Uma crítica ao esquematismo: resposta aos camaradas da Resistência

Diálogo com as posições públicas da corrente política Resistência expressas no texto “Uma polêmica com o balanço eleitoral do MES”.

Bruno Magalhães 8 nov 2018, 16:53

O objetivo do texto abaixo é dialogar com as posições públicas da corrente política Resistência expressas no texto “Uma polêmica com o balanço eleitoral do MES”, escrito pela companheira Carol Coltro. Nossas diferenças com os valorosos camaradas da Resistência não são recentes, se iniciaram logo após a profunda revisão política que os levou à ruptura com o PSTU e representam um sincero esforço mútuo de reflexão sobre a tarefa de reorganização dos revolucionários brasileiros.

Em primeiro lugar, é preciso saudar a iniciativa da companheira pois caminha no sentido contrário das frases soltas e dos textos curtos tão comuns na dinâmica das redes sociais. Debater sobre uma reflexão que possua começo, meio e fim ajuda no diálogo nesse momento de pouca produção de textos argumentativos, o que se evidenciou no suposto “método colaborativo” promovido pelo grupo Mídia Ninja durante a construção da plataforma Vamos, que restringia propostas e colaborações a tamanhos ínfimos e replicava no debate político a lógica reducionista usual nas postagens e “tweets”.

Os argumentos da companheira Carol tratam de diversos temas que podem ser divididas em três grupos. No primeiro, nossas diferenças de posicionamento são concretas e aferíveis, já no segundo as diferenças são na verdade posicionamentos comuns tratados com diferentes enfoques. O terceiro grupo compreende as deturpações das posições do MES, que não parecem propositais, mas atrapalham o diálogo sobre os dois primeiros grupos de argumentos. Separar nossas diferenças concretas das deturpações e das chamadas “falsas polêmicas” é essencial para o debate saudável.

Nossas organizações compartilham uma mesma tradição política e inúmeras referências teóricas em comum, se organizam conjuntamente no PSOL e se colocam quase sempre do mesmo lado nas disputas realizadas nos movimentos sociais. Temos grandes dificuldades para explicar nossas diferenças nos espaços externos à vanguarda e possuímos o mesmo empenho na construção de uma alternativa política independente e socialista. Nesse sentido, nossa polêmica permanente é um debate entre pares e, ainda que seja dura, é imprescindível para a construção de unidades sólidas nas lutas de hoje e do futuro.

A questão da corrupção

No debate sobre a corrupção reside um grande exemplo de deturpação das posições do MES. Apesar dos inúmeros textos definindo nossa visão sobre o tema, a Resistência e outras forças políticas insistem em construir caricaturas que tornem mais fácil a defesa de seu ponto de vista, tratando a questão de forma rasa e deixando grandes lacunas explicativas. Enquanto o MES sempre propôs uma política ativa sobre o tema, inclusive sofrendo difamações e calúnias por isso, a crítica feita pelas organizações do status quo da esquerda se dá pela via da não-política, se orgulhando de um posicionamento abstencionista que não propõe nada e recusa as contradições inerentes à esse debate.

Nossa tática perante a questão da corrupção é definida pela conjuntura de cada momento, portanto posições e declarações feitas há anos não podem ser simplesmente cristalizadas. Sem refletir sobre os processos vividos no país no último período é impossível compreender a essência e as etapas desse posicionamento ativo na luta contra a corrupção, e muitos dirigentes da Resistência preferem congelar o tempo e substituir essa reflexão pela velha exigência de autocrítica praticada na época de militância no PSTU.

Mais de uma vez, o tema da corrupção foi vetado pela Resistência nos espaços nacionais de direção da Frente Povo Sem Medo, mesmo quando CUT e CTB concordavam com algum tipo de incorporação desse debate. Em nome da aceitação em espaços amplos, até então inéditos para esses camaradas, a Resistência se colocou de forma “mais realista que o rei” e ainda hoje utiliza-se do evidente caráter estrutural da corrupção no modo de produção capitalista para escapar do enfrentamento tático dessa questão. Ao se deparar com a indignação popular perante a corrupção, a Resistência aponta como “tática” nada menos que o fim do capitalismo, jogando nosso problema atual para o futuro através de uma postura esquerdista muito elogiada pelo PT e por seu campo político.

