Sim, Bolsonaro é ditador: não se engane, só porque não viu explicitamente o Estado de exceção

O atual presidente do Brasil não tolera nada nem ninguém que vá contra a sua opinião.

Uma das primeiras notícias nos jornais brasileiros na sexta-feira, 27/03/2020, foi que o governador João Doria recebeu ameaças de mortes e registrou boletim de ocorrência em São Paulo. Ataques aconteceram no momento em que o governador se indispôs com o presidente Jair Bolsonaro sobre a contenção do coronavírus.[1]

É preciso muito esforço para não ver que essas ameaças de mortes em tempos de Bolsonaro não há nenhuma inferência entre a família Bolsonaro e seus desafetos. É preciso muita energia para acreditar que isso foi mera coincidência. Milicianos não só atingiram a socióloga, a ativista e a política Marielle Franco, como atingiram ainda vários outros militantes e ativistas dos Direitos Humanos que estão agora no anonimato. Não pára por aí, não morreram mais políticos (vide Jean Wyllys e Márcia Tiburi auto-exilados), porque a poeira não baixou desde a morte de Marielle que esteve sempre presente, como do mesmo modo tais políticos resolveram se exilar, caso contrário, não saberíamos o desfecho de tudo isso. Poderíamos dizer que, aqui, a frase sintetizada e viralizada entre as falas de Dallagnol e Pozzobon, a saber, “não temos prova, temos convicção”, expressa na Lava Jato, nos cairia bem também. Mas, não sou eu que afirmo isso, é o jornal internacional “The Economist” que destaca ligações e simpatia do clã Bolsonaro com milícias[2]; além das análises do jornal investigativo “The Intercept Brasil”[3], e, mais recentemente, a “BBC News”[4] que segue nessa mesma direção lógica.

Quando perder o foro privilegiado, se a justiça for feita, certos eleitores vão saber que tiraram o dito “Lula ladrão” (independe de ele ser inocente ou não, mas é isso que dizem) para colocarem a família Bolsonaro miliciana, assassina e chefe de organização criminosa. Mais uma vez, não sou eu que afirmo isso, mas sim o próprio Ministério Público, ao dizer que “Flávio Bolsonaro é chefe de organização criminosa que desviava dinheiro”, dentre outros fatos noticiados, a respeito dessa família, no Brasil e no mundo.[5]

Nessa leva, preferiram um “ditador” fingindo ser democrático. Ditador por diversos motivos, como:

1) Ditador, porque essa enorme troca de ministros ou mudança de discurso repentina como o do ministro da saúde Mandetta – que mudou evidentemente de fala e criticou quarentena, elevando declarações alinhadas a Bolsonaro –, não é devida uma relação política e científica no seu sentido mais restrito e rigoroso, mas sim devido a mera divergência de opinião pessoal por parte de Bolsonaro com tal ministro. “O presidente sou eu. Os ministros seguem minhas recomendações”[6], declarou Bolsonaro. Mas, opinião não é ciência nem filosofia – daí que impor a sua opinião, a ponto de ameaçar cargos de ministros, é um escancarado fascismo.

2) Ditador, porque, em evento, Bolsonaro chama população a participar de manifestações originalmente contra Congresso e STF – mesmo arriscando a saúde de muitos com o coronavírus. Chamar o povo para rua contra o Congresso e STF é ser um clássico ditador em potencial também, já que não há democracia, mesmo as que vemos hoje nesse capitalismo, sem essas instâncias que, por sinal, não existiram na época da ditadura, a qual, esta, é amada por Bolsonaro. Não importa que justificativa ele forneça aos seus seguidores, não é assim que o dito democrático faria, porém é assim que um ditador faz.[7]

3) Ditador, porque, seguindo uma fala de Vladimir Safatle na revista francesa “L’Obs”[8], ao atacar as universidades, Bolsonaro visa uma juventude que lhe é hostil. Bolsonaro sabe que nunca terá o apoio do mundo universitário, pois é das universidades que vêm uma boa parte dos princípios que ele combate. É ali que começa o desejo de mudanças e de renovação social que vai de contra a sua mera opinião.

