolo, montada às pressas, teve uma votação modesta, 1.1% dos votos. Contudo, é uma tentativa de recomposição, depois da terra arrasada na esquerda italiana. Na Alemanha, cresce a responsabilidade da ala esquerda do Die Linke para fortalecer um movimento capaz de tornar-se um polo militante, atraindo o descontamento que existe com a linha do SPD. A retomada de Podemos na Espanha, os desdobramentos de uma ação mais comum entre as esquerdas na França, o prestígio adquirido por Corbyn, são alentos diante dessa necessidade.

O fundamental é disputar as capas da juventude indignada, que rechaça as velhas estruturas e quer ampliar as redes de solidariedade. É uma tarefa articulada no campo social e político. O terremoto causado pela adesão massiva à greve geral do 8M no Estado Espanhol é o ponto mais alto dessa resistência. A luta das mulheres é a vanguarda, articulada com a luta em em defesa dos imigrantes na Itália e na Bélgica, combatendo o patriarcado e o racismo. E assim cresce a audiência para as ideias anticapitalistas entre a juventude.

A tarefa de reconstrução de um projeto da esquerda anticapitalista europeia é inadiável. É uma lenta reconstrução, onde o centro é solidariedade entre as diversas expressões da classe trabalhadora, as lutas contra a opressão e a retomada de um programa radical. Mais que nunca, sacudir as vestes poeirentas dos nossos dias.

Artigo originalmente publicado no site do Partido Socialismo e Liberdade.


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