No caso da operação Lava Jato encontramos duas lacunas explicativas na posição da Resistência que continuam sem resposta após inúmeros debates. A primeira está ligada à origem da operação, se fruto de uma conspiração organizada ou parte da fragmentação de interesses presentes no jogo político brasileiro, e a segunda está ligada à definição dos limites daquilo que se encontra dentro ou fora da Lava Jato. Os textos da Resistência não conseguem responder nem qual setor da burguesia estaria organicamente por trás da Lava Jato nem quais investigações de corrupção seriam lícitas, e acabam por assumir a narrativa petista e insinuar uma ação imperialista planejada, forçando uma leitura na qual as investigações problemáticas seriam coincidentemente apenas aquelas que atingiram o PT.

Voltamos a questões há muito debatidas: as investigações que incidiram sobre a cúpula do PMDB e de outros partidos burgueses também estariam embutidas nesta suposta conspiração burguesa? Ou investigações como a Zelotes e a Castelo de Areia estariam fora daquilo que a Resistência caracteriza como a Lava Jato? O tema é complexo e contraditório, e ao negar essa complexidade a Resistência ignora elementos constitutivos do problema em sua argumentação.

Outra lacuna evidente está na explicação sobre o papel de Sérgio Moro e sua recente indicação ao Ministério da Justiça de Bolsonaro. O silencio ensurdecedor sobre a posição de Rodrigo Janot, o relator da Lava Jato, em prol de Haddad durante o segundo turno das eleições chama atenção no texto da companheira Carol, assim como o silêncio sobre o posicionamento de Joaquim Barbosa e de outros quadros do Judiciário que contradizem a posição simplificadora da Resistência. Se, como escreve a companheira, “a operação Lava Jato teve como objetivo principal derrubar o governo Dilma e criminalizar o PT”, o que explica esse posicionamento de Janot? Ao defender que a indicação de Moro é a evidência maior da conspiração por trás da Lava Jato, o texto da companheira Carol ignora todas as contradições do processo. Vejamos um trecho:

“Não é de se estranhar que, por conta dessa avaliação equivocada a respeito da Lava Jato, Roberto Robaina, aponte o superministério nas mãos de Moro como um elemento contraditório do governo Bolsonaro, uma espécie de ala disputável do governo. Vemos o oposto: o superministério de Moro desnuda que a Lava Jato era uma operação política, com o objetivo de abrir caminho para a ofensiva brutal de classe da burguesia. Antes a partir dos poderes de um juiz de primeira instância, agora com os poderes de ministro. A desmoralização do PSDB, com os escândalos envolvendo Aécio Neves e sua participação desastrosa no governo Temer, ajudou Bolsonaro a se conectar com a base social do golpe, pressionada pelo aumento dos custos dos serviços.(…)”

Em primeiro lugar, é importante inserir aqui a referência do texto do companheiro Roberto Robaina citado acima. Em segundo, fica evidente a insinuação de que a desmoralização do PSDB (uma das consequências da Lava Jato) foi parte da abertura de caminho para a ofensiva burguesa que ajudou Bolsonaro. Talvez seja apenas uma confusão textual, mas parece que a ânsia teleológica de explicar certas causas a partir de suas consequências leva a companheira a afirmar que a eleição de Bolsonaro seria quase uma consequência do plano comum por trás das investigações, mesmo sem nenhuma base material para esta argumentação além da hipótese da conspiração que supostamente reuniria tanto Moro quanto Bolsonaro em um mesmo sentido.

Não vemos a questão assim. Nossa análise é marcada pelo esforço de percepção das enormes contradições colocadas na disputa política brasileiro, e coloca-se aí mais uma situação contraditória onde Bolsonaro procura se gabaritar com o prestígio social do juiz enquanto Moro vê a oportunidade de entrar de fato na vida política. A burguesia também se movimenta e aproveita oportunidades, e ao contrário da afirmação feita acima onde Moro seria uma “ala disputável” do governo Bolsonaro, deturpando a posição do MES, defendemos essa manobra como parte do movimento contraditório que marca tanto a ascensão de Bolsonaro como a atuação de Moro como expressão de parte dos elementos presentes nas investigações de corrupção, e não como totalidade. O fato de Moro ter se declarado contrário à tipificação legal dos movimentos sociais como terroristas e ao confronto como prioridade da atividade policial demonstra como a situação não é linear como sugerem os camaradas da Resistência. Sobre a indicação de Moro, nos parece mais viável a hipótese do jornalista Ricardo Noblat:

“O convite de Bolsonaro a Moro é manobra política perfeita: leva o juiz para o governo, congela a Lava Jato e ‘estanca a sangria’ como desejava Romero Jucá. O mérito é de líderes do Centrão. É o novo Plano de Combate à Corrupção.”

