Estratégia socialista e o partido
Transcrição da palestra para o .Diálogos para um Futuro Anticapitalista.
Abaixo está a transcrição de uma palestra intitulada “Marxismo, estratégia socialista e o partido” de Gilbert Achcar, que foi entregue à iniciativa sul-africana Dialogues for an Anti-capitalist Future (Diálogos para um Futuro Anticapitalista). Aqui, Achcar traça as concepções do partido desde Marx até o presente e suas implicações para a estratégia socialista de hoje. Esta transcrição foi revisada, editada e completada por Gilbert Achcar. A gravação original em vídeo da palestra pode ser encontrada aqui.
Obrigado por me convidar para falar sobre esta reunião. É para mim uma grande oportunidade de discutir estas questões com camaradas da África, o continente onde nasci e fui criado como um natural do Senegal.
O tema definido pelos organizadores é bastante amplo: “O marxismo, a estratégia socialista e o partido”. Estes temas estão todos no singular, embora abranjam uma pluralidade de casos e uma grande variedade de situações. Existem muitos “marxismos”, como todos sabem, cada marca acreditando ser a única verdadeira, autêntica. E certamente há muitas estratégias socialistas possíveis, já que as estratégias são normalmente elaboradas de acordo com as circunstâncias concretas de cada país. Não pode haver uma estratégia socialista global que seria a mesma em todos os lugares e em qualquer lugar. Da mesma forma, eu diria que não há uma concepção única do partido que seja válida para cada tempo e país. As questões estratégicas e organizacionais devem estar relacionadas com as circunstâncias locais. Caso contrário, obtém-se o que Leon Trotsky apropriadamente chamou de “internacionalismo burocraticamente abstrato”, e isso sempre se mostra muito estéril. Tenhamos isto em mente.
Discutirei algumas concepções que foram desenvolvidas no curso da história do marxismo, uma vez que nossa discussão adere a uma estrutura marxista. E vou tentar chegar a algumas conclusões tirando lições da agora longa experiência do marxismo.
Marx e Engels, o Manifesto Comunista, e a Primeira Internacional
Podemos datar o nascimento do marxismo como uma orientação política teórica e prática combinada, de volta ao Manifesto do Partido Comunista que saiu em 1848. Essa é uma longa história, que nos obriga a refletir sobre a enorme mudança nas condições entre nosso atual século XXI e a época em que nasceu o marxismo. Marx e Engels mostraram muita flexibilidade desde o início, porém, começando com este documento fundador do marxismo como um movimento político. A seção sobre a relação dos comunistas com os outros partidos da classe trabalhadora é bem conhecida, e bastante importante e interessante porque enquadra o tipo de pensamento político relacionado com a emergente teoria marxista, que ainda estava em sua fase inicial. É uma expressão precoce da perspectiva marxista e, como tal, não é perfeita, para ter certeza. Mas é um documento histórico muito importante para traçar uma nova perspectiva política global. Concebido como um “manifesto” político, ele está muito relacionado à ação.
Nele, lemos aquelas famosas linhas: “Em que relação os comunistas se relacionam com os proletários como um todo? Os comunistas não formam um partido separado, ao contrário dos outros partidos da classe trabalhadora”. Isto, é claro, não quer dizer que os comunistas não formem um partido próprio, já que o próprio título do documento é Manifesto do Partido Comunista. Na verdade, uma tradução mais precisa do original alemão teria sido: “Os comunistas não são um partido especial em comparação com os outros partidos da classe trabalhadora”. (“Die Kommunisten sind keine besondere Partei gegenüber den andern Arbeiterparteien”). O que realmente se enfatiza aqui é que o Partido Comunista não é diferente dos outros partidos da classe trabalhadora. Quanto ao que se entende por “outros partidos da classe trabalhadora”, isto é esclarecido algumas linhas mais adiante, mas a ideia de que os comunistas não são “opostos” a eles é explicada logo em seguida.
