As fake news como gerenciamento de crise das milícias do Rio de Janeiro

No Brasil, a algumas pessoas não é garantido o privilégio de morrer apenas uma vez.

Pedro Munhoz 23 abr 2019, 14:26

Pois a calúnia vive por transmissão, 
Alojada para sempre onde encontra terreno.

William Shakespeare

No Brasil, a algumas pessoas não é garantido o privilégio de morrer apenas uma vez. Aqueles que tiveram, de alguns anos para cá, a sina de morrer, seja pelo braço legal da Polícia carioca, seja pelo seu braço subterrâneo (as milícias) de forma arbitrária e violenta passaram, depois de mortos, a ter a sua memória e a sua reputação continuamente assassinadas por boatos infundados e habilmente plantados e difundidos pelas redes sociais.

Quando morreu, em 2014, o dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, do Programa Esquenta, abatido de forma ilegal por uma bala da policia militar do Rio de Janeiro, rapidamente, nos comentários dos portais de notícias e nos grupos de WhatsApp, tornou-se em coisa que ele nunca foi: um perigoso traficante. Quando, no ano seguinte, cinco jovens foram alvejados, também pela polícia, com 111 tiros em um automóvel, no episódio que ficou conhecido como a Chacina de Costa Barros, não tardaram a surgir fotografias apócrifas de jovens portando fuzis, para sugerir que as vítimas eram, em sua totalidade, bandidos perigosos. Nem a menina Maria Eduarda, de apenas 13 anos, atingida no pátio da escola onde estudava em março de 2017, escapou dessa onda perversa: novamente foi amplamente divulgada nas redes sociais uma fotografia de uma criança anônima, armada, com o intuito de associar a imagem da jovem assassinada à criminalidade.

Os casos citados acima têm em comum a fundada suspeita de participação da Polícia Militar do Rio de Janeiro nas mortes e a grande repercussão dos casos, que chegaram a ganhar destaque, inclusive, na mídia corporativa. Os boatos também parecem obedecer a um padrão: as vítimas são, invariavelmente associadas à criminalidade violenta.

Outra “coincidência” expõe ainda mais a brutalização e o racismo estrutural de que padece a nossa sociedade: os alvos tanto das balas da polícia quanto das campanhas difamatórias são sempre jovens e negros.

Ponto um pouco fora da curva, mas onde se verificou, igualmente, o rápido surgimento de uma enxurrada de boatos difamatórios e caluniosos, foi o caso da Vereadora Marielle Franco, executada em março de 2018, Muito embora nunca se tenha suspeitado de que a morte de Marielle tenha ocorrido no âmbito de uma operação policial, a parlamentar teve acionado contra a sua imagem o mesmo aparato que se verificou nos casos citados anteriormente, com o discurso estruturado exatamente da mesma maneira. Uma imagem de uma mulher negra, jovem, de roupas curtas, sentada ao colo de um homem percorreu as redes sociais. Na historieta contada pelas legendas, a mulher era Marielle e o homem, o traficante Marcola, com quem Marielle (mulher lésbica) haveria sido casada. Mentira evidente, mas bastou para justificar o ódio represado de parcela da população.

O fato é que os boatos, tanto no caso dos jovens assassinados em ações da polícia nas favelas cariocas quanto no caso de Marielle, parecem obedecer a um mesmo padrão comunicacional e narrativo. É surpreendente também a recorrência ao uso desse tipo de expediente, exatamente nos mesmos moldes, pelo menos desde a morte do pedreiro Amarildo nas mãos de agentes da UPP da Rocinha, em 2013. Amarildo, o primeiro caso do tipo de que me recordo, também teve sua imagem associada ao tráfico de drogas tão logo o caso ganhou repercussão. O boato ali funcionou como resposta articulada à repercussão negativa do caso, fazendo, como de hábito, com que a culpa pelo próprio extermínio recaísse nos ombros da vítima.

Essa série de coincidências deveria suscitar algumas questões que têm sido, ao que parece, negligenciadas pelos responsáveis pelas investigações pelos crimes aqui mencionados. Será que essas campanhas difamatórias obedecem ao mesmo padrão por simples coincidência? Será que tantos e tão difundidos boatos são sempre criados de forma espontânea por “lobos solitários”, por tios e tias do WhatsApp que se arvoram na árdua missão de defender policiais inaptos, corruptos ou milicianos por meio de mentiras completamente descabidas?

No ano passado provou-se, aqui no Brasil, que uma boa gestão de redes sociais articulada com narrativas mentirosas, mas sedutoras, pode acabar por  ajudar a eleger um Presidente da República. Mencionou-se na imprensa, em caso que, ao que parece, não teve seguimento investigativo sério, que empresas de comunicação, com profissionais gabaritados, estavam por trás das fake news espalhadas aos quatro ventos pelo lado vencedor na disputa presidencial.

E por falar em lado vencedor nas eleições, existem alguns grupos no Rio de Janeiro com poder político e econômico mais do que suficiente para contratar profissionais especialistas em Comunicação, Gerenciamento de Crise e mídias sociais para tentar abafar repercussões midiáticas que possam ser negativas para seus negócios. Estamos a falar das milícias, onipresentes em vastos territórios do Rio de Janeiro e a quem poderiam interessar abafar tanto as ações violentas da polícia que resultaram na morte de inocentes quanto as repercussões comovidas acerca da morte de Marielle Franco. É que para o bom sucesso do empreendimento dos milicianos, interessa que algumas vidas permaneçam completamente descartáveis, destituídas de valor. Aos milicianos, interessa, para o adequado andamento dos negócios, a miséria, a ignorância, o racismo, a prevalência de uma sociedade brutalizada, destituída de empatia. Interessa que setores da população sejam tolhidos, por fim, de qualquer noção de cidadania.

A pessoa ou pessoas que elaboraram a narrativa (é uma narrativa apenas) desses boatos sabia exatamente o que estava fazendo. Quem pensou naquelas narrativas sabe, ainda que instintivamente, que parcela da nossa população se esconde ao se deparar com um jovem negro caminhando na mesma calçada, no sentido oposto. Sabe que muitos de nós não temos apreço ao devido processo legal e aprovamos a execução sumária de seres humanos, contanto que sejam “bandidos”. Sabe, por fim, que, fomos ensinados a confiar cegamente na polícia e que a constatação de que a polícia mata inocentes pode ser dura demais para ser credível. Daí, é fácil para muita gente acreditar que todas as pessoas arbitrariamente assassinadas pela polícia eram necessariamente culpadas de alguma coisa, ou não teriam morrido. O boato funciona aqui como um amortecedor da consciência, um agente que entorpece o nosso senso de humanidade mais básico. De repente, passamos a ver nossos parentes, pessoas boas e laboriosas, que conhecemos desde sempre, concordando com assassinatos a sangue frio. Isso é um sinal de que quem elabora e difunde esse tipo de mentira é, repito, bom no que faz, sabe o que está fazendo.

Boatos sempre existiram, com propósitos vários. Mas as fake news contemporâneas sempre exploram os nossos monstros interiores, nossos desejos mais profundos e secretos, nossas mazelas, nossos medos e, sobretudo, nossas noções preconcebidas. Os milicianos, que contratam agências e profissionais para se fazerem vereadores, deputados e senadores podem estar mantendo centrais permanentes de elaboração e difusão de calúnias e para a nossa miséria, podem estar sendo bem sucedidos.

Sei bem que isso é apenas uma hipótese, mas valeria uma investigação mais séria.

A propósito, já se diz por aí que o músico Evaldo, que teve o carro fuzilado por 80 tiros e morreu a caminho de um chá de bebê, teria furado uma blitz do exército porque alguma culpa ele tinha em cartório. E assim, de WhatsApp em WhatsApp, vamos fazendo do injustificável rotina.


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Pedro Micussi