Nesse tema se coloca o urgente problema da resolução do assassinato de nossa companheira Marielle Franco. O clima de violência política que se intensifica no país exigirá firmeza na luta pelo esclarecimento dessa tragédia e, se as investigações sobre esse crime não forem conclusivas, as máfias fascistas terão um sinal verde que coloca em risco toda a militância de esquerda. Nesse sentido, a exigência de conclusão das investigações pode surtir mais efeito sobre um ministro preocupado em manter seu prestígio do que sobre algum representante tradicional dos velhos esquemas. Não se trata aqui de defender ou embelezar Sérgio Moro, que já deu provas sobre seu projeto de poder, mas de analisar friamente o cenário e afirmar uma tática decidida para combater um dos maiores riscos para a militância nos dias de hoje.

A questão da prisão de Lula é outro tema a ser tratado. Antes de sua prisão, era comum o blefe petista afirmando que a classe trabalhadora não permitiria tal situação e que todas as forças seriam colocadas para defender o ex-presidente. O PT reproduziu esse tipo de bravata ao invés de organizar sua própria base social e buscou até o fim uma saída negociada e institucional, levando seu principal dirigente à melancólica situação atual sem nenhum tipo de resistência efetiva contra sua prisão. Ao invés de convocar qualquer enfrentamento real, como greves políticas ou ações de massa, o PT e a CUT realizaram um ato fúnebre para Lula enquanto aguardavam sua prisão, e o próprio Lula foi vítima de sua natureza conciliadora ao ir para a cadeia de forma mansa, apostando como sempre em uma negociação futura com setores da institucionalidade burguesa.

Desde o primeiro momento, o MES se colocou contra a prisão de Lula. Não por defender sua honestidade, mas por entender que o processo contra ele era de cunho principalmente político. Mas não confundimos essa posição, construída a partir de nossos princípios, com a participação coadjuvante no teatro montado pelo petismo para esconder suas próprias limitações. Estaríamos nas primeiras fileiras de uma greve política contra essa prisão e defenderíamos saídas de resistência democrática contra essa arbitrariedade, mas não pudemos nos confundir com o campo oportunista participando como claque de uma resistência encenada na qual a aposta era a conciliação posterior e cujo desfecho já era evidente.

Vemos o problema das investigações como parte da completa desorganização e fragmentação do regime político brasileiro, não compartilhamos do método formal de análise dos camaradas da Resistência e não caracterizamos processos complexos a partir de apenas um de seus vetores. Talvez aí esteja a raiz da dificuldade na comunicação entre o MES e a Resistência, em um mesmo problema de lógica que se expressa inúmeras vezes com objetos diferentes. O binarismo presente nas posições da Resistência se mostra na repetição constante de seus quadros buscando se afirmar como “o lado certo da história”, traçando linhas dualistas que impedem uma análise detalhada e levam à a explicações unilaterais, replicando os modelos de sua antiga organização de forma inversa, porém estruturalmente muito parecida.

O futuro governo Bolsonaro colocará um impasse profundo para a política da Resistência sobre o tema da corrupção. Ao indicar notórios corruptos para posições importantes ao mesmo tempo em que busca construir uma falsa narrativa anticorrupção, Bolsonaro planta mais uma contradição que cobrará seu preço e, ao contrário do que defende a Resistência, aprofundará a urgência da luta contra a corrupção. O futuro processo de desilusão da população com a imagem de honestidade construída por Bolsonaro exigirá dos revolucionários ainda mais tenacidade na pauta porque poderá desmascarar essa narrativa mentirosa se a esquerda combativa for capaz de enfrentar as contradições presentes nessa luta.

