Mais emprego com pior salário

Os números do emprego escondem uma realidade, a uberização do trabalho, com a consequente degradação tanto das condições contratuais quanto dos salários.

Francisco Louçã 13 jun 2019, 14:37

Nos últimos cinco anos, as economias da OCDE criaram 43 milhões de empregos e, na maioria dos casos, já têm um nível de desemprego inferior aos do tempo da crise financeira (nos EUA é de 3,6%, no Japão 3%, mas em Itália, Espanha e Grécia está acima do de 2008). No entanto, os salários estão quase estagnados, quando deviam subir. Este paradoxo resume as atuais dificuldades sociais e económicas.

Desigualdade estratosférica

Foi recentemente notada a dimensão dos pagamentos aos chefes de empresas nos EUA. Em 2018, Elon Musk, de uma Tesla em dificuldades, recebeu 2,28 mil milhões de dólares, ou 40.668 vezes o salário médio da empresa — em cada três segundos, ganha o mesmo que a média dos seus trabalhadores. David Zaslav, da Discovery, recebeu 1511 vezes o salário médio; Roger Iger, da Walt Disney, 1424 vezes. Em comparação, empalidece a imagem do dono da Jerónimo Martins, que só ganha num ano o equivalente a 140 anos do salário médio da sua empresa. Em todo o caso, à medida que se vão anunciando maiores riscos financeiros internacionais, a desigualdade tende a crescer.

Apesar dessa patologia, seria de esperar que os salários médios dos trabalhadores subissem, havendo menos desemprego (e fortes restrições à imigração). O gráfico mostra que não é isso que se está a passar em Portugal: houve uma pequena subida até à crise, depois uma redução dos salários com a austeridade e, a partir de 2015, só uma ligeira recuperação (como noutros países). Ainda estamos abaixo do salário real de há 20 anos atrás.

A evolução do salário médio real em Portugal durante o período do euro Dados com 2000=100

A evolução do salário médio real em Portugal durante o período do euro
Fonte: OCDE

No entanto, os números do emprego escondem ainda uma outra realidade, a uberização do trabalho, com a consequente degradação tanto das condições contratuais quanto dos salários. Serão 70 milhões os trabalhadores que no mundo participam nestas plataformas, um número provavelmente subestimado. As plataformas (Uber, Deliveroo, Upwork e outras) instituem um modelo de trabalho a que o arcebispo de Canterbury chamou a “reincarnação de um antigo mal”, e que outros têm designado por “trabalho em nuvem”: pode-se clicar no telemóvel para chamar o canalizador ou o programador de jogos que esteja mais perto de si.

Deste modo, a economia-nuvem tende a pagar salários mais baixos a um número maior de trabalhadores mais qualificados, para um trabalho mais intensivo.

Outras desigualdades

O problema dos salários baixos não se fica por aqui. Na Europa, os salários em empregos mais femininizados são inferiores em 35% aos dos empregos em que não há enviesamento de género. Em Portugal, as mulheres ganham em média menos 16% do que os homens. Mas essa diferença é económica e socialmente penalizadora. Foi o que escreveu Chang Tsai Hsieh, da Universidade de Chicago, que, para os Estados Unidos, demonstrou que pelo menos um quarto do aumento da produtividade de 1960 a 2010 é devido a um melhor uso do talento profissional, conseguido pela redução da segregação de género ou étnica. O que se está a perder com os salários baixos e discriminatórios, ou com o trabalho intensivo e na “nuvem”, é a consistência da recuperação económica.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de junho de 2019. Reprodução da versão publicada em Esquerda.net.

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