Dependência e independência de “independentes” e poder constituinte

O desejo da classe política é evitar a todo custo que a vontade coletiva de mudança se torne um processo verdadeiramente constituinte.

Adolfo Estrella e Diego Córdova 2 dez 2020, 20:41

O desejo da classe política é evitar a todo custo que a vontade coletiva de mudança se torne um processo verdadeiramente constituinte (aberto, participativo, deliberativo e, portanto, livre). Eles pretendem que estas vontades sejam contidas e castradas, dentro dos limites de uma reforma constitucional mais ou menos profunda, mas basicamente protegidas e mutiladas. Aqueles que foram deserdados, deslegitimados e desprezados pelos cidadãos querem continuar assumindo o controle do processo, mantendo as características elitistas com as quais eles se acostumaram a governar.

Após o teste do plebiscito, o processo constituinte, herdeiro direto da revolta de outubro, suas indignações e esperanças, seus cabildos e assembleias, suas marchas e performances, seus mortos e mutilados…. segue o curso traçado na noite do chamado “Acordo pela Paz”.

O processo está enfrentando o momento decisivo da eleição dos membros da “Convenção Constitucional”. Chamá-la de Convenção e não de Assembléia, “constitucional” e não “constituinte”, são apenas alguns dos indicadores das intenções daqueles que assinaram esse “Acordo”, incluindo nossos parlamentares inefáveis, erráticos e convertidos da, ainda, chamada esquerda e centro-esquerda. A montagem deve ter parecido muito revolucionária, muito popular ou muito vermelha. Constitucional, por outro lado, segundo a Real Academia Espanhola, significa que ela “pertence ou é relativa à constituição ou à constituição de um Estado” ou “apoia a constituição” ou que ela “está em conformidade com a constituição”. Constituinte, por outro lado, é o que “constitui ou estabelece”. Diz-se das “câmaras ou assembleias convocadas para elaborar ou alterar a Constituição do Estado” e da “pessoa eleita como membro de uma Assembleia Constituinte”.

Como pode ser visto, constitucional é um adjetivo suave, de adaptação e subordinação, enquanto constituinte é um adjetivo forte, de criação, participação, envolvimento, refundação. Constituinte tem a ver com “poder constituinte”, ou seja, com a força, poder e direito dos cidadãos, através de dinâmicas deliberativas autônomas, fora e dentro das estruturas institucionais, de escrever o roteiro de sua própria história. O poder constituinte é um “motor de renovação não tanto da ordem política como da ordem social”, é um “poder inovador que emana os cidadãos da miséria econômica e da superstição política” e “falar de poder constituinte é falar de democracia”, diz Antonio Negri. O poder constituinte é um processo ético-político muito mais amplo do que o ato de escrever uma nova constituição; é também o objeto desse processo.

Mas o projeto do processo atual está cheio de armadilhas. É o resultado de uma engenharia eleitoral meticulosa, perversa e imoral, justamente concebida para reduzir o poder indigente e constituinte da cidadania. É um projeto, de cima, que procura canalizar as energias de transformação que vêm de baixo e transformá-las em uma questão, técnica e especializada, de codificação e escrita de normas, decretando que “a Revolta acabou”. Tudo isso, apesar da evidência de que existe um amplo acordo, desta vez social e cidadão, não cúpula, sobre uma profunda mudança não só das formas institucionais, mas também existenciais de nossa convivência. A classe política age como um abrandamento, se não um impedimento explícito, do processo de refundação e ruptura democrática iniciado em outubro, mesmo após a rejeição pela maioria popular daquela invenção de última hora chamada “Convenção Conjunta”.

O desejo da classe política é evitar a todo custo que a vontade coletiva de mudança se torne um processo verdadeiramente constituinte, ou seja, aberto, participativo, deliberativo e, portanto, livre. Eles estão procurando que estas vontades sejam contidas e castradas, dentro dos limites de uma reforma constitucional mais ou menos profunda, mas basicamente protegidas e mutiladas. Aqueles que foram deserdados, deslegitimados e desprezados pelos cidadãos querem continuar assumindo o controle do processo, mantendo as características elitistas com as quais eles se acostumaram a governar. É o que diz explicitamente Andrés Allamand: “Seria um erro muito grave para o Chile ser refundado na nova Constituição”, acrescentando: “Sempre fui a favor, como refletido em meu registro, de que a mudança constitucional fosse realizada através do Congresso nacional, como é norma nas democracias representativas”. A continuidade sócio-política e a manutenção do poder de comando de um Congresso desvalorizado são suas obsessões atuais, ou seja, a submissão do constituinte ao constituído.

O projeto mestre do processo atual foi estabelecido há um ano com o “Acordo” que veio da maioria da classe política, convertida em Partido da Ordem, tentando reduzir a energia sócio-política da Revolta a um fato jurídico, um banquete para os advogados constitucionalistas. Juntamente com a pandemia, o processo cumpriu principalmente uma função contra-insurgente, desativando a vontade de mudança. A mesma classe política que não participou ou mesmo pediu a repressão da Revolta, mas se apropriou dessas energias de mudança, domesticando-as. Refratários à evidência da obsolescência total de seu modelo de representação, eles insistem em projetar nos espaços constituintes as formas do mapa político atual. Sangrando em seu apoio e militância, estéreis de ideias, com categorias obsoletas de análise e ação como oposição/governo ou centro-esquerda/ centro-direita, eles oferecem uma cartografia política altamente restritiva para a expressão e expansão da igualdade e diversidade expressas durante e após outubro.