Antipetismo e o fenômeno Bolsonaro

Outro pilar da argumentação da companheira Carol reside na explicação do fenômeno Bolsonaro como prova de uma situação unilateral defensiva na qual a onda que levou o militar ao poder é fruto exclusivo de uma ofensiva burguesa que assola o país nos últimos anos. Segundo o texto:

“Desde março de 2015, com as grandes mobilizações da classe média urbana mais abastada, assistimos a uma ofensiva burguesa. Essa ofensiva inverteu a relação social de forças de forma desfavorável para a classe trabalhadora e sua juventude. As mobilizações pelo impeachment de Dilma Rousseff alcançaram a dimensão de vários milhões, a votação no Congresso consagrou o golpe parlamentar e ocorreu uma derrota política que não foi somente uma derrota do PT, mas abriu-se uma ofensiva de classe que provocou avanços concretos sobre a classe trabalhadora, como a reforma trabalhista e a PEC do teto de gastos. O debate sobre esta mudança qualitativa na situação política é parte importante das nossas diferenças de caracterização e política. O MES considera que o impulso de junho de 2013 permaneceu ininterrupto, vivo, até agora, em outubro de 2018, às vésperas do início do governo Bolsonaro.(…)”

Concordamos que existe uma forte ofensiva burguesa no país e que o impeachment de Dilma através do golpe parlamentar de 2016 acirrou essa dinâmica. Concordamos também que essa ofensiva foi permitida pela mobilização massiva dos setores da classe média que tomaram às ruas do país desde março de 2015 e impulsionaram forças conservadoras que cresceram e se organizaram de forma considerável, inclusive inserindo elementos fascistas até então inéditos na recente história política brasileira. Além disso, também concordamos que esse processo representou uma inversão na disputa política após 2016 ao retirar o PT do poder e iniciar um governo com um programa de ataques à classe trabalhadora ainda mais duros que aqueles promovidos pelo governo Dilma.

Nossa divergência é de outra natureza e novamente se apresenta enquanto um problema de análise lógica. O que afasta as abordagens das duas organizações é uma forma de pensamento presente na posição da Resistência na qual o avanço recente da direita automaticamente anularia o impulso de lutas sociais. Ao contrário, acreditamos que os dois movimentos se combinam e inclusive se retroalimentam em uma dinâmica de conflitos marcada por sua intensidade e incerteza, logo abre um leque de possibilidades bem maior, ainda que evidentemente em um cenário bem mais difícil.

Não por acaso, o texto da companheira Carol quase não cita as gigantescas mobilizações de massa dirigidas pelas mulheres sob a insígnia do “Ele Não!”. As centenas de milhares de pessoas reunidas em todo país contra o retrocesso representado por Bolsonaro evidenciam a contradição do momento apresentando um caráter mais amplo do que a da esquerda organizada e uma resistência ao formato burocrático. Sobre o antipetismo, voltemos novamente ao texto:

“É preciso disputar, sim, amplas massas proletárias e subproletárias que enxergam nas propostas reacionárias de Bolsonaro uma saída para a situação desesperadora na qual se encontram. Mas o antipetismo não é um atalho válido para essa disputa, porque ele é reacionário e alimenta ideologicamente as forças sociais contrárias a nós. A tentação de “pegar carona” no repúdio ao PT embrulhado no discurso anticorrupção nos levaria a um beco sem saída. O ódio da classe média contra o PT foi incendiado pela LavaJato, mas tem raízes de classe mais profundas e complexas e, infelizmente, reacionárias. Não é um sentimento democrático progressivo.”

Em mais um exemplo de aderência à narrativa petista, o texto identifica toda a frustração popular com o PT como um “ódio da classe média” que atingiu “amplas massas proletárias”, tratando dois fenômenos diferentes como se fossem o mesmo. Mais uma vez o esquematismo surge na argumentação, retirando do PT boa parte da responsabilidade pelo fracasso de seus governos. Ainda pior, vê nas investigações de corrupção o elemento que incendiou esse ódio, apostando na complacência com os grupos que governaram o país entre 2003 e 2016. Segundo essa posição, se a existência do famoso “departamento de operações estruturadas” de Marcelo Odebrecht não houvesse sido divulgada o país estaria em uma situação melhor.

Apesar da honestidade indiscutível dos camaradas da Resistência, há certo cinismo nessa argumentação. A aposta do PT na gestão do estado burguês foi a de conciliação com o capital e aderência à lógica especulativa internacional, o que nos permite caracterizar a direção desse partido como traidora da classe trabalhadora. Não podemos ter receio de afirmar uma crítica marxista ao PT, cuja política de conciliação é parte inerente da explicação sobre as causas do momento atual. A aposta mentirosa na possibilidade de inclusão social pelo consumo em detrimento da organização popular é também parte das causas que hoje nos colocam nessa situação complicada.