“Eles”, isto é, os comunistas “não têm interesses separados e separados dos do proletariado como um todo”. Em outras palavras, os comunistas não formam uma seita peculiar com sua própria agenda. Eles lutam pelos interesses de toda a classe proletária. Eles são parte integrante do proletariado e lutam por seus interesses de classe, não por seus próprios interesses. Esta é uma questão muito importante, de fato, porque sabemos pela história que muitos partidos da classe trabalhadora vieram a ser desligados, como blocos de interesses particulares, da classe como um todo. A história está cheia de tais casos.
Portanto, os comunistas não têm interesses separados e separados dos do proletariado como um todo. Nenhum princípio sectário próprio, que seria separado das aspirações da classe. O que há de distinto, então, nos comunistas? “Eles se distinguem dos outros partidos da classe trabalhadora somente por isso” – dois pontos se seguem:
- A perspectiva internacionalista ou o entendimento de que, “Nas lutas nacionais dos proletários de diferentes países, [os comunistas] apontam e trazem à frente os interesses comuns de todo o proletariado”. Esta ideia do proletariado como uma classe global com interesses independentes da nacionalidade (“von der Nationalität unabhängigen Interessen”) é um traço distintivo dos comunistas no Manifesto.
- A busca do objetivo final da luta da classe trabalhadora, que é a transformação da sociedade e a abolição do capitalismo e da divisão de classes. Nas várias etapas da luta contra a burguesia, os comunistas representam esta perspectiva de longo prazo. Eles têm sempre em mente o objetivo final, e nunca o perdem de vista ao ficarem atolados em lutas seccionais ou demandas parciais.
Estas são as duas características distintivas dos comunistas como uma seção da classe trabalhadora, como um grupo ou partido dentro da classe trabalhadora, lutando pelos interesses de toda a classe. Isto tem implicações tanto práticas quanto teóricas. No nível prático, os comunistas constituem “a seção mais avançada e resoluta dos partidos da classe trabalhadora de cada país”. Eles são os mais resolutos na prática política, pois sempre empurram o movimento para frente, em direção a uma maior radicalização. No nível teórico, graças à sua perspectiva analítica, os comunistas têm uma compreensão ampla e abrangente das várias lutas. Esse é, pelo menos, o papel que eles desejam desempenhar.
“O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os outros partidos proletários”. Esta ênfase renovada na uniformidade é importante, a idéia de que nós, os comunistas – e isso é Marx e Engels escrevendo aqui – somos apenas um dos partidos proletários, não o único partido proletário. A pretensão sectária de constituir o único partido da classe trabalhadora e que nenhum outro partido representa a classe não é definitivamente a concepção que é defendida aqui.
E qual é o objetivo imediato dos comunistas que é compartilhado com os outros partidos proletários? É uma boa indicação do que Marx e Engels queriam dizer com os outros partidos proletários. Esse objetivo é “a formação do proletariado em uma classe, a derrubada da supremacia burguesa e a conquista do poder político pelo proletariado”. Estes objetivos definem o que os dois autores quiseram dizer com os partidos proletários. E lançam luz sobre a frase inicial que diz que “os comunistas não formam um partido separado contra os outros partidos da classe trabalhadora” (ou um partido especial em comparação com os outros). Por partidos da classe trabalhadora, Marx e Engels significavam todos os partidos que lutam por estes objetivos: a formação política da classe, a derrubada do domínio burguês e a conquista do poder político pelo proletariado.
Além disso, o que a biografia política e os escritos de Marx e Engels mostram claramente é que eles não tinham uma teoria geral do partido; eles não estavam interessados em elaborar uma teoria tão geral. Creio que isso se deve ao ponto que comecei: que o partido é uma ferramenta para a luta de classes, para a luta revolucionária, e essa ferramenta deve ser adaptada a diferentes circunstâncias. Não pode haver uma concepção geral do partido, válida para todos os tempos e países. O partido de classe não é uma seita religiosa com o mesmo modelo em todo o mundo. É um instrumento de ação que deve se adequar às circunstâncias concretas de cada tempo e país.