O processo projetado está cheio de limitações à expressão democrática. Estes são, pelo menos, os seguintes: a) de procedimento (regra dos dois terços); b) de assuntos ou conteúdos a serem tratados (acordos internacionais assinados pelos governos da Transição não podem ser questionados); c) de participação (as vergonhosas limitações à eleição de “independentes”, entendidos como aqueles que não pertencem a partidos políticos).

Dentro deste quadro explicitamente redutor de possibilidades democráticas, surgiram propostas de candidatos independentes e uma batalha emergente contra as grotescas limitações a sua eleição dentro do quadro do “Acordo”. Entretanto, apesar das boas intenções, muitas dessas iniciativas sofrem com o mesmo elitismo e “celebridade” do show político atual, fazendo a transferência de sua “imagem de marca” de um espaço anterior (acadêmico, profissional, mídia, etc.) para o atual constituinte, sua estratégia básica. Ou seja, eles são candidatos com déficit democrático e, portanto, com fraca capacidade constituinte, por falta de base social, deliberativa e mandatária, que os apoie. Não negamos a legitimidade de sua existência, mas afirmamos que eles não cumprem as exigências democratizadoras do processo constituinte em andamento.

De uma perspectiva de ruptura democrática e alargamento, o que é relevante não é tanto a independência dos partidos políticos, mas a oposição entre representação e mandato. Os constituintes devem refletir com a maior precisão possível a diversidade social e ser porta-vozes, e não “representantes” dessa diversidade. É uma questão de evitar o modelo clássico de representação liberal-republicana que procura isentar os cidadãos da responsabilidade, para que outros, supostamente mais capazes, se encarreguem por eles das decisões técnicas e políticas da redação da norma. O processo, ao contrário, deve conter o maior número possível de sentidos sociais e isto só é conseguido se for o cidadão que conversa, dialoga, expressa opiniões, aprova e refuta as ideias dos outros e chega a pontos de vista comuns, não unânimes, a fim de entrar em diálogo com outros processos de debates similares realizados em outros espaços sociais. Estas conversas, estas decisões, são mantidas e assumidas por aqueles que as expressaram em seus respectivos lugares de vida e de luta social.

Os membros eleitos devem ser, em sua maioria e não exclusivamente, pessoas verdadeiramente independentes dos partidos políticos, mas também de outras formas organizacionais que, embora se chamem “movimentos sociais”, mantêm características burocráticas, não deliberativas, piramidais, cupulares e crepusculares, como muitos sindicatos e organizações trabalhistas. Mas, ao mesmo tempo, são altamente dependentes de outras formas sociais, econômicas, culturais e políticas de organização e deliberação cidadã, com estilos e procedimentos de funcionamento participativos, horizontais, deliberativos e mandatários, como têm sido e estão sendo as assembleias e prefeituras que proliferaram no calor do mês de outubro. Devem ser mulheres e homens, jovens e velhos, que assumem que seu papel é “comandar obedecendo”, com total subordinação à vontade daqueles que os elegeram como seus porta-vozes, e não como seus representantes, e, portanto, são revogáveis. “O povo que elegemos deve ter um mandato soberano; até agora, aqueles que elegemos não têm um mandato, eles fazem o que querem”. Se eles não cumprirem o mandato, devem ser revogados. Desta vez temos que aproveitar esta oportunidade única e avançar com uma Assembléia Nacional Constituinte. Através de assembleias territoriais, comunitárias e soberanas… destacando os problemas reais que temos”, disse Gabriel Salazar há algum tempo.

No entanto, sabemos que este “mundo social” está em re-constituição, após ter sido expressamente desarmado pela classe política da “Transição” e, portanto, é fraco. Por outro lado, as possibilidades de escolher os independentes dentro do projeto atual são mínimas, a menos que a pressão popular seja reativada para modificar as armadilhas do “Acordo”. A outra possibilidade é que os partidos políticos integrem em suas listas não apenas os “independentes”, mas também os “dependentes”, ou seja, os eleitos em assembleias, cabildos e outras formas de organização popular. No entanto, esta segunda opção tem dois problemas. A primeira é que as regras perversas do jogo continuam a ser aceitas, muito mais do que as habituais, e o que se busca é torcer a mão da Lei pela força do pragmatismo. O segundo é que os critérios para que os partidos escolham um ou outro candidato, as condições que estabelecerão para eles e as exigências a que estarão sujeitos uma vez eleitos são desconhecidos.

Para concluir: deve-se entender que um processo constituinte é, acima de tudo, uma grande conversa social sobre o mundo que está sendo inaugurado. É entender que se vive em um tempo suspenso e ao mesmo tempo acelerado, onde a inauguração está na base da experiência cotidiana de cada cidadão. É esta magia constitutiva que deve ser empurrada. Sem isso, será difícil resolver o bloqueio legal que os poderes constituídos queriam colocar neste processo. A Revolta continua.

Artigo originalmente publicado em El Desconcierto. Reprodução da tradução realizada pelo site da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 12 nov 2024

A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!

Governo atrasa anúncio dos novos cortes enquanto cresce mobilização contra o ajuste fiscal e pelo fim da escala 6x1
A burguesia pressiona, o governo vacila. É hora de lutar!
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi