70 anos de uma paixão popular: o vigor da telenovela no Brasil
Parte do catálogo de telenovelas da plataforma de streaming Globoplay (Reprodução/Globoplay).

70 anos de uma paixão popular: o vigor da telenovela no Brasil

A partir de uma linguagem cotidiana, a telenovela brasileira dialoga diretamente com valores, compor-tamentos, modos e projetos de vida, tabus, o que nos ajuda a entender a relevância social e a capacidade de comoção de tal produto cultural

Isaque Castella 15 dez 2021, 13:39

Quem nunca se deparou, ao longo das últimas décadas, com algum discurso apocalíptico que profetizava o fim ou a decadência da telenovela? Quem nunca ouviu por aí que “telenovela é coisa do passado, tem prazo de validade”?

Ocorre que tais profetas, por ignorância ou má-fé, não se atentam ao peso adquirido pelo produto em questão no consumo cultural de sociedades latinoamericanas, como a brasileira, nas quais a telenovela é, em muitos casos, a “cereja do bolo” das grades televisivas. Fenômenos de audiência na TV aberta, chegando diariamente a milhões de casas, as telenovelas garantiram, mais recentemente, espaço nos serviços de streaming. São várias as plataformas disponibilizando folhetins clássicos e/ou embarcando na produção de telenovelas originais, o que mostra como a demanda por esse tipo de conteúdo é significativa. Cabe destacar aqui o sucesso de Verdades Secretas 2, escrita por Walcyr Carrasco, em alta no Globoplay desde que lançada, há poucos meses, como a primeira telenovela brasileira para o streaming.

Qual seria, então, o segredo por trás de tamanha mobilização social? Uma resposta bastante plausível diante dessa indagação gira em torno de algo que aqueles que “torcem o nariz” para as telenovelas fazem questão de não enxergar. Trata-se de um produto extremamente dinâmico, que acompanha as transformações sociais, culturais, econômicas, políticas, dos contextos em que se inserem. Prestes a completar 70 anos, no próximo dia 21 de dezembro, a telenovela brasileira, por exemplo, tem buscado dialogar com a sociedade de cada época, influenciando-a e, ao mesmo tempo, se deixando influenciar, nessa via de mão dupla.

Enquanto obra aberta, por excelência, a telenovela produzida no Brasil é, na prática, muito mais do público do que de seus autores. São os telespectadores que, quase sempre, acabam ditando os rumos das tramas, de acordo com o modo como, naquele momento, recebem as histórias propostas. Ao invés de audiências passivas ou manipuláveis, o que temos são “noveleiros” que, a partir de seus conjuntos de valores e percepções de mundo, apoiam ou rejeitam determinadas personagens, situações, abordagens, o que costuma ser levado em consideração.

Na busca constante pela aproximação com o público, o gênero telenovela no Brasil passou por diversas adaptações, sendo, talvez, a mais notável aquela introduzida ao final dos anos 60, mais precisamente em 1968, com Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, na TV Tupi. Até então, as telenovelas eram marcadas por temáticas distantes do cotidiano dos brasileiros, como as trazidas pela cubana Glória Magadan, autora de tramas de “capa e espada”, fantasiosas, ambientadas em cenários exóticos. Com a revolução de Beto Rockfeller, folhetim que ousou apresentar uma linguagem coloquial e uma trama mais realista, o estilo fabuloso e pomposo cedeu lugar a uma teledramaturgia preocupada em retratar os dramas do cotidiano de pessoas mais críveis, no sentido de que, agora, o telespectador poderia mais facilmente se identificar com a trajetória das personagens folhetinescas, reconhecendo-se nelas.

