“O socialismo é inseparável da liberdade e da democracia”
Aula de abertura do curso “150 anos de Rosa Luxemburgo: pensamento e ação” da Escola Marx em 13 de março de 2021.
Agradeço à Escola Marx por me convidar para esta conversa e estou muito feliz de estar aqui em companhia de Luciana Genro, a quem admiro muito. Como disse a Luciana, eu descobri a Rosa Luxemburgo em 1955, para vocês verem como eu sou velho, aos 17 anos. Descobri seus primeiros escritos e foi uma paixão que durou a vida inteira. Realmente, uma paixão pelo pensamento, pela obra, pela vida e pela figura de Rosa Luxemburgo. Quando, anos mais tarde, eu resolvi aderir à Quarta Internacional, um dos textos que me convenceu disto era um escrito do Leon Trotsky que dizia “a nossa Quarta Internacional tem como referência Lênin e Rosa Luxemburgo”. Encerro aqui o parêntese pessoal.
Bem, eu diria que talvez o traço fundamental, tanto da obra como da vida de Rosa Luxemburgo, é o que eu chamaria de humanismo revolucionário, que atravessa os seus escritos. Seja a crítica do capitalismo como sistema inumano, sistema desumano; a crítica das guerras que o capitalismo provoca; das intervenções imperialistas e colonialistas que são parte do sistema capitalista. Então, este é o primeiro aspecto. Outro, igualmente, é a sua visão do socialismo, sua visão humanista revolucionária do socialismo. Um socialismo que é inseparável da liberdade — por isso nós gostamos do partido que se chama Socialismo e Liberdade. O socialismo é inseparável da liberdade e da democracia.
Em função disso, é verdade que em um certo momento ela critica seus camaradas bolcheviques, Lênin e Trotsky, em uma brochura de 1918 que se chama “A Revolução Russa”, que ela escreveu na prisão. Ela diz: “vocês estão tomando medidas são perigosas, limitando as liberdades democráticas, isso é um perigo. Claro, as circunstâncias são muito complicadas, eu entendo, mas sem liberdade, sem democracia, é difícil você construir o socialismo”. Agora, isso ela escreveu em um contexto em que era manifesta a sua solidariedade com os bolcheviques. Ela diz: “os bolcheviques salvaram a honra do socialismo internacional, traído pelos reformistas”. E, nesse sentido, ela termina a brochura dizendo: “o futuro pertence aos bolcheviques”. Então é uma crítica, mas é em um contexto de solidariedade com os revolucionários russos.
Esse humanismo revolucionário na crítica ao capitalismo, na visão que ela tem do que é o socialismo, também aparece na vida pessoal dela, nessas cartas de prisão das quais falou a Luciana, que são muito comoventes. São cartas ao seu amor, às suas amigas. São, realmente, documentos profundamente humanos que gerações de militantes revolucionários leram e que fazem parte da cultura revolucionária.
Como disse a Luciana, uma das coisas importantes da Rosa Luxemburgo é a crítica ao reformismo. A sua organização política principal, que era o Partido Social-Democrata da Alemanha, estava contaminada pelo reformismo. Agora, Rosa Luxemburgo não se opunha às reformas. Qualquer reforma que seja favorável aos trabalhadores, nós apoiamos: aumento de salário, o sistema de pensões, o direito de voto (que não existia em boa parte da Alemanha) — nós lutamos por isso. Nós revolucionários, então, lutamos por reformas sociais, democráticas etc. Só que sabemos — diz ela — que para acabar com a exploração, com a opressão, com as guerras, com a desigualdade social, com a injustiça, não bastam reformas, não basta nem acumular as reformas. É preciso uma revolução. É preciso, diz ela, “o martelo da revolução” para quebrar as estruturas do capitalismo, o poder do Estado capitalista. Então essa é a visão dialética da Rosa Luxemburgo. Nós, os revolucionários, somos favoráveis a todas as reformas, mas sabemos que para resolver os problemas fundamentais da nossa época é necessária uma revolução.
Georg Lukács, que na sua juventude era um grande admirador de Rosa Luxemburgo, no livro “História e consciência de classe”, de 1923, escreve um capítulo sobre a Rosa Luxemburgo. E, nesse capítulo, ele diz uma coisa importante: “a categoria dialética da totalidade é o princípio revolucionário na ciência do conhecimento, e isso se aplica ao marxismo da Rosa Luxemburgo”. E eu diria que, para Rosa Luxemburgo, a totalidade concreta mais importante é o proletariado internacional, a classe trabalhadora mundial. É em função dessa totalidade que ela lutou a vida inteira. Lutou porque para ela o internacionalismo era a bússola para se orientar diante dos conflitos sociais, políticos e diplomáticos.
