A literatura em tempos de cloroquina
País vive ainda crise moral e ética.
A cena, ao mesmo tempo emblemática e escatológica, testemunhada pelo Brasil nesse último final de semana (domingo, 19), em que Bolsonaro, diagnosticado com a Covid-19 e mais uma vez presente em exíguo ato de seus apoiadores em frente ao Palácio do Planalto, ergue uma embalagem de cloroquina- em sua demagógica e irresponsável campanha que tenta consolidar o remédio como tratamento contra o coronavírus- é o retrato de um país que vive uma crise também moral e ética.
Ao que parece, o presidente faz parte daquela porcentagem de brasileiros que busca soluções fáceis e imediatas para problemas profundos e complexos. Analogamente, foi dessa forma que o então candidato e seus apoiadores operaram no processo eleitoral que garantiu sua vitória em 2018, a custo de um grande sentimento de desesperança e descrédito à política “tradicional”: o candidato que se dizia “contra tudo isso daí”, se apresentando como único e eficaz remédio contra os problemas Brasil, é o mesmo que apresenta a cloroquina como resposta à maior pandemia da história recente.
A pandemia e suas trágicas consequências, no entanto, evidenciaram um outro aspecto importante: ao mesmo tempo que a ciência se mostra e se legitima cada vez mais como grande garantidora da sobrevivência humana (afinal, é sobre ela que todos lançam agora os olhos, esperando soluções para a crise), vemos também demonstrado o poderoso papel da indústria farmacêutica.
Fora as necessárias críticas à perspectiva mercadológica que na maioria das vezes orienta a operação desse setor, além da infeliz cultura de automedicação existente no Brasil, propõe-se aqui uma reflexão acerca do papel que o ideário farmacológico exerce no país, a exemplo do que agora ocorre com a Hidroxicloroquina e a Ivermectina.
Em momentos de crise, em que predominam um sentimento alarmante e geral de desespero e um instinto de sobrevivência, encontramos um terreno fértil para a disseminação das “fake news” farmacológicas, no sentido da propaganda de remédios que supostamente garantem curas milagrosas.
Por outro lado, na Literatura, podemos identificar um outro tipo de papel exercido pelos remédios: o de instrumento de controle social. Tal fenômeno ocorre sobretudo nas obras classificadas como “distopias”.
Citamos aqui, por exemplo, o Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, no qual um importante componente da dinâmica social é a “soma”, que é intensamente distribuída e consumida, uma vez que evita “ideias terríveis”, permite “uma fuga da realidade (…) para acalmar a cólera (…) para nos tornar pacientes e nos ajudar a suportar os dissabores” (p. 234) e proporciona: “um esquecimento perfeito, e se o despertar era desagradável, não o era intrinsecamente, mas apenas em comparação com as alegrias desfrutadas. O recurso era tornar a fuga contínua… doses cada vez mais fortes, cada vez mais frequentes” (p. 154)[1].
Já em 1984, de George Orwell, tal papel não é exercido por um remédio, mas sim por um outro tipo de droga, a bebida alcoólica, no caso, o gim, que exerce importante papel na “amortização” dos personagens, que veem na bebida um anestésico para a opressiva vida que levam. No caso do protagonista, por exemplo, “Era o gim que todas as noites o fazia mergulhar no estupor, e era o gim que todas as manhãs o reanimava” (p. 289)[2].
Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, os remédios também ocupam espaço importante, servindo, por exemplo, ao propósito (inconscientemente?) suicida de Mildred, esposa do protagonista. Outro mecanismo nos chama a atenção nessa obra: em diversos momentos, é sugerido que andar de carro em alta velocidade é uma forma de amainar emoções e evitar possíveis crises, atuando também como um antídoto contra a realidade.
Já no cinema, talvez o exemplo mais próximo seja justamente o aclamado Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019): uma das “doações” do prefeito para a cidade são algumas unidades de um medicamento que, segundo Dra. Domingas, é “um inibidor de humor disfarçado de analgésico”, vendido em forma de supositório e que “faz mal, vicia e deixa a pessoa lesa”, sendo muito consumido no Brasil.
No entanto, talvez o exemplo literário que mais se aproxima do cenário atual seja o encontrado em Memórias próximas de Brás Cubas, de Machado de Assis, no qual, numa derradeira e fracassada tentativa de alcançar a glória e a apreciação pública, o protagonista idealiza um medicamento, o “emplasto Brás Cubas”, um medicamento “sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” (p. 3). O personagem ainda sugere: “se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas” (p. 6)[3]. Seria a cloroquina o novo emplasto?
Se naquela narrativa o emplasto não teve seus efeitos comprovados e sua produção sequer foi levada a cabo, ironicamente não servindo nem para o tratamento da doença que levaria seu criador à morte, a cloroquina igualmente já se demonstrou ineficaz, se afirmando como mais uma Fake News desse governo de retrocessos. Ao que parece, Bolsonaro, através da cloroquina, se aproxima da tentativa, identificada nos exemplos literários citados, de exercer, nesse grave momento de crise, certo controle social sobre brasileiros, no sentido de oferecer uma falsa esperança de controle da pandemia e da crise de saúde pública por ela desencadeada.
Num cenário em que a ciência se postula como a esperança mais certeira para a superação da crise, o que podemos buscar, além do importante combate a esse governo genocida, são “tratamentos paliativos” para nossa saúde mental.
Nesse sentido, a prescrição parece ser a de que consumamos arte, em suas diversas expressões. Essa é receita que raramente falha: tendo eficácia comprovada, não apresenta contraindicações e tem por efeitos colaterais apenas o combate à ignorância e a expansão da consciência.
A exemplo das obras literárias aqui retomadas, as artes sempre nos servirão de alerta e reflexão a respeito do que nos atravessa, individual e/ou coletivamente. Afinal, são elas que nos possibilitam a superação de nós mesmos e a construção de um novo modo de vida para a humanidade, fundamentalmente diferente desse sistema, que é doente e que também nos adoece.
[1] Tradução de Lino Vallandro, Vidal Serrano. – 1. ed.- São Paulo: Mediafashion, 2016.
[2] São Paulo: Companhia das Letras, 2003- 9◦ reimpressão. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn
[3] São Paulo: Globo, 1997. – (Obras completas de Machado de Assis).