Dez anos mal contados e que contam muito

Dez anos depois da falência do Lehman estamos pior. Concentração bancária, finança-sombra, austeridade e mais dívida. Sísifo vai voltar a fazer das suas.

Francisco Louçã 25 set 2018, 14:48

É o décimo aniversário da crise do subprime? Não, está mal contado. É certo que a bancarrota do Lehman Brothers, em setembro de 2008, com a sua dívida de 613 mil milhões de dólares, foi, à época, a maior na história dos EUA. Mas já em 2007 vários fundos da finança-sombra tinham entrado em incumprimento e desde março de 2008 as grandes falências multiplicaram-se nos EUA. Quando o Lehman caiu já a procissão saíra do adro e no fim desse mês já ia em mais sete falências: o venerável Bear Stearns (em março); o gigante de seguros AIG; startups como o IndyMac, o Washington Mutual e o Wachovia; e entidades parapúblicas como o Fannie Mae e o Freddie Mac. A resposta foi mais liquidez, nacionalizar os ativos tóxicos e concentrar a banca. Dez anos depois, estamos pior em quatro domínios.

Concentração a todo o vapor

Com a crise, o Bear Stearns foi vendido ao JP Morgan Chase, que também ficou com os ativos do Washington Mutual, e o Merrill Lynch foi vendido ao Bank of America. O Wachovia, o quarto maior banco dos EUA, foi adquirido pelo Wells Fargo. Os bancos de investimento Goldman Sachs e Morgan Stanley foram redefinidos como holdings bancárias para receberem dinheiros públicos. O Citigroup e o Bank of America foram salvos pelo Estado. O resultado foi gigantismo: os cinco maiores bancos têm agora mais peso do que em 2007 (47% dos ativos bancários totais) e 1% dos fundos já têm 45% do total mundial.

Ao mesmo tempo, no Reino Unido, o Governo nacionalizou o banco Bradford and Bingley em 2008 (depois vendido ao Santander). Nesse mesmo ano, o Royal Bank of Scotland, o Lloyds e o HBOS foram nacionalizados com uma injeção de capital público de 60 mil milhões de euros. Na Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e Chipre a crise da dívida subsequente levou a uma nova onda de resgates bancários. Foi o caso do Fortis, que custou 16 mil milhões de euros aos governos belga e holandês; do Dexia, na Bélgica e em França (2012), seis mil milhões; do Bankia, em Espanha (2012); do NKBM, na Eslovénia (2012); do SNS Reaal, na Holanda (2013); do Laïki e do Banco de Chipre, em Chipre (2013); do Espírito Santo (2014) e do Banif (2015), em Portugal; do Monte dei Paschi, do Banca delle Marche, do Banca Popolare dell’Etruria e del Lazio e do Carife, em Itália (2014-2015); e do Hypo Alpe Adria, na Áustria (2014-2015), entre outros. Desses colapsos emergiram o Santander e o Deutsche Bank como os grandes ganhadores europeus. Bancos grandes demais é risco demais, primeira ameaça.

Economia de casino

A segunda ameaça é o casino. O Lehman Brothers estava particularmente exposto ao mercado hipotecário de risco, não por ser o maior mutuante — era apenas o 11º maior financiador de hipotecas de baixa qualidade, ou subprime —, mas por ter subscrito mais títulos garantidos com produtos imobiliários do que qualquer outra instituição financeira. Com um departamento de risco com 400 funcionários, entre os quais antigos reguladores, a sua estrutura era um labirinto com sete mil entidades legais, para evitar o controlo pelas autoridades, e a opacidade multiplicou o problema.

Neste caso, como noutros, a exposição a uma alavancagem imensa (30:1) tornou-se a garantia de colapso. Assim, uma mera quebra de 3% no valor de mercado elimina todo o capital da empresa, obrigando-a a reconhecer as perdas. Ora, na Europa era pior: na véspera da crise, o Deutsche Bank estava alavancado em 40:1, como o Dexia, cujo valor dos ativos ultrapassava o PIB do respetivo país.