A bússola era o internacionalismo proletário, o interesse do proletariado internacional. Por isso, em 1914, quando os principais dirigentes social-democratas — não só na Alemanha, mas na França, mesmo na Rússia e em toda a Europa — apoiaram os seus respectivos governos na guerra, Rosa Luxemburgo disse ironicamente: esses social-democratas da guerra substituíram “proletários de todos os países, uni-vos” por “proletários de todos os países, cortem as gargantas uns dos outros, massacrem uns aos outros”. Ela foi um dos poucos, junto com Lênin, Trotsky e outros, que se opuseram categoricamente à guerra imperialista em 1914 e levantaram a bandeira do internacionalismo proletário.
Isso é fundamental para entender o pensamento e a ação da vida dela e o compromisso que a levou à prisão. Rosa ficou presa durante a guerra e quando a revolução derruba o regime imperial na Alemanha em 1918. E quando, em 1919, há uma tentativa revolucionária na Alemanha dirigida pelos revolucionários (espartaquistas, comunistas), da qual Rosa Luxemburgo participa, ela é assassinada. Como nós sabemos, foi morta por bandos paramilitares fascistas, precursores do fascismo, que tinham sido levados a Berlim, para esmagar a Revolução Espartaquista, pelo ministro social-democrata do governo social-democrata da Alemanha em 1919. Gustav Noske se chama esse criminoso. Então ela passou anos combatendo o reformismo, mas mesmo nos seus piores pesadelos ela não imaginaria que seria um governo social-democrata, dirigido por seus antigos camaradas de Partido Social-Democrata Alemão, que organizaria essa contrarrevolução utilizando os paramilitares e que levaria ao seu assassinato — assim como ao de Karl Liebknecht, de Leo Jogiches e de vários outros.
É importante, porém, insistirmos que o internacionalismo de Rosa Luxemburgo, ao contrário do da grande maioria dos socialistas até a Revolução Russa (com pouquíssimas exceções), não se limitava à Europa. Ela é dos poucos que têm uma visão que abrange o conjunto do planeta e que incluem, nas lutas proletárias e de libertação, os povos colonizados — os povos oprimidos pelo colonialismo europeu ou imperialismo norte-americano. Isto é muito importante, mas pouco conhecido. Quando se fala do internacionalismo de Rosa Luxemburgo, se fala, claro, da posição dela contra a guerra em 1914 etc. Mas se esquecem que ela era solidária, que não só denunciava o colonialismo, como alguns outros socialistas e marxistas faziam, mas ela se solidarizava, apoiava a luta dos povos colonizados contra o colonialismo e o imperialismo.
Vou citar três passagens que acho interessantes deste ponto de vista: ela denuncia, numa conferência em 1911, uma guerra do colonialismo alemão contra um povo africano. Havia uma parte da chamada África Sul-ocidental, colonizada pelo imperialismo alemão, onde eles promoveram uma guerra de extermínio contra um povo negro chamado “herero”, o que Rosa Luxemburgo denuncia. Ela escreve, então: “os herero são um povo negro que viveu por séculos na sua terra e o seu ‘crime’ foi não capitular aos escravagistas brancos e defenderam sua terra contra os invasores estrangeiros, o imperialismo alemão”. Ela se solidariza com essa resistência do povo negro da África Sul-ocidental contra o colonialismo alemão. Em outro famoso texto dela, chamado “Martinica”, de 1902, ela denuncia todos os crimes do colonialismo ocidental nas Antilhas, nas Filipinas, na China etc. e ela inclusive menciona o imperialismo norte-americano. Rosa escreve que “o Senado dos Estados Unidos, que é um Senado que só se interessa pela cana-de-açúcar, mandou (o governo americano, pelo Senado) canhões e canhões, navios de guerra e mais navios de guerra, milhões e milhões de dólares para Cuba, levando morte e devastação ao povo cubano”. Então ela se solidariza com a resistência do povo cubano contra o imperialismo americano. Acho interessantes estes aspectos porque, quando se fala de Rosa Luxemburgo, não se pensa que ela tomava posição contra o imperialismo americano e Cuba. Tem mais uma última passagem, do “A acumulação do capital”, de 1913: “A acumulação do capital é um processo permanente, quer dizer, não é só no século 16 e 17, que Marx analisava em ‘O Capital’ — é um processo permanente que utiliza, de forma permanente, a força. Não só na sua origem, na sua gênese, mas até hoje a acumulação de capital é um processo que usa de forma permanente a violência, a força. Agora, do ponto de vista das sociedades ditas ‘primitivas’, dos povos colonizados, essa questão é uma questão de vida ou morte, porque eles sabem que o imperialismo, o colonialismo, a acumulação de capital são o fim do seu modo de vida, da sua existência. Portanto, não pode haver outra atitude de sua parte, da parte dos povos colonizados, que não seja a oposição e a luta até o fim. Por isso temos a permanente ocupação das colônias pelos militares, as constantes insurreições dos povos indígenas e as expedições punitivas de todos os regimes coloniais”. É só pensarmos na história da América Latina. Até hoje as comunidades indígenas lutam contra as agressões militares, as multinacionais imperialistas, os bandos de jagunços paramilitares. A história ainda é essa. Então, mais do que nunca, Rosa Luxemburgo fala do que está acontecendo hoje no Brasil e na América Latina.