Na TV Globo, o novo modelo se consolidou com as telenovelas de estrondoso sucesso escritas por Janete Clair, que já tinha larga experiência na criação de radionovelas. Sua elogiadíssima Pecado Capital, por exemplo, conquistou o público e a crítica especializada com uma trama realista, que traz um questionamento ético em torno das escolhas do protagonista Carlão (Francisco Cuoco). A novelista conseguia tocar o seu telespectador com dilemas da vida cotidiana e feridas sociais, capazes de suscitar muitos debates na sociedade. Irmãos Coragem, Selva de Pedra e O Astro também merecem ser destacadas como grandes obras da “Maga das Oito”, como Janete ficou conhecida. Para se ter uma ideia, ela parou o país em 1978. Todos queriam saber, ao final de O Astro, quem matou Salomão Hayalla (Dionísio Azevedo). Trata-se de um dos maiores “quem matou?” da história da teledramaturgia nacional, recurso do qual alguns autores lançam mão para segurar o público em torno do mistério.

 O saudoso Gilberto Braga, juntamente com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, propiciou aos brasileiros outro grande momento de frisson nacional ao deixar todos criando suas teorias sobre a identidade do assassino da vilã Odete Roitman (Beatriz Segall), uma das personagens mais inesquecíveis de todos os tempos. Vale Tudo, de 1988, a telenovela em questão, é, inclusive, considerada por muitos a maior obra do gênero no Brasil. “Vale a pena ser honesto no Brasil?”, questionava a trama de forte cunho ético-político. O tão famoso “jeitinho brasileiro” entrou na pauta de discussão de milhões, promovendo profundas reflexões políticas a partir do sofá da sala, que prosseguiram em novelas posteriores de Gilberto, a saber, O Dono do Mundo e Pátria Minha.

Conhecido por retratar a visão preconceituosa de uma elite econômica sobre os mais pobres, o novelista nos colocou diante de uma grã-finagem hipócrita e de tipos sociais bastante questionáveis, como alpinistas dispostos a tudo para conquistarem um lugar privilegiado no high society. Quem não se lembra ainda de telenovelas como Celebridade, Paraíso Tropical e o fenômeno Dancin’ Days, que ditou moda, influenciou comportamentos e colocou muita gente para dançar ao som da Disco Music?

Além das questões sociais envolvendo as classes médias e as elites urbanas, tão presentes nas telenovelas de Gilberto Braga – e também de Manoel Carlos, o cronista do Leblon – as questões agrárias e a vida no campo ganharam visibilidade a partir das obras de Benedito Ruy Barbosa, como Renascer, O Rei do Gado, Cabocla e a prestigiada Pantanal, sucesso da Manchete que ganhará, em 2022, um remake na Globo. O novelista, apreciador das tramas rurais, ainda tratou, como nenhum outro, dos imigrantes no Brasil. Quem não se emocionou com a belíssima Terra Nostra, sobre a imigração italiana? Dialogando com as raízes constitutivas da sociedade brasileira, a telenovela, uma vez mais, se mostra como um gênero popular, que tematiza as experiências do nosso povo, em toda a sua pluralidade.

A diversidade cultural do Brasil é uma característica sobre a qual a teledramaturgia procurou, historicamente, se debruçar. Não foram poucas as tramas ambientadas para além do eixo Rio – São Paulo. O baiano Dias Gomes trouxe, a partir dos anos 1970, o seu estado para as telinhas, com Verão Vermelho e a marcante O Bem-Amado, a primeira telenovela produzida em cores no país. O Nordeste ganhou protagonismo em grandes obras de sua autoria, como a festejada Roque Santeiro e Saramandaia, homenageada com um remake recente, escrito por Ricardo Linhares, e um marco do estilo conhecido como realismo fantástico.

Consagrado com tal estilo, o pernambucano Aguinaldo Silva assinou clássicos ambientados no Nordeste brasileiro, como Tieta, baseada na obra de Jorge Amado, Pedra sobre Pedra, Fera Ferida, inspirada no universo ficcional de Lima Barreto, A Indomada e Porto dos Milagres, também baseada na literatura de Jorge Amado, escritor mais adaptado pela teledramaturgia nacional. Gabriela está entre as telenovelas de maior sucesso nessa linha. Originalmente criada por Walter George Durst, em 1975, a partir do romance Gabriela, Cravo e Canela, chegou até a ganhar um remake em 2012, escrito por Walcyr Carrasco.