Esta adaptação às circunstâncias reais estava constantemente em ação na história política de Marx e Engels, desde seu envolvimento político inicial com um grupo que eles rapidamente descobriram ser muito sectário – um grupo que estava mais próximo da perspectiva Blanquista – até a visão mais elaborada que eles expressaram em 1850, à luz da onda revolucionária que a Europa havia testemunhado em 1848. Em um famoso texto centrado na Alemanha, o Discurso do Comitê Central à Liga Comunista, os dois amigos descreveram os comunistas como implementando exatamente a abordagem que haviam delineado no Manifesto Comunista, esforçando-se para impulsionar o processo revolucionário e defendendo a organização do proletariado separadamente das outras classes.
Para este fim, eles pediram a formação de clubes de trabalhadores. Eles tinham em mente o precedente da Revolução Francesa, na qual clubes políticos como os Jacobinos eram atores-chave. Eles defendiam o mesmo para a Alemanha em 1850, mas desta vez como clubes proletários (formando o que hoje chamaríamos de partido de massa) cuja tática deveria consistir em constantemente superar os democratas burgueses ou pequeno-burgueses. O partido proletário deveria fazê-lo a fim de impulsionar o processo revolucionário, transformando-o num processo contínuo: “revolução permanente” é o termo que eles usaram naquele famoso documento.
Marx e Engels passaram depois vários anos sem estarem formalmente envolvidos em uma organização política, até a fundação da Primeira Internacional, em 1864. O papel que eles viram por si mesmos naquela época foi o de agir diretamente em nível internacional, ao invés de se envolverem em uma organização nacional. A Primeira Internacional reunia uma ampla gama de correntes. Era tudo menos monolítico, incluindo o que hoje chamaríamos de reformista de esquerda, juntamente com anarquistas e, é claro, marxistas. Os próprios anarquistas consistiam principalmente de duas correntes diferentes: seguidores do Proudhon francês e seguidores do Bakunin russo. Assim, uma variedade de tendências e organizações de trabalhadores aderiram à Primeira Internacional, cujo nome oficial era “Associação Internacional de Trabalhadores” na linguagem arcaica da época.
A Primeira Internacional culminou com a Comuna de Paris. Celebramos este ano o 150º aniversário da Comuna de Paris, a revolta das massas trabalhadoras, trabalhadores e pequenos burgueses parisienses, que começou em 18 de março de 1871 e terminou em sangrenta repressão após cerca de dois meses e meio. Este trágico desfecho pôs fim à Internacional após um forte aumento das lutas internas das facções, como acontece com muita frequência em tempos de contratempo e refluxo.
A Segunda Internacional, Democracia Social, Lênin e Luxemburgo
A etapa seguinte foi a emergência da social-democracia alemã, que Marx e Engels seguiram de muito perto da Inglaterra. Um dos textos famosos de Marx é a Crítica do Programa Gotha, que é um comentário sobre o esboço do programa do Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha antes de sua convenção de fundação em 1875.
Mais tarde, após a morte de Marx em 1883, a Segunda Internacional foi fundada no ano do primeiro centenário da Revolução Francesa, em 1889. Engels ainda estava ativo; ele morreria seis anos mais tarde. Marx e Engels, assim, contribuíram para tipos muito diversos de organização durante suas vidas. Considere a Primeira e Segunda Internacionais: a Segunda envolveu partidos de trabalhadores de massa que eram bastante diferentes dos grupos envolvidos na Primeira, e compreendia uma gama mais restrita de visões políticas. Embora fosse bastante aberto a discussões, os anarquistas não eram bem-vindos em suas fileiras. A Segunda Internacional baseava-se em partidos de trabalhadores de massa engajados em toda a gama de formas de luta de classes, desde lutas sindicais a eleitorais, lutas que tinham se tornado cada vez mais possíveis de serem travadas legalmente na maioria dos países europeus até o final do século XIX.
