A importância histórica da batalha pela Previdência Social

A história da Previdência Social e a importância da luta contra a Reforma da Previdência.

Bernardo Corrêa 11 mar 2019, 18:03

Os primórdios da proteção social aos pobres

A Previdência Social tal como a conhecemos atualmente é produto de uma disputa ferrenha entre trabalhadores, patrões e seus governos. Sua consolidação como direito é uma vitória de grandes jornadas de luta, não sendo para nada um presente dos governos, nem algo que provenha de alguma consciência “mais humana” dos capitalistas.

Nos primórdios do capitalismo mercantil, as condições de vida dos pobres eram extremamente aviltantes. Os níveis de mendicância eram altíssimos na Europa a ponto de assustar elementos da classe dominante e do clero, ainda no poder. Frente a isto, o precursor de uma proposta de assistência social organizada foi um personagem de grande influência na Europa e a figura mais importante do humanismo espanhol, Luis Vives, nascido em Valencia em 1492. Ainda no início do século XVI, Vives, que tinha como uma de suas principais preocupações El Bien Obrar (motivado por questões religiosas e o conhecimento da razão), foi chamado pelos responsáveis de alguns dos municípios belgas a organizar a beneficência por meio dos poderes públicos.

Ele então escreveu um Tratado de Socorro aos Pobres em dois livros. O primeiro tratava de questões morais, baseadas na Bíblia, observando que todo aquele que não tem misericórdia e não ajuda a seus irmãos estaria incorrendo em pecado. Entretanto, é no segundo livro que Vives vai tratar do que realmente importava aos governos da época: o perigo dos pobres à estabilidade social. Junto a enfermidades, prostituição e a propagação da feitiçaria entre os jovens, ele via o crescimento da pobreza e da miséria como uma ameaça à ordem social e aos valores morais da igreja católica.

Alguns séculos depois, a Revolução Industrial trouxe à realidade da Europa, para além de grande riqueza na mão dos capitalistas industriais, novamente um enorme crescimento da miséria e da criminalidade por parte dos mais pobres, jogados à sua própria sorte nas cidades após sua expulsão das terras onde viviam e trabalhavam. É deste período que surge o termo “vagabundagem”, pelo enorme contingente de pessoas sem trabalho que vagavam pelas ruas das grandes cidades europeias, especialmente inglesas, francesas, holandesas e alemãs.

Surge nesse processo, a classe trabalhadora, o proletariado, que trabalhava em condições insuportáveis para os padrões atuais de exploração do trabalho. Para que se tenha uma ideia, segundo o cientista social Ander-Egg1 (1884) “Em fábricas de vidro, trabalhavam muitas crianças desde os sete anos de idade, em ocasiões nas quais eram amarrados a cadeiras e máquinas para que não fugissem”. Jornadas de trabalho de 16 horas, condições de segurança quase inexistentes e trabalho infantil marcaram o surgimento do capitalismo industrial. Tal situação, impôs a necessidade de organização dos trabalhadores para, enquanto classe, lutar por melhores condições de trabalho, jornadas menores, melhores salários e proteção social.

Política Social como resposta ao crescimento do movimento socialista

Especialmente a partir do século XIX, a classe trabalhadora europeia começa a acumular vitórias econômicas e organizar seus sindicatos, associações e partidos, especialmente na Inglaterra, França, Holanda e Alemanha. Passa a ameaçar não somente os negócios capitalistas, como também o poder político constituído. Na Alemanha, já ao final do século, um poderoso Partido Social Democrata (Socialista) passa a ganhar postos parlamentares e organizar milhões de operários sob a bandeira do socialismo. É neste ínterim que, pela primeira vez, surge o que hoje conhecemos por Política Social.

A Alemanha após a vitória da Guerra Franco-Prussiana, constitui o Primeiro Reich com o intuito de unificar os pequenos principados em torno da figura de Guilheme I, com a ajuda crucial do Chanceler Otto Von Bismark. O regime político instituído era o de uma monarquia constitucional e, portanto, contava com um parlamento que sofreu numerosas intervenções do Chanceler a depender das posições que tomava contra ou a favor do Império. Entretanto, este cenário foi marcado por intensos conflitos sociais, greves e lutas parlamentares promovidos pelo movimento operário organizado e pelos intelectuais socialistas. Bismark teve que enfrentar-se com esses movimentos que foram paulatinamente ganhando peso social e a simpatia de milhares de operários, o que preocupou o Chanceler e obrigou-o a promulgar um conjunto de Políticas Sociais para conter a “ameaça socialista”.