A frustração da classe trabalhadora que acreditou nas promessas feitas por Lula (muitas vezes ao lado de figuras como Sergio Cabral e Eike Batista) e teve suas condições de vida pioradas foi o combustível que alavancou Bolsonaro, e essa frustração bastante compreensível é completamente diferente do ódio cultivado pela burguesia e certos setores médios contra parte da população que teve acesso temporário a melhores condições de vida com o crescimento econômico derivado de uma situação internacional favorável.

Existe um motivo evidente para essa aderência da Resistência às desculpas esfarrapadas do petismo, afinal esta organização há muito disputa a possibilidade de deslocamentos à esquerda de setores petistas. O impacto do impeachment na vanguarda, onde o PT se rearticulou principalmente no movimento estudantil das universidades públicas, promoveu nos companheiros uma espiral impressionista na qual estava contida a crença de que a radicalização da narrativa petista poderia deslocar setores do petismo. Segundo essa posição, como o PT não poderia ser coerente com aquilo que propunha, os setores que fossem às últimas consequências da narrativa petista poderiam arrastar pelo exemplo uma vanguarda que surgia próxima ao petismo.

Essa linha teve como efeito colateral levar uma organização de tradição trotskista à defesa das posições mais oportunistas dentro do PSOL, com posturas próximas das tendências políticas que garantem a manutenção burocrática da direção do partido. Já os deslocamentos petistas não ocorreram, e a Resistência novamente foi vítima de seu esquematismo. A história do PSOL é evidente ao demonstrar que os deslocamentos ocorrem quando afirmamos nossa posição, não quando capitulamos, e é sempre bom lembrar que nos dois grandes momentos de deslocamento petista rumo ao PSOL (na fundação do partido e após o escândalo do mensalão) afirmamos nossa posição própria ao invés de provar nossa fidelidade ao pensamento médio da esquerda.

O balanço da candidatura Boulos

O centro do texto da companheira Carol está na defesa de um balanço positivo da recente candidatura presidencial do camarada Guilherme Boulos, e reconhecemos que o esforço da companheira para justificar esse balanço merece respeito pela dificuldade que apresenta. Nutrimos um imenso respeito pelo MTST e consideramos Boulos uma grande liderança do movimento social, um dirigente abnegado que sem dúvida alguma está no campo dos revolucionários que tanto buscamos construir. Defendemos também a aproximação do companheiro e de seu movimento ao PSOL, em um processo que engrandece o partido e fortalece a esquerda combativa. Nas lutas concretas estivemos inúmeras vezes ao lado do MTST e já provamos na prática nossa solidariedade mútua, assim como participamos da fundação da Frente Povo Sem Medo e polemizamos com o PSTU da época sobre o caráter progressivo dessa movimentação.

Entretanto, nossa responsabilidade com o PSOL não permite que nos furtemos de fazer a crítica fraterna à candidatura de Boulos, desde seu processo de construção até os resultados que apresentou. Em primeiro lugar, porque foi uma movimentação ocorrida por fora do PSOL, substituindo a construção na base do partido por negociações superestruturais entre algumas tendências próximas da Frente Povo Sem Medo e da então existente plataforma Vamos. O processo de definição da candidatura foi feito “por cima”, não houveram prévias e ocorreu apenas um único debate entre os pré-candidatos, enquanto por fora do partido se construíam reuniões e atividades que esvaziaram o papel do PSOL sob um pretexto de ampliação que não se provou em momento algum.

Um exemplo dessa construção torta foi a própria plataforma Vamos, que teve como efeito concreto o boicote aos setores do PSOL que tinham críticas à maneira burocrática como foi construída. Enquanto as portas dos debates se abriam para lideranças do PT e do PCdoB, até mesmo a participação da ex-presidenciável Luciana Genro foi dificultada. A chamada “Conferência Cidadã”, que se reuniu em São Paulo e foi exaltada como a prova da amplitude do processo da candidatura Boulos, teve certo caráter de simulacro quando se verificou que alguns de seus principais participantes não estavam comprometidos com nossa candidatura. Muitos dos militantes e ativistas que se empolgaram com a presença de Caetano Veloso, por exemplo, não atentaram para o fato de que o cantor já era grande apoiador da candidatura de Ciro Gomes, e tiveram mais uma sequência de decepções com a série de deslocamentos de “apoiadores” para fora da candidatura Boulos, fenômeno ocorrido inclusive na suposta “coordenação ampla” da campanha presidencial.