Um outro aspecto do seu pensamento, no qual eu sempre insisto, é que ela não tinha uma visão economicista, determinista, que prevaleceu muito no marxismo, sobretudo no reformista ou no stalinismo. Esta seria “o socialismo é o resultado inevitável das contradições do capitalismo, do desenvolvimento das forças produtivas ou das leis da economia”. Não, o socialismo depende da ação, da vontade, da organização, da iniciativa do proletariado e da luta. Então não há nada automático, nada inevitável no processo histórico. Ela formulou isso numa frase genial, que aparece em uma brochura chamada “A crise da social-democracia”, de 1915: “socialismo ou barbárie” — é um ou outro.
E o momento em que ela escreve isso era o momento de vitória da barbárie. O socialismo fracassou em 1914, capitulou, e a barbárie da Primeira Guerra Mundial triunfou. Claro, isso voltou a se repetir na história, infelizmente. Nós sabemos que a barbárie não terminou na Primeira Guerra Mundial. Tivemos pior ainda na Segunda Guerra Mundial, com todos os crimes do nazismo, para começar (Auschwitz, por exemplo), mas também os crimes do imperialismo, Hiroshima, a bomba atômica. Então isso é a continuação da barbárie, e nós sabemos que isso também pode ser o futuro. Quer dizer, o futuro depende de nós. Depende do proletariado e dos militantes, dos quais fazemos parte. Então essa escolha, esse “socialismo ou barbárie”, continua sendo atual.
Como eu disse, o internacionalismo é um pouco o coração — o coração vermelho — de Rosa Luxemburgo como militante, como pessoa. Ela sempre manifesta isso nos seus escritos. Em um texto dela, também escrito durante a guerra, ela diz “a minha única pátria, a minha verdadeira pátria, é a Internacional Socialista. Por ela estou disposta a sacrificar tudo, inclusive a minha vida”. Então esse internacionalismo, para ela, é algo que faz parte da sua própria essência como ser humano.
Ele é levado por ela como um elemento do futuro, também. Quer dizer, ela coloca, depois fracasso da Segunda Internacional, a necessidade de uma nova internacional. E ela se preparava para criar, com os outros revolucionários, uma nova internacional (que veio a ser, depois, a Terceira Internacional). Ela não pôde participar porque foi assassinada em 1919, mas nos seus escritos dizia “precisamos de uma nova internacional proletária, socialista, comunista” (a partir de 1919, já se definia como comunista).
Esse internacionalismo, essas mensagens da Rosa Luxemburgo, são extremamente atuais hoje, em 2021. Por quê? Porque nós vivemos no mundo da globalização capitalista neoliberal, em que o sistema capitalista nunca teve uma tal força em escala mundial; quer dizer, praticamente todos os países do mundo, hoje em dia, talvez com exceção de Cuba, estão alinhados com o sistema capitalista. E ele está muito bem organizado, muito bem centralizado, com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, etc. Infelizmente, a nossa força — dos trabalhadores, do proletariado, da juventude, das mulheres, dos revolucionários — está muito dispersa.
Claro, existem organizações internacionais (eu faço parte de uma que é a Quarta Internacional), mas nós somos pequenos. Precisamos de uma organização de massas, anticapitalista, do proletariado internacional, e estamos longe disso ainda. Mas temos esperança, e uma das nossas esperanças é que está se desenvolvendo uma nova cultura internacionalista, da qual fazem parte o movimento antineoliberal, o movimento pela justiça global, o movimento dos fóruns mundiais, o movimento da juventude contra a mudança climática — uma série de mobilizações internacionais que fazem parte desta nova cultura internacional.