Dentre as políticas sociais de Bismark constavam o Seguro Doença de 1883, Seguro Acidentes de Trabalho de 1884 e em 1889 o Seguro Velhice e Invalidez. Nas palavras do próprio Chanceler: “Se não houvesse um partido Socialista e muita gente assustada por este partido, não existiriam os poucos avanços que realizamos no domínio das reformas Sociais”2. O que interessava, na prática, não era instituir a Seguridade Social para a classe trabalhadora alemã, mas evitar a todo custo que as ideias Socialistas e a agitação do movimento operário não avançassem a ponto de ameaçar o regime imperial. O exemplo alemão fez com que inúmeros outros países onde o movimento socialista vinha se fortalecendo implementassem medidas de Proteção Social para os trabalhadores.

Seguridade Social na América Latina e no Brasil

Ao contrário do que se possa supor, pelo maior desenvolvimento industrial, não foi na América do Norte onde se começou a instituir o seguro social. Pelo contrário, foi onde o desenvolvimento industrial era menor como África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Além de baixo desenvolvimento industrial, estes países encontravam problemas para a implantação de um sistema de seguridade social por conta da dispersão da população, problemas nas comunicações e de acesso a setores mais distantes dos grandes centros, etc.

Na América Latina, como decorrência de sua posterior incorporação dependente ao capitalismo, o processo é mais tardio. Os sistemas de Seguridade formam parte de uma longa história de políticas sociais que se desenvolveu dos anos de 1920 até os anos 1950. Neste interregno, cerca de 14 países construíram sistemas de seguridade social, com distinções importantes, mas com o mesmo sentido de proteção social às mazelas do capitalismo.

O primeiro país latinoamericano a inaugurar uma política de Seguridade Social é o Chile em 1924, criando sistemas de proteção à maternidade, à invalidez e instituindo uma poupança obrigatória para substituir o seguro velhice. Estabeleceram-se serviços de assistência tanto no campo quanto na cidade. Seguindo o exemplo chileno, o Peru em 1936 institui um Sistema de Seguros Sociais Obrigatório. Posteriormente, a Costa Rica em 1941 é o primeiro país a fazer uma política deste tipo na América Central, o México implanta um sistema de seguros sociais obrigatórios em 1942, o Paraguai em 1943, a Colômbia em 1946, e a Bolívia em 19493.

No Brasil, o sistema tripartite de financiamento da Previdência Social foi previsto inicialmente na Constituição de 1934. Açodado pela crise de 1929 e pelo ciclo de agitação da classe trabalhadora nos anos 20, o Estado presidido por Getúlio Vargas passou a intervir, ainda que de forma focalizada, no mundo do trabalho.

As primeiras iniciativas de políticas sociais brasileiras corresponderam a benefícios vinculados ao mundo do trabalho formal, a exemplo da criação dos Ministérios do Trabalho, da Saúde Pública e da Educação, da criação da Carteira de Trabalho e Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), da criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) de inspiração claramente bismarkiana, regulação dos acidentes do trabalho e auxílios (maternidade, família, doença e seguro-desemprego) além da regulamentação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), no entanto, eram incluídos apenas os trabalhadores urbanos, como forma de forçar um êxodo rural – que se converteu em um dos principais problemas nos anos posteriores – para acelerar a industrialização brasileira. O caráter seletivo, focalizado e fragmentado marcou a trajetória da previdência social brasileira até meados da década de 1960, quando sofreu alterações com a inclusão de novas categorias ao sistema previdenciário, mas sem extinguir completamente essas características próprias.

Contraditoriamente, no período da Ditadura Empresarial-Militar, especialmente nos anos 70, houve uma expansão do sistema previdenciário a outras categorias como trabalhadoras domésticas, garimpeiros. Houve também com a criação do FUNRURAL sem caráter previdenciário, mas antes de tudo assistencial, no qual os trabalhadores rurais também passaram a ter alguma política de proteção social. Mais uma vez, tratava-se de uma estratégia visando garantir a aprovação popular desses governos em meio à forte repressão dos direitos civis e políticos da época.

A crise da ditadura militar e intensa mobilização do movimento dos trabalhadores pela redemocratização do país fez emergir o processo constituinte e a conseqüente aprovação da Constituição Federal de 1988. Foi o que possibilitou ao Brasil avançar para um modelo de proteção social amplo, sob o princípio universalista por meio da criação do sistema de Seguridade Social.

As vitórias do movimento de massas plasmadas na Constituição de 88 foram uma cristalização, na forma da Lei, de uma correlação de forças na qual grandes avanços foram conquistados pela força da mobilização, sem com isso questionar o fulcro do capitalismo dependente brasileiro. As classes dominantes brasileiras encontraram um caminho do meio entre a desconstituição do regime autoritário inaugurado com o Golpe de 1964 e a constituição de uma democracia tutelada e capturada pelos interesses econômicos mais dinâmicos dos de cima, com concessões importantes aos de baixo.

Dentre elas encontram-se a criação do SUS, como decorrência direta do movimento da Reforma Sanitária; o estabelecimento da função social da propriedade, como produto do crescimento dos movimentos de luta pela terra e a criação do MST em 1983; do estabelecimento de direitos sociais no capítulo II do Título I (Dos Princípios Fundamentais) em seu artigo 5º, envolvendo necessidades típicas da classe trabalhadora e do reconhecimento da liberdade sindical no artigo 8º, como resposta ao levante do movimento operário após as greves do ABC em 1978 e o Novo Sindicalismo que se constituiu na esteira deste processo. De toda maneira, como bem definiu Florestan Fernandes, a Carta Magna significou uma “Constituição Inacabada”, passiva de regulamentação posterior em muitos de seus pontos mais importantes, por meio de PECs que viriam a desfigurá-la nos anos seguintes à sua aprovação.

Apesar das concessões para viabilizar a estabilidade política, o capital, principalmente em sua face rentista, jamais abandonou a batalha por destruir o pacto social que se constituiu após 1988 e sua expressão nas relações de trabalho. O caminho da contrarrevolução preventiva, que marca a estratégia histórica da burguesia brasileira frente aos levantes dos de baixo, evitou que o país transitasse para uma experiência de transição anticapitalista ou sequer de Estado de Bem-Estar Social. A Previdência, baseada em princípios de Universalidade, Solidariedade e Repartição tripartite de seu financiamento, seria um dos principais alvos desta batalha do capital rentista, que se arrastou desde o princípio da Nova República até seu desmoronamento nos dias atuais.

A Previdência na mira dos governos da Nova República

Desde a vitória de Collor, passando por Itamar, FHC e chegando aos governos petistas, esteve na mira o modelo de Seguridade, que articula Assistência, Saúde e Previdência Social. O espectro do modelo chileno de capitalização, implementado pela Ditadura de Pinochet, sempre pressionou o capital financeiro que investe no Brasil e, por consequência, os governos que o representavam e/ou não tiveram uma política de combatê-lo, ao fortalecimento dos fundos de pensão e a busca por converter a contribuição solidária dos trabalhadores brasileiros em ativos, passíveis de financeirização no mercado de ações.

Nos anos 90, com a hegemonia do capital financeiro consolidando-se no país, algumas medidas foram fundamentais para abrir caminho a esta estratégia. De acordo com Ricardo Souza (2019):

“A DRU, que foi criada em 1994, deslocava 20% da verba destinada ao Orçamento da Seguridade Social (OSS) para compor o Superávit Primário foi mantida até hoje e reajustada em 2017 para 30%. A Emenda nº 20, de 1998, foi a primeira medida a impor restrições à aposentadoria por tempo de contribuição instituindo a idade mínima, incluindo no texto constitucional ‘Regime de Previdência Complementar Privado’ como o terceiro pilar do Sistema Previdenciário, desta forma, abrindo uma importante brecha para a atuação dos fundos de pensão, que já operavam na legalidade desde 1977”.

Como o governo FHC, não conseguiu estabelecer a idade mínima no Congresso, instituiu o chamado fator previdenciário, em 1999, que dificultou muito a aposentadoria de homens e mulheres ligados ao INSS. Este já foi vendido à época como uma necessidade imperiosa frente à quebradeira da Previdência Social. O fator foi muito combatido pelo movimento dos trabalhadores e, inclusive, contando com engajamento dos sindicatos dirigidos pela burocracia cutista e pelo PT, mas depois foi mantido durante o governo Lula e piorado no governo Dilma.

Sob a mesma narrativa de que a Previdência estava quebrada e precisava de “reformas” que Lula em 2003 fez a sua Reforma da Previdência, colocando fim à integralidade e à paridade nas aposentadorias e estabelecendo o teto de benefícios. A “reforma” ainda aumentou a idade mínima para os novos servidores, e a aposentadoria integral foi substituída pela opção de associar-se a um fundo de previdência complementar. Ainda no início do governo Lula, esta medida foi a expressão cabal da associação entre um governo de cariz social-liberal e gestores dos fundos de pensão, em boa parte dirigidos pela burocracia sindical da CUT como a Previ (fundo do trabalhadores do Banco do Brasil), o Petros (fundo dos trabalhadores da Petrobrás) e o Postalis (fundo dos trabalhadores dos Correios)4. Além disso, como ficou demonstrado posteriormente, a maioria parlamentar para aprová-la foi mediada por corrupção, no caso do “Mensalão”.

Foi um momento chave na definição da natureza daquele governo. Na ocasião, alguns parlamentares que ficaram conhecidos como “Radicais do PT” – Heloísa Helena, Luciana Genro, Babá e João Fontes – foram expulsos do partido por se negarem a votar a favor de uma reforma que atacava os direitos dos trabalhadores do setor público e dava um sinal claro aos mercados de que o PT estaria disposto a negar sua história para governar em conciliação com os de cima. Neste momento começa a construção do Novo Partido que viria a ser o PSOL.

O governo Dilma, após o estelionato eleitoral de 2014, também voltou sua carga contra a Previdência Social por meio das MPs 664 e 665, que impuseram novas regras para o direito ao seguro-desemprego e pensões, substituindo fator previdenciário pela fórmula 85/95, um somatório de idade e tempo de contribuição, dificultando novamente a aposentadoria dos mais pobres que começam a trabalhar mais cedo e, pela sazonalidade do acesso ao emprego formal, têm mais dificuldade em somar o tempo de contribuição exigido.

Após o golpe parlamentar que colocou Michel Temer (vice de Dilma) como presidente, como não poderia deixar de ser, mais uma vez a Previdência Social entrou na mira do governo. Em 2016 é aprovada a PEC dos gastos, e o “Novo Regime Fiscal” proibindo qualquer reajuste às despesas sociais nos próximos vinte anos. Além disso, aumentou a DRU para 30% e prorrogou até 2023. Em 2017, tentou aprovar uma Reforma da Previdência, aumentando a idade mínima e o tempo de contribuição, mas naquele momento uma grande Greve Geral e o rechaço de amplos setores da população, somados à ínfima popularidade do governo, impediram que fosse aprovada. Entretanto, o conjunto de políticas de redução dos gastos públicos com as políticas e direitos sociais deixaram sua marca no orçamento da Previdência Social.

Em campanha para aprovar a reforma, o governo divulgou que, em 2017, a Previdência teria chegado a um déficit recorde de R$ 268,8 bilhões. Quando vamos analisar os “déficits” eles apresentam a seguinte composição:

Previdência Social: “déficits” apurados em 2017

RegimeTipoCusto (R$ bilhões)
RGPSRural110,7
Urbano71,7
RPPSCivil48,8
Militar38,7

Fonte: Raio X do Orçamento – Câmara dos Deputados

Observando o quadro apressadamente, poderíamos chegar à conclusão de que os trabalhadores rurais são os principais responsáveis pelo famigerado “rombo” da Previdência. No entanto, segundo relatório do TCU, a sonegação (por parte dos patrões) do regime rural chega a 70%.

As distorções são de outra ordem. Por exemplo, os servidores militares são em pequeno número, possuem um tempo de serviço baixo, recebem o salário integral com 30 anos de serviço e reduzem o percentual da contribuição (7,5%), ao mesmo tempo são responsáveis por R$ 38,7 bilhões do déficit, segundo os cálculos do próprio governo. São estes, sem dúvidas, os que mais distorcem o caráter isonômico do regime solidário. O déficit do regime próprio de Previdência (servidores da União), incluindo os militares, é 14 vezes superior ao do INSS. O regime próprio beneficia cerca de um milhão de servidores, com déficit em 2016 de R$ 77,1 bilhões, enquanto o INSS atende cerca de 29 milhões de aposentados e pensionistas, com déficit de R$ 149 bilhões. O benefício recebido pelos trabalhadores do regime geral de previdência social (INSS) tem um valor médio de R$ 1.277,12, que significa 0,34% a mais que um salário mínimo, segundo os dados do Boletim de Estatísticas da Previdência Social.