Naquele momento, os camaradas da Resistência viam na movimentação da plataforma Vamos a prova de sua política de deslocamentos pela aderência à narrativa petista, e inclusive estiveram junto aos setores burocratizados do partido na defesa do processo, estigmatizando as outras pré-candidaturas como inviáveis mesmo sabendo que estas se postulavam mais enquanto resistência ao processo burocrático do que qualquer outra coisa. Novamente os camaradas foram traídos por seu esquematismo e tomaram as aparências como a própria realidade, defendendo de maneira acrítica um projeto que reduziu nosso campo político ao invés de aumentá-lo.

A constante repetição da Resistência sobre a “grande aliança PSOL, PCB, MTST, Mídia Ninja, APIB” é outra postura que possui mais significantes do que significados e pode ser facilmente desmontada. Em primeiro lugar, porque PSOL e PCB sempre estiveram em aliança eleitoral. Em segundo, porque nossa companheira Sonia Guajajara já era pré-candidata do PSOL e não foi “deslocada” para o partido pela movimentação de Boulos. Em terceiro, porque o próprio Boulos sempre declarou voto no PSOL e o MTST não se deslocou decididamente para esse movimento, tendo inclusive sido permeável também à candidaturas do PT e de outros partidos, em uma postura legítima como a de qualquer outro movimento social.

Resta então o grupo Mídia Ninja como único exemplo de deslocamento promovido pela “grande aliança”. Este grupo mereceria um texto de polêmica próprio, que provavelmente não seria respondido tendo em vista a pouca afeição desses companheiros a textos argumentativos. Mas o fato é que este grupo oriundo da iniciativa Fora do Eixo, que pretendia realizar uma articulação cultural por fora dos grandes centros urbanos e acabou por se instalar nesses mesmos grandes centros, não pode ser visto como aliado prioritário em uma construção política sólida. Independente das polêmicas sobre suas relações com setores do governo federal na gestão petista, é fato que o Mídia Ninja tem visíveis características pós-modernas e atrapalhou a candidatura do PSOL ao descaracterizar e infantilizar a comunicação da campanha do companheiro Boulos.

Outra deturpação do posicionamento do MES está na declaração de que nossas novas deputadas federais, as companheiras Sâmia Bomfim (SP) e Fernanda Melchionna (RS), não seguiram as posições da corrente ao longo da campanha e por isso foram eleitas. Com todo respeito, essa afirmação ganha ares de deboche quando vinda de setores ávidos por resolver com palavras um balanço que não conseguiram construir com ações. A eleição da companheira Luciana Genro como deputada estadual mais votada de Porto Alegre representa a confirmação do reconhecimento popular da política do MES e desmente a posição da Resistência. Da mesma forma, a maior vitória eleitoral da Resistência nas últimas eleições é representada pela companheira Karen Santos, do Alicerce, que assumirá como vereadora em Porto Alegre (como suplente de Fernanda Melchionna) e não fez campanha com a política “Lula Livre”.

Não é nem nunca foi política do MES tratar o tema da corrupção de forma exclusiva, e esse espantalho criado pela necessidade da disputa na vanguarda caiu por terra justamente na postura vitoriosa do MES nas últimas eleições. Nossa posição é outra, e em simplificação seria defender que os atuais parlamentares do PSOL dissessem perante a vanguarda o mesmo sobre corrupção que defendem nas tribunas do parlamento, como ficou evidente na atuação da bancada federal do PSOL na atual legislatura.

Como exercício de reflexão, poderíamos usar a mesma lógica ao analisar a atuação da Resistência no movimento sindical, dizendo que os companheiros mantém seu importante trabalho sindical na CONLUTAS porque nesse espaço não aplicam a mesma política de aderência ao petismo que propõe para o resto da vanguarda. Isso seria uma simplificação incorreta, e em nada contribuiria para compreender a respeitável atuação dos companheiros em sindicatos por todo país.