Estes partidos de trabalhadores envolvidos na luta de massas surgiram contra o pano de fundo de uma crítica ao Blanquismo, que é a ideia de que um pequeno grupo de revolucionários iluminados pode tomar o poder pela força, por meio de um golpe, e reeducar as massas depois de tomar o poder. Esta perspectiva, que surgiu de uma das correntes radicais que se desenvolveram a partir da Revolução Francesa, havia sido fortemente criticada por Marx e Engels como ilusória e contraposta à sua concepção profundamente democrática de mudança revolucionária.
Desde a época de Marx e Engels, o marxismo passou por vários avatares, como sabemos, mas o mais dominante no século XX foi indiscutivelmente o modelo russo. Mais especificamente, foi a variante do marxismo desenvolvida pela facção bolchevique do Partido Social Democrata dos Trabalhadores da Rússia, uma seção da Segunda Internacional. Após a cisão do partido em 1912, ambas as alas – Bolchevique e Menchevique – predominavam afiliadas à Internacional, que logo entrou em crise com o início da Primeira Guerra Mundial em 1914.
As condições russas, naturalmente, eram bastante excepcionais em comparação com as da França ou da Alemanha, ou da maioria dos outros países onde existiam grandes seções da Internacional. A Rússia era governada pelo czarismo, um Estado muito repressivo que não permitia nenhuma liberdade política, exceto por breves períodos. Os revolucionários russos tinham que trabalhar clandestinamente a maior parte do tempo, escondendo-se da polícia política.
É à luz destas condições muito específicas que o nascimento do leninismo como teoria do partido deve ser considerado. Ele nasceu logo no início do século passado, sendo seu primeiro documento importante o “O que fazer?” de Lenin. (1902). Este livro ofereceu uma concepção de organização e luta que foi muito fruto das circunstâncias que descrevi: o partido subterrâneo de revolucionários profissionais agindo de forma “conspiratória”, que era a única maneira dos revolucionários poderem operar sob as circunstâncias daquela época na Rússia.
E ainda assim, quando examinamos a evolução do pensamento de Lênin sobre o assunto, vemos que depois da Revolução de 1905, ele modificou sua perspectiva para uma melhor avaliação do potencial de radicalização espontânea das massas da classe trabalhadora. Enquanto inicialmente ele havia insistido que a inclinação espontânea dos trabalhadores deveria permanecer dentro dos limites de uma perspectiva sindicalista, depois de 1905 ele percebeu que as massas operárias poderiam, em momentos, ser mais revolucionárias do que qualquer outra organização – inclusive a sua própria!
No entanto, isto não resolveu a disputa que se desenrolou antes de 1905 entre Mencheviques e Bolcheviques sobre a concepção da parte: Qual deveria ser o tamanho da filiação do partido? Quais deveriam ser as condições para a filiação? Todos os membros do partido deveriam estar plenamente envolvidos na atividade política diária, ou a filiação deveria incluir apoiadores que pagam as contribuições, independentemente de seu nível de envolvimento ativo? Essa discussão esquentou em 1903. Mas quando o partido se separou anos depois, em 1912, a divergência mais grave foi política – a atitude em relação à burguesia liberal – do que organizacional. Isto explica a atitude de alguém como Trotsky, que foi muito crítico da concepção do partido expressa em O que fazer?, enquanto ainda estava politicamente mais próximo dos bolcheviques. Assim, sua postura conciliadora em relação às duas alas após 1912, já que concordava e discordava com cada uma delas em questões diferentes.
Durante esse mesmo período, Rosa Luxemburgo foi na verdade mais crítica ao Partido Social Democrata Alemão do que Lenin. Enquanto Lenin considerava o partido como um modelo e inspiração chave, Rosa Luxemburgo era a crítica de esquerda mais proeminente da liderança do partido. Ela também criticou a concepção de Lenin sobre o partido porque ela acreditava profundamente no potencial revolucionário das massas trabalhadoras e na sua capacidade de flanquear a liderança do partido social-democrata em tempos revolucionários.