O colapso do crédito de risco confirmou os perigos da alavancagem. Ora, o mercado do subprime até era pequeno: o valor de todas as hipotecas nos EUA era de 12 mil milhões de dólares, enquanto o subprime era apenas mil milhões. Como o valor total do mercado bolsista norte-americano era cerca de 18 mil milhões de dólares, mesmo que metade das hipotecas de risco se perdesse — uma taxa mais elevada do que ocorreu no pior momento da crise —, tal não seria mais do que 3% do mercado bolsista. E, no entanto, a disseminação dos ativos tóxicos pelo sistema financeiro provocou o efeito dominó e a confiança colapsou. Nove milhões de norte-americanos perderam as suas casas, uma catástrofe social, e o défice público quadruplicou entre 2007 e 2009.

Ora o casino voltou e bem depressa. A finança-sombra, o sistema de crédito e de aplicações financeiras fora do âmbito da regulação dos bancos centrais, duplicou em meia dúzia de anos: é agora de 45 biliões de dólares (era pouco mais de metade em 2010). As três principais agências de rating, que enganaram sistematicamente o mundo em 2007, continuam a dominar (têm 96% do mercado de notações), tudo passa por elas. Gillian Tett, editora do “Financial Times” para os EUA, argumenta que voltámos a ter as mesmas “arrogância, cobiça e opacidade” que conduziram às crises anteriores.

A solução austeridade

Os resgates limitaram a propagação da crise e, por isso, a recessão nos EUA foi diferente da de 1929. O PIB real caíra 15% entre 1929 e 1932, mas apenas 1% entre 2008 e 2009 e, em 2011, já recuperara o nível pré-crise. O mesmo não aconteceu na Europa, que depois da recessão usou políticas monetárias incompetentes, subindo mesmo as taxas de juro e aplicando uma austeridade destruidora e, assim, só saiu da recessão quatro anos depois. Terceira ameaça então, a consolidação de políticas de austeridade criou um novo normal: em recessão, queimam-se os barcos, ou cortam-se salários e rendimentos para punir quem trabalha. Vai ser assim quando a maré voltar a virar.

É isto que está agora a preocupar os banqueiros centrais. Na Penha Longa, na reunião do Banco Central Europeu deste verão, não se falou de outra coisa. No seminário de Jackson Hole, organizado pela Reserva Federal do Kansas na última semana de agosto, igual. Jerome Powell, o banqueiro central dos EUA, queixou-se do “modo de baixa produtividade”. Alan Krueger, que presidiu ao conselho económico do presidente anterior, constatou que o problema são os salários: deviam estar a crescer pelo menos mais 1 ou 1,5%. Com uma taxa de desemprego nas economias avançadas de 5,3%, menos do que antes da crise do subprime, a precarização e os baixos salários contribuem para uma recuperação medíocre da procura agregada. No Reino Unido, o crescimento dos salários tem sido tão baixo que só é comparável ao tempo das guerras napoleónicas.

Explica Krueger que a queda da taxa de sindicalização explica esta compressão salarial: nos EUA era em 1980 de 25%, agora é 10,7%. Na Europa igual. Sim, mas é o resultado de uma máquina de destruição social pela austeridade. Resultado, não há ganhos de produtividade sustentáveis (exemplo, em Portugal o emprego criado é sobretudo na hotelaria e turismo).

Quarta ameaça, o casino é uma economia de dívida. E é a finança-sombra que domina a dívida, sempre uma bomba-relógio: desde o subprime, o peso total da dívida no PIB aumentou de 179 para 207%, mais quase 40 pontos. Gillian Tett tem razão, isto é antes de mais um problema político. Mais sombrio, “The Economist” conclui que o que correu mal em 2008 pode voltar a acontecer. Sísifo voltará a fazer das suas.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 15 de setembro de 2018. Reprodução da versão do esquerda.net.


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