Os encontros nas universidades, que seriam outra suposta prova da ampliação promovida pela candidatura Boulos, também precisam ser debatidos. Não há dúvidas de que Boulos mobilizou milhares de estudantes em suas passagens por algumas universidades públicas do país, mas tal fenômeno ocorreu também com outras figuras, como nossa futura deputada Sâmia Bomfim, com Eduardo Suplicy e, de forma ainda mais impressionante, com o professor Vladimir Safatle. Este professor não é um organizador, não tem colaterais estudantis apoiando suas atividades e ainda sim demonstrou que uma política independente nesse momento pode arrastar multidões de estudantes.

O roteiro de visitas de Boulos nas universidades expressa o mesmo problema que se apresentou desde o período pré-eleitoral, com uma postura autoproclamatória que esvazia uma alternativa ao invés de construí-la. O candidato à presidência pelo PSOL fez todas essas atividades por fora do PSOL, aparentemente defendendo a unidade enquanto excluía setores como o próprio MES destas iniciativas para poder afirmar um balanço positivo próprio. O caso da USP foi gritante, onde a atividade convocada por Boulos foi construída sem convidar nem mesmo a companheira Sâmia Bomfim, liderança feminista oriunda recentemente do movimento estudantil daquela universidade e que inclusive teve mais votos que sua própria candidatura majoritária em São Paulo.

Não podemos negar a questão do voto útil, mas é fato que a busca exclusiva pelo eleitorado petista selou o fracasso eleitoral de nossa candidatura presidencial, e não conseguimos enxergar como dar “boa noite” ao ex-presidente em um debate nacional pode ter nos ajudado politicamente ou mesmo ajudado o próprio Lula. A diferenciação de Boulos com o PT, que a narrativa da Resistência amplia bastante, se deu através da postura de consciência crítica que sempre foi feita pelo PCdoB e pela esquerda do próprio PT, e em nossa visão essa posição será cada vez mais insuficiente para responder aos desafios impostos pela conjuntura ao PSOL.

Outro problema grave é a insistência do companheiro Boulos na política baseada no argumento do “eu avisei”. Vejamos o que disse Boulos:

“#EuAvisei que Bolsonaro gostava da ditadura, que não aceitava oposição e que iria atacar nossos direitos. Avisei que era um dos tons de Temer e que iria negociar com o pior da velha política para compor sua base. Enfim, nós avisamos.”

Esta postura rompe o diálogo com amplos setores da população e vai contra a essência muito saudável da política do “vira voto” que tomou conta da vanguarda progressista no segundo turno buscando o diálogo e levando à um balanço muito mais crítico das duas últimas décadas do que esperava a direção petista. É preciso decidir se apostaremos no espírito de debate do #ViraVoto ou na autoproclamação do #EuAvisei, nitidamente duas concepções divergentes para a abordagem do problema.

Fortalecer o PSOL e construir uma verdadeira unidade de ação

Um elemento indiscutível dessa eleição foi a força do PSOL. Apesar do esvaziamento simbólico e político promovido pela direção majoritária do partido, infelizmente contando com o apoio da Resistência, o PSOL demonstrou mais uma vez sua potência como espaço para a construção de uma alternativa política socialista. O grande crescimento eleitoral dos setores antiburocráticos do partido deu a prova de que a reorganização da esquerda combativa brasileira passa necessariamente por essa valiosa ferramenta, e os impulsos liquidacionistas que ameaçavam nossa construção sofreram uma derrota histórica.

Vivemos um momento complexo e necessitaremos cada vez mais da unidade e solidariedade entre toda a esquerda socialista para enfrentar os ataques que estão por vir. As graves ameaças feitas por Bolsonaro aos movimentos sociais, e mais diretamente ao companheiro Guilherme Boulos, precisarão ser respondidas pelas forças combinadas de todos os setores progressistas, e nesse sentido é essencial romper com a lógica de autoconstrução presente nas ações unilaterais construídas após as eleições.

Precisaremos também aprofundar espaços e canais de diálogo, reunindo as divergências sob os marcos de uma unidade de ação que construa uma verdadeira grande aliança, com espaços para o debate aberto de nossas diferenças e uma postura decididamente construtiva. O destino das organizações políticas e dos movimentos sociais se enlaça cada vez mais e, ainda algumas de nossas diferenças sejam profundas, elas são muito menores que nossas necessidades em comum.

(Texto revisado em 9 de novembro de 2018 às 12h03 a partir de incorreções apontadas por leitores)


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Pedro Micussi