Este breve, e apenas parcial, panorama é suficiente para mostrar que existia uma complexa variedade de concepções do partido dos trabalhadores e de seu papel. Este fato faz com que seja ainda mais importante considerar as diferentes condições dos diferentes países nos quais os detentores destes pontos de vista estavam baseados. O partido bolchevique transformou-se em um grande partido de massa em 1917. No decorrer da radicalização e do processo revolucionário daquele ano, o partido conquistou uma grande parte da classe trabalhadora russa e outros componentes da base social da Revolução Russa: soldados, camponeses e outros. A fim de absorver a contínua radicalização em massa, o partido abriu amplamente suas fileiras. Vemos aqui no trabalho a flexibilidade de forma organizacional que é necessária para se adaptar às circunstâncias em mudança.
A fórmula “centralismo democrático”, que geralmente é atribuída ao leninismo, na verdade não veio de Lenin. Ela resume o funcionamento organizacional da social-democracia alemã, indicando a combinação de democracia no debate e centralismo em ação. Não se destinava a impedir a discussão. Pelo contrário, a ênfase foi colocada na metade democrática da expressão. Mesmo sob as duras condições da Rússia czarista, sempre houve muita discussão, disputas abertas e criação de facções organizacionais dentro de cada ala do Partido Social Democrata dos Trabalhadores da Rússia. As discussões foram abertas dentro da própria Rússia quando as condições mudaram em 1917.
Só mais tarde, em 1921, no contexto das difíceis condições resultantes da guerra civil, é que as facções foram proibidas no Partido Comunista (herdeiro da ala bolchevique do Partido Social Democrata dos Trabalhadores), uma decisão que provou ser um erro fatal. Ela não resolveu nenhum problema, mas foi utilizada por uma facção do partido, um grupo dentro de sua liderança, a fim de assumir o controle total do partido e se livrar de qualquer oposição. Esse foi o início da mutação estalinista.
Em 1924, Stalin redefiniu o leninismo e o consagrou em um conjunto de dogmas. Isto incluiu uma concepção muito centralista e antidemocrática do partido: o culto do partido e sua liderança, a disciplina de ferro, a proibição das facções e, portanto, da discussão organizada dentro do partido. Aí se explicita a concepção do partido como o instrumento da “ditadura do proletariado”, uma visão estranha não apenas a Marx e Engels, mas até mesmo a um livro como Estado e Revolução (1917), no qual o partido não é sequer mencionado na definição daquela ditadura (isto, de alguma forma, é na verdade um problema, pois o livro deveria ter discutido os direitos e o papel dos partidos após a revolução). Mas o ponto-chave é que esta ideia – que o partido encarna a ditadura do proletariado – também passou a fazer parte do que era considerado predominantemente o leninismo naquela época.
Gramsci, Guerra de Posição e Manobra
Da mesma forma que vários avatares do marxismo se desenvolveram, houve vários leninismos: o dos estalinistas, que acabo de descrever, e outros leninismos, especialmente entre grupos que se autodenominam trotskistas. Alguns destes últimos eram na verdade bastante próximos da versão estalinista; do lado oposto, encontramos alguém como Ernest Mandel, o marxista belga, cujo leninismo é bastante próximo da perspectiva de Rosa Luxemburgo.
Uma reflexão muito interessante que se desenvolveu após a Revolução Russa é a de Antonio Gramsci, o famoso marxista italiano. Ao considerar os acontecimentos que se desdobraram na Europa, ele enfatizou a diferença entre as condições da Rússia e as da Europa Ocidental. Voltamos aqui, novamente, ao nosso ponto de partida: as circunstâncias, a situação concreta de cada país e região. Na Europa Ocidental, a democracia liberal acompanhou a “hegemonia” burguesa. A burguesia, para governar, não dependia apenas da força, mas também do consentimento de uma maioria popular.
E essa grande diferença deve ser levada em conta, em vez de simplesmente copiar a experiência russa. Sob condições típicas ocidentais, o partido dos trabalhadores deve se esforçar para construir uma contra hegemonia, ou seja, conquistar o apoio da maioria para romper com o domínio ideológico burguês. Deve travar uma guerra de posição sob condições democráticas liberais que permita ao partido conquistar posições dentro do próprio estado burguês através de eleições. Essa guerra de posição é um prelúdio para uma guerra de manobra, uma distinção emprestada da estratégia militar. Em uma guerra de posição, uma força armada se entrincheira em posições e fortalezas, enquanto que em uma guerra de manobra, as tropas são postas em movimento para ocupar o território do inimigo e romper sua força armada. Assim, sob condições típicas ocidentais, o partido dos trabalhadores deve prever uma guerra prolongada de posição enquanto está pronto para mudar para uma guerra de manobra, se e quando isto for necessário.
Uma Concepção Materialista do Partido, a Internet
Deixe-me acrescentar a tudo isso o que eu chamaria de concepção materialista do partido. Para os marxistas, o ponto de partida na avaliação das condições sociais e políticas é o materialismo histórico: as formas de organização de uma dada sociedade tendem a corresponder a seus meios tecnológicos. Este axioma pode ser estendido a todas as formas de organização: elas normalmente se adaptam às condições materiais. Este é de fato o caso dos modos de gestão das empresas capitalistas. O mesmo vale para a organização revolucionária: seu tipo e forma dependem muito dos meios que utiliza para produzir sua literatura, que por sua vez são determinados pela tecnologia disponível e pelas liberdades políticas. Assim, se um partido depende principalmente da gráfica subterrânea, é necessariamente uma organização conspiratória que requer um alto grau de centralização e sigilo. Se puder imprimir sua literatura de forma aberta e legal, pode ser uma organização aberta e democrática (se for conspiratória por escolha, ao invés de necessidade, geralmente é mais uma seita do que um partido). Isto nos leva à Internet como uma grande revolução tecnológica na comunicação. A crença de que esta mudança tecnológica não deve afetar a concepção do partido é o sinal inequívoco de que este último se tornou uma organização dogmática de caráter religioso.
Atualmente, todas as formas de organização são muito condicionadas pela existência da Internet. É por isso que o trabalho em rede se tornou uma forma de organização muito mais difundida do que jamais poderia ser antes. O trabalho em rede possibilitado pelas redes virtuais, como as mídias sociais, também pode facilitar a constituição de redes físicas. Graças à Internet, uma forma muito mais democrática de funcionamento é possível, tanto no compartilhamento de informações quanto na tomada de decisões. Você não precisa trazer pessoas de muito longas distâncias para se encontrarem fisicamente toda vez que precisar realizar uma discussão democrática e tomar uma decisão.
O potencial da Internet é enorme, e estamos apenas no início de seu uso. Ela alimenta a forte aversão ao centralismo e aos cultos de liderança que existe entre a nova geração. Acredito ser bastante saudável que tal desafio exista entre a nova geração, em comparação com os padrões que prevaleceram no século XX.
O trabalho em rede está muito na ordem do dia. Começou cedo com os Zapatistas que defendiam este tipo de organização nos anos 90. Uma grande encarnação hoje é o “Black Lives Matter” (BLM). Este movimento começou há alguns anos, principalmente como uma rede em torno de uma plataforma on-line e um conjunto compartilhado de princípios. Os comitês locais se comprometem apenas com os princípios gerais do movimento, que não tem estrutura central: apenas uma rede horizontal sem um centro líder; sem hierarquia, sem verticalidade. É um produto do nosso tempo que não teria sido possível em tal escala antes da tecnologia moderna. É uma boa ilustração da compreensão materialista da organização.