Mas com um valor de benefício tão baixo concedido à grande maioria dos aposentados brasileiros, somos obrigados a nos perguntar: quem são, então, os responsáveis pelo déficit que o governo apresenta?

Segundo a Repórter Brasil, maior parte dessa dívida está concentrada na mão de poucas empresas. Somente 3% das companhias respondem por mais de 63% da dívida previdenciária. A procuradoria estudou e classificou essas 32.224 empresas que mais devem, e constatou que apenas 18% são extintas. A grande maioria, ou 82%, são ativas.

Arte: Eugênia Pessoa

Os sonegadores que envolvem empresas públicas e privadas são, sem dúvida, os principais responsáveis pelo “déficit”, mas cabe dizer que a alta taxa de sonegação não acontece à revelia dos governos. Há uma opção política por não fiscalizar. De acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), “Ano a ano, a Receita sofre com reduções expressivas no orçamento, falta de concursos para recomposição de quadros, redução gradativa no pessoal especializado e sobrecarga de trabalho”. De acordo com dados do Sindicato, existem 9,7 mil auditores fiscais (para fiscalizar todos os desvios, não apenas previdenciários), enquanto estima-se a necessidade de 20 mil auditores.

Para além da sonegação, há também uma deliberada desresponsabilização do próprio governo no “rombo” que ele mesmo propaga. Segundo estudo Associação Nacional do Auditores Fiscais (ANFIP, 2016) o impacto da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e as renúncias tributárias, totalizaram uma perda para a Seguridade Social de um montante de R$ 269,50 bilhões em 2016.

A batalha atual: Derrotar a “Nova Previdência” de Guedes e Bolsonaro!

O argumento central “malandramente” utilizado pelo governo atual para justificar a necessidade da reforma é demográfico. A explicação para tal diferença entre arrecadação e despesa seria porque há um aumento da expectativa de vida e, portanto, um gasto maior.

O que eles não podem dizer é que o aumento da expectativa de vida é uma média (75,2 anos segundo o IBGE) e não corresponde às especificidades regionais e sócio-econômicas do país. Por exemplo, enquanto estados como Rio Grande do Sul, São Paulo ou Distrito Federal têm uma expectativa média entre 77 e 78 anos, nos estados mais pobres como Alagoas, Roraima ou Maranhão ela não ultrapassa os 70 anos de idade. Pesquisas recentes feitas entre áreas centrais e periféricas demonstram uma diferença de mais de 20 anos de expectativa de vida entre moradores de bairros ricos do país e de comunidades pobres.

Pela reforma de Bolsonaro e Guedes, moradores de bairros como o Jardim Ângela em São Paulo jamais chegariam a se aposentar, pois sua expectativa é inferior aos 60 anos. Em um bairro como a Lomba do Pinheiro em Porto Alegre, um morador do sexo masculino teria menos de cinco anos de vida para aproveitar sua aposentadoria, pois a expectativa é de menos de 70 anos.

Sob o marketing da “Nova Previdência”, o governo pretende atacar os mais pobres, acabando com a aposentadoria por tempo de contribuição, em prejuízo dos que começam a trabalhar mais cedo. A Reforma pretende aumentar a idade mínima em todas as modalidades, diminuir os valores nominais da aposentadoria, com a contabilização de 100% das contribuições, dificultar o acesso à aposentadoria rural, aumentar a idade mínima para o acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) que são pessoas em situação de miserabilidade econômica, diminuir os valores e dificultar o acesso à aposentadoria por invalidez e à aposentadoria especial por atividade insalubre ou perigosa, modalidades em que, normalmente, se aposentam pessoas com os trabalhos mais precários.

Ainda há um aspecto perverso da proposta – no que se refere às mulheres – que coaduna com o machismo que caracteriza o governo. Segundo o DIEESE5:

“Essas mudanças impactam, de modo particular, as mulheres, que hoje têm critérios mais flexíveis do que os homens para se aposentar, em função das expressivas desigualdades de gênero que ainda permanecem no mercado de trabalho. A idade mínima para a aposentadoria de 62 anos; o tempo mínimo de 20 anos de contribuição; e a fórmula de cálculo dos benefícios, que diminui de forma significativa seus valores em relação às regras atuais, são as mudanças de maior prejuízo para as mulheres. Para as trabalhadoras rurais e da economia familiar, apesar da idade mínima ter sido fixada em 60 anos (para ambos os sexos), as mudanças significam cinco anos a mais de trabalho, que, combinados à exigência de contribuição individual, poderão dificultar drasticamente o acesso aos benefícios previdenciários. Também as professoras da educação básica são muito penalizadas”.

O que o governo Bolsonaro/Guedes realmente pretende com sua reforma é quebrar o sistema de solidariedade, economizando cerca de R$ 1 trilhão em 10 anos e pavimentando o caminho para um Regime de Capitalização, mediado por fundos de pensão que operariam na Bolsa de Valores, com o nosso dinheiro. Apesar do marketing de “combate aos privilégios”, eles forçarão os trabalhadores a ingressarem no Regime de Capitalização, por meio da indução das pessoas ingressantes no mercado de trabalho a “optarem” por esse novo regime diante da oferta de empregos que disponibilizará apenas essa modalidade previdenciária.

Aqui na América Latina os países que operam no Regime de Capitalização são México, Colômbia, Peru e Chile. Décadas depois de realizarem reformas que, via de regra, substituíram sistemas públicos de Previdência por outros total ou parcialmente privatizados, cada um dos quatro países se deparou com um grande problema: ou o valor dos benefícios recebidos pelos aposentados era muito baixo ou o alcance do sistema se revelou muito restrito, o que deixaria um percentual significativo da população sem aposentadoria no futuro. O chamado “pilar solidário” é componente importante especialmente em países com altos níveis de informalidade, para evitar pobreza na terceira idade e sabemos que todos os países da América Latina têm presença marcante da informalidade no mercado de trabalho.

Infelizmente o primeiro país a instaurar um sistema de Seguridade Social foi também pioneiro em destruí-lo. No Chile, as chamadas AFP’s (Administradoras de Fundos de Pensão) foram implantadas pela Ditadura de Pinochet em 1983. Quando a reforma foi feita no Chile, existia um otimismo irracional a respeito da capacidade de poupança do sistema, mas a experiência que inspira Paulo Guedes foi tão trágica que hoje a maioria dos aposentados chilenos amarga benefícios abaixo do valor do salário mínimo e o país conta com a maior taxa de suicídios entre idosos da América Latina.

Como vimos, a resultante de um Sistema de Seguridade Social sempre esteve vinculada à força do movimento dos trabalhadores e de suas organizações. Por isso, para os ultraliberais como Guedes é tão importante impor esta derrota e abrir um novo mercado de pensões e aposentadorias. Este programa foi imposto por governos como Pinochet no Chile (1983), Fujimori no Peru (1992), Samper na Colômbia (1994) e Zedillo no México (1997) que responderam a situações de crise econômica e fiscal destruindo o sistema de Previdência pública. Nada mais fizeram do que aprofundar as respectivas crises que passavam seus países. No Brasil não será diferente: se o movimento dos trabalhadores conseguir ganhar força e unidade para construir uma grande Greve Geral e derrotar Bolsonaro poderemos garantir os parcos direitos previdenciários que conquistamos em muitas décadas de luta. Se o lado de lá vencer a batalha da Previdência, os próximos capítulos da crise brasileira serão ainda mais trágicos.


1 Ander-Egg, “Historia del Trabajo Social”, Editorial Lumen 1884. Buenos Aires, Argentina p. 102.

2 Ramos, Antonio, “Historia Social y política de Alemania” Fondo de Cultura Económica, México p. 266.

3 López, Rodrigo y Rodríguez, Álvaro. (2007). “Envejecimiento en crisis de las pensiones de clase media”. Santiago, Chile.

4 Ver: Melchionna, Fernanda. “Fundos de Pensão diante da mundialização financeira: o caso da Previ entre 2003 e 2010”. Porto Alegre, 2012.

5 Nota Técnica nº 202: PEC 06/2019: as mulheres, outra vez, na mira da reforma da Previdência, março de 2019.


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Pedro Micussi