A região e a cultura amazônicas não ficaram de fora dos folhetins. Entre 1991 e 1992, a Rede Manchete produziu Amazônia, telenovela de Denise Bandeira e Jorge Duran. Na TV Globo, o Norte do Brasil esteve presente tanto em minisséries quanto em telenovelas. A Ilha de Marajó foi cenário de Amor Eterno Amor, de Elizabeth Jhin. Além do Horizonte, de Carlos Gregório e Marcos Bernstein, foi parcialmente gravada no estado do Amazonas. Glória Perez trouxe a cultura do estado do Pará para a trama de A Força do Querer, um dos sucessos recentes da emissora. Por sua vez, O Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco, é ambientada no Tocantins.

As belezas e os costumes do Sul apareceram nas telinhas em diversas telenovelas. Sonho Meu, de Marcílio Moraes, atualmente reprisada pelo canal VIVA, se passa em Curitiba, com muitas cenas externas gravadas na capital paranaense. Já Era Uma Vez, de Walther Negrão, traz uma trama ambientada no interior catarinense. Florianópolis foi escolhida por Gilberto Braga e Ricardo Linhares como um dos cenários de Insensato Coração. Lícia Manzo inovou ao apresentar uma telenovela quase integralmente ambientada no Rio Grande do Sul. A história de A Vida da Gente acontece em Porto Alegre e na Serra Gaúcha, região que retornou aos televisores, no horário das 18h, alguns anos depois, em Além do Tempo, novela de Elizabeth Jhin.

Minas Gerais é outro estado queridinho da teledramaturgia, servindo como cenário para a gravação de várias cenas e sequências de minisséries e telenovelas. Além disso, algumas histórias se passaram mesmo em Minas. Coração de Estudante, de autoria de Emanuel Jacobina, teve suas tramas ambientadas na fictícia cidade mineira de Nova Aliança, sendo parcialmente gravada em Tiradentes. Passaperto foi outra cidade fictícia em Minas, criada por Walther Negrão em Desejo Proibido. Elizabeth Jhin, nessa linha, criou Rosa Branca, a cidade de Espelho da Vida, gravada em diversos municípios históricos mineiros. Diamantina representou Vila Rica na trama de época de Liberdade, Liberdade, telenovela das 23h de Mário Teixeira, baseada no argumento de Márcia Prates a partir do livro Joaquina, Filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz. O Arraial do Tijuco, antigo nome da região de Diamantina, ainda é o local onde se passa a trama da clássica Xica da Silva, obra de muito sucesso da Manchete, escrita por Walcyr Carrasco, sob o pseudônimo Adamo Angel, baseada no romance Chica Que Manda, de Agripa Vasconcelos.

Mesmo com a perceptível variedade de temáticas que marca a riquíssima história da telenovela no Brasil – que vai das tramas históricas ou de época à crônica do cotidiano de uma elite carioca, passando pelas tramas rurais, pelo realismo fantástico e pela adaptação de clássicos de reconhecidos nomes da literatura brasileira -, existe um elo fundamental entre as obras do gênero telenovela. Todas elas, em diferentes graus, falam, com uma linguagem coloquial, de problemas que fazem, direta ou indiretamente, parte da vida de qualquer pessoa. Os conflitos familiares são aqueles que aparecem sempre, vez que todo mundo estabelece algum tipo de relação familiar, considerando aqui, claro, que família é uma entidade que pode assumir diferentes configurações.

Nesse sentido, é possível afirmar, sem muito medo de errar, que a telenovela é sobre a família, sobre as relações cotidianas, das mais elementares às mais improváveis, sobre questões que são, inicialmente, da esfera privada (se é que essa categoria faz algum sentido), mas compartilhadas por muitos, que têm desdobramentos políticos mais amplos. A telenovela permite que cada telespectador se reconheça em determinada situação e, assim, se perceba conectado a outras pessoas, famílias, grupos, classes. Ela é, ao mesmo tempo, entretenimento e reflexão, alienação e conscientização. Um gênero complexo, calcado em supostas contradições.