O trabalho em rede também está em andamento em outro grande desenvolvimento recente, que ocorreu no continente africano, no Sudão. A Revolução Sudanesa, iniciada em dezembro de 2018, testemunhou a formação de Comitês de Resistência, que são comitês locais ativos principalmente em bairros urbanos, cada um deles envolvendo centenas de membros, em sua maioria jovens. Em cada grande zona urbana, existem dezenas de comitês deste tipo, com centenas de participantes cada um. Dezenas de milhares de pessoas estão organizadas dessa forma em áreas urbanas chave. Funcionam como BLM: princípios comuns, objetivos comuns, nenhuma liderança central, uso intensivo das mídias sociais. Eles não se inspiraram na BLM, no entanto. Eles são, antes, um produto da época, um produto da aversão acima mencionada às experiências centralizadas do passado e seus tristes resultados, combinados com a nova tecnologia.
Isto, no entanto, não anula a necessidade de organização política dos semelhantes, de pessoas que, como os comunistas do Manifesto Comunista, compartilham pontos de vista específicos e querem promovê-los. Mas o grau qualitativamente mais elevado de democracia organizacional permitido pela tecnologia moderna também se aplica a tais partidos da mesma mentalidade. Os [revolucionários marxistas] devem visar a construção de um partido de massa de classe trabalhadora e eventualmente liderá-lo – se e quando eles conseguirem convencer a maioria de suas opiniões. É também por isso que eles deveriam se juntar aos partidos de massa, classe trabalhadora e anticapitalistas quando estes existem, ou então contribuir para construí-los.
Para terminar, o ponto-chave que fiz no início é que o tipo de organização depende das condições concretas do local onde será construída. O tempo e o lugar são decisivos, além da dimensão tecnológica. É muito importante evitar cair no sectarismo dos autoproclamados “partidos de vanguarda”. Vanguarda é um status que deve ser adquirido na prática, não proclamado. Para ser verdadeiramente uma vanguarda, você deve ser considerado como tal pelas massas.
Os revolucionários marxistas que desejam construir um partido de vanguarda devem se considerar, como no Manifesto Comunista, como parte de um movimento de classe mais amplo envolvendo outras organizações de diferentes tipos. Eles devem visar a construção de um partido de massa da classe trabalhadora e eventualmente liderá-lo – se e quando eles conseguirem convencer a maioria de suas opiniões. É também por isso que eles deveriam se juntar aos partidos de massa, classe trabalhadora e anti-capitalistas onde estes existam, ou então contribuir para construí-los. Não é construindo um “partido de vanguarda” autoproclamado e recrutando membros para suas fileiras um a um que se constrói um partido de massa. Não é assim que funciona. Além disso, o socialismo só pode ser democrático. É banal dizê-lo, mas significa que você não pode mudar a sociedade para melhor sem uma maioria social a favor da mudança. Caso contrário, como a história nos mostrou de forma tão trágica, você acaba com a produção do autoritarismo e da ditadura. E isso vem com um preço enorme.
Meu último ponto é sobre a necessidade de vigilância democrática contra os efeitos corrosivos das instituições burguesas e as tendências burocráticas. Nem todos os países do mundo, mas a maioria deles, são países onde atualmente é possível engajar-se na guerra de posições descrita por Gramsci, que inclui uma luta dentro das instituições eletivas do Estado burguês. Isto deve ser combinado com uma luta de fora, é claro, através de sindicatos e várias formas de luta de classes, tais como greves, assembleias, ocupações, manifestações, e assim por diante.
No decorrer da guerra de posições, os revolucionários são confrontados com os efeitos corrosivos das instituições burguesas, porque os oficiais eleitos podem ser afetados pelo poder corruptor do capitalismo. O mesmo pode ser dito do poder corruptor da burocracia, que está em jogo dentro dos sindicatos e outras instituições da classe trabalhadora. Os revolucionários devem permanecer vigilantes contra esses riscos inevitáveis e pensar em novas maneiras de impedir que esse efeito corrosivo prevaleça. Essa é também uma parte fundamental das lições da história que devemos ter em mente.
Artigo originalmente publicado em Tempest. Reprodução da tradução realizada pelo Observatório Internacional do PSOL.