Mas, para esse novo movimento que está surgindo, em particular na juventude, no qual as mulheres têm papel de vanguarda, é importante levar em conta algumas lições que a obra e a vida de Rosa Luxemburgo nos ensinam. Uma delas é que nosso inimigo não é essa ou aquela política do capitalismo — no caso, na nossa época, o neoliberalismo. Claro, nós lutamos contra o neoliberalismo, mas o problema não é substituir o neoliberalismo por um capitalismo mais “bonzinho”, mais regulado. O problema é o próprio sistema capitalista. O problema tem a ver com um sistema que é intrinsecamente perverso — e isso quem diz é o Papa Francisco, que não é um marxista. É um sistema profundamente perverso, para o qual só interessa a maximização do lucro e que, portanto, passa por cima dos interesses não só do proletariado, mas de toda a humanidade. Nosso adversário, então, não é só determinada política da burguesia (como o neoliberalismo) — é o próprio sistema capitalista, com o qual precisamos acabar. Aqui podemos lembrar de uma frase que não é de Rosa Luxemburgo, mas de alguém que admirava muito ela, o Walter Benjamin: “o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Então não adianta ficarmos esperando ele acabar sozinho. Ele só vai acabar quando houver uma vontade política das massas exploradas e oprimidas de acabar com o capitalismo.
Outra lição de Rosa Luxemburgo é que o capitalismo sempre vai produzir e reproduzir novas guerras, novas intervenções imperialistas: racismo, xenofobia, ditaduras, fascismo — a palavra fascismo ainda não existia na sua época, mas já previa ditaduras militares. Isso vai se produzir e reproduzir constantemente. Faz parte da natureza do sistema. Portanto, claro, nós lutamos contra os regimes fascistas, contra Bolsonaro no Brasil, contra as ditaduras militares etc. junto com todos os outros democratas, mas nós sabemos que, em última análise, para que não haja mais ditaduras, golpes militares, guerras, fascismo, etc. precisamos acabar com o sistema capitalista, porque é ele que produz e reproduz essas formas.
E, por último, eu vou falar de uma questão que não existia na época de Rosa Luxemburgo, mas que implica o internacionalismo: a questão ecológica, a crise ecológica, a mudança climática. É uma ameaça sem precedentes na história da humanidade; uma das questões políticas mais decisivas da nossa época, do século XXI, e que na época de Rosa Luxemburgo estava apenas começando. Rosa Luxemburgo tinha uma grande sensibilidade ecológica ou naturalista. Ela tem uma relação muito forte com a natureza, com as flores, as plantas, os animais, os pássaros. Nas correspondências dela constantemente há referências a isso. Em uma carta de prisão ela escreve que vê pela janela da sua prisão um soldado maltratando um animal, um burro ou um cavalo, e ela se identifica com esse animal que está sendo torturado, que está sendo maltratado. Ela também escreve que leu que nos Estados Unidos estão exterminando os búfalos. Isso é um crime. Então ela tinha essa sensibilidade, essa identificação com a vida, com a natureza, mas a questão ecológica não estava colocada da mesma maneira que está colocada hoje.
Mas a lição que ela nos dá é que esse problema, como os outros grandes problemas criados pelo capitalismo, tem que ser enfrentado através do internacionalismo, porque a questão ecológica é uma questão planetária, uma questão global, e não podemos resolver ela em um só país. Temos que enfrentar ela em escala global. Precisamos de uma mobilização sócioecológica que seja internacional. Claro, partindo de lutas que são locais, regionais, isso é evidente. Mas com uma perspectiva que é global, porque o problema, a crise ecológica, não conhece fronteiras. Então a moral da história é, para mim, que o socialismo revolucionário do século XXI — ou, se quiser, o comunismo democrático do século XXI ou, melhor ainda, o ecossocialismo ou o eco-comunismo do século XXI — tem muito a aprender com Rosa Luxemburgo. Não podemos nos construir (essa perspectiva, essa estratégia revolucionária, essa visão de um socialismo com liberdade) sem nos inspirarmos na obra, na herança revolucionária de Rosa Luxemburgo.
“O socialismo é inseparável da liberdade e da democraciaPronto, esse é meu recadinho pra vocês e, mais uma vez, muito obrigado às companheiras e companheiros da Escola Marx. Muito obrigado a Luciana Genro, por me dar essa oportunidade de falar sobre o grande amor da minha vida: Rosa Luxemburgo.