4) Ditador, porque Bolsonaro não governa para todos. Vide os procuradores alegando que dados do Ministério da Cidadania sobre o programa Bolsa Família mostram que o tratamento dado à região do Nordeste não é o mesmo que recebem as regiões Sul e Sudeste. Assim, ação apresentada no STF cobra governo por isonomia na concessão do benefício. Lembremos que, na última eleição presidencial, Haddad ganhou no Nordeste; e Bolsonaro, nas demais regiões do país.[9]

5) Ditador, porque Bolsonaro não é somente contra a esquerda e a favor da direita, simplesmente. Bolsonaro é contra a qualquer um que não concorde com ele. Isso é ser ditador fascista nos tempos de hoje e na conjuntura atual do Brasil (o que não quer dizer que não poderemos entrar em maior Estado de exceção a qualquer momento). Mas saibamos que uma das respostas de Gramsci (2004) à ascensão do fascismo italiano foi compreendê-lo como a implicação calamitosa de uma conjuntura de impasse prolongado entre uma ordem liberal em crise e uma esquerda atordoada, apesar de ainda expressiva. Isto é, os ditadores atingiram o poder por diferentes vias, numa circunstância em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes denominados fortes pareciam ser a “cura” das nações doentes, mesmo que Gramsci tinha absolutamente clareza da cumplicidade do Estado liberal italiano, o que não foi muito diferente daqui: os partidos liberais – que hoje buscam se afastar do atual presidente – já apoiaram Bolsonaro, vide o apoio do próprio Doria. Logo, não é por acaso que essa situação da direita brasileira bem representada por Doria, hoje, é alvo das críticas do Bolsonaro também.

Então, o atual presidente do Brasil não tolera nada e nem ninguém que vá de contra a sua opinião, seja de direita ou de esquerda, seja científica ou não científica. Dado isso, Bolsonaro ainda não tem moral de criticar nenhum outro país que ele considera ditatorial, pois ele mesmo está se “coçando” para ser um ditador, só basta ver as suas atitudes que perpassa sutis por nós, como as supramencionadas aqui. Não nos enganemos, atitudes assim não se resumem a direita e a esquerda, somente, mas trata-se de fascismo, é um ditador no poder que, talvez por força maior na política mundial, ainda não instalou seu Estado de exceção total.

Portanto, de qual ditador estamos falando? Não somente há o tirano histórico de Hitler e de Mussolini, por exemplo, mas o tirano que se desvela como na figura de Bolsonaro. Como disse Foucault (2009), os discursos são práticas que organizam a realidade, logo “muda” a política, muda a maneira de exigência que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, sem nos darmos conta que o tirano ainda está vivo e presente, pois ele está moldado ao discurso do mundo atual.

Não nos espantemos se surgir um novo “Mussolini” em nosso tempo. Como diz o título de um livro de Umberto Eco: “O fascismo eterno” (RECORD, 2018). “O fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis”, afirmou Eco (2018).

Referências

ECO, U. O Fascismo Eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

GRAMSCI, A. Escritos Políticos: Volume 2, 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.


[1] Vide, por exemplo: Jornal Estadão. Doria faz boletim de ocorrência após receber ameaça de morte. Publicado em 27/03/2020.

[2] Conferir: Jornal The Economist. Mafias run by rogue police officers are terrorising Rio: President Jair Bolsonaro is turning a blind eye. Publicado em 30/05/2019.

[3] The Intercept Brasil. As ligações dos Bolsonaro com as milícias. (Bye Cecília Olliveira). Publicado em 22/01/2019.

[4] BBC News. Adriano da Nóbrega: Qual é a relação entre acusado de chefiar milícia morto e Flávio Bolsonaro?. Publicado em 10/02/2020.

[5] Conferir, dentre outros: Jornal Folha. Flávio Bolsonaro é chefe de organização criminosa que desviava dinheiro, aponta MP. Publicado em 19/12/2019.

[6] Vide: Jornal The Intercept Brasil. Coronavírus: existe uma lógica genocida por trás do falso dilema entre a economia e vidas. (By João Filho). Publicado em 29/03/2020.

[7] Jornal Folha de S. Paulo. Chamado de Bolsonaro para ato do dia 15 gera indignação nas cúpulas de STF e Congresso. Publicado em 07/03/2020. Também: Jornal Correio Braziliense. Maia: “O Congresso brasileiro fechou só na ditadura. Não vai fechar mais”. Publicado em 17/03/2020.

[8] Página da rádio francesa RFI. (Brasil). Ao atacar universidade, Bolsonaro visa uma juventude que lhe é hostil, diz Safatle. Publicado em 15/06/2019.

[9] Jornal Folha de S. Paulo. Estados do Nordeste questionam no STF represamento do Bolsa Família. Publicado em 12/03/2020.


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Pedro Micussi