É por isso que é muito difícil encontrar alguém que nunca tenha sido tocado ou se deixado envolver por alguma trama de telenovela. Mesmo quem diz não gostar desse produto audiovisual, ou não acompanhar. A telenovela está tão enraizada na cultura brasileira (e latinoamericana) que extrapola o seu consumo imediato, se fazendo presente nas redes sociais, nas mesas de bar, no almoço de família aos domingos, nas salas de aula, nos ambientes de trabalho, nas revistas expostas nas bancas.

Cabe destacar que a telenovela é, sobretudo, democrática, haja vista sua entrada em praticamente todos os lares brasileiros. Não existe comparação possível entre a força/o peso de uma telenovela exibida na TV aberta e de quaisquer outros produtos disponibilizados via plataformas de streaming. Os folhetins diários conversam com brasileiros de todas as classes, do extremo norte ao extremo sul do país. E também com pessoas de várias partes do mundo. As telenovelas brasileiras são exportadas em grande escala. Quem nunca ficou sabendo, por exemplo, da fama internacional de Lucélia Santos por seu papel em Escrava Isaura, de Gilberto Braga? Ou do estouro mundial do fenômeno recente Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, cujo final chegou a parar a Argentina, como uma final de Copa do Mundo?

O que há de tão especial na trama protagonizada por Nina/Rita (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves)? Além de dialogar com o Brasil da época de sua primeira exibição, em 2012, quando se falava muito da emergência de uma nova classe média brasileira, a telenovela tinha como cerne uma problemática “universal” (com todas as aspas que esse termo sempre exige). Trata-se de uma história de vingança que perpassa um conflito familiar que implicou no cometimento de barbaridades no passado, como o abandono, por Carminha, de sua enteada, Rita, em um lixão. É uma trama principal muito forte, capaz de promover grande comoção.

Recentemente, Avenida Brasil foi reprisada nas tardes da Globo, no Vale a Pena Ver de Novo, obtendo uma audiência considerada excelente para o horário, como ocorreu com outras telenovelas com tramas principais cativantes, em torno, principalmente, de complexas situações familiares, temperadas com ingredientes tipicamente melodramáticos. Senhora do Destino, de Aguinaldo Silva, está nessa seleta lista. Ela conta a história da busca incessante de Maria do Carmo (Susana Vieira) por sua filha Isabel/Lindalva (Carolina Dieckmann), sequestrada, ainda bebê, pela megera Nazaré Tedesco (Renata Sorrah). Por Amor, de Manoel Carlos, também faz parte desse grupo. É a trama de Helena (Regina Duarte), uma mulher capaz de dar, secretamente, em um gesto de amor, o próprio filho recém-nascido para sua filha, Eduarda (Gabriela Duarte), que, depois de uma gravidez simultânea à de sua mãe, tem um parto complicado e perde o bebê. Laços de Família, novamente de Manoel Carlos, é outro sucesso da faixa vespertina. A história gira em torno do triângulo amoroso entre Helena (Vera Fischer), sua filha Camila (Carolina Dieckmann) e Edu (Reynaldo Gianecchini). Nesse caso, a mãe abre mão do amado pelo amor à filha. Por último, é necessário falar de Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, fenômeno na reprise em 2020. Trata-se da saga de Candinho (Sérgio Guizé) em busca da mãe biológica, Anastácia (Eliane Giardini), de quem foi separado após o nascimento. O grande empecilho para esse encontro é a perversa sobrinha de Anastácia, Sandra (Flávia Alessandra), capaz de tudo para não perder a herança da tia rica.

Em face dos exemplos apresentados de telenovelas bem-sucedidas, a fórmula para o sucesso não parece tão misteriosa. Se tem uma coisa que o brasileiro gosta, é de uma emocionante “treta” de família. Nada é tão interessante como tomar um lado em situações como essas, se engajar na torcida por um herói, ou heroína, e odiar um vilão, uma vilã, ou uma personagem com interesses e atitudes reprovados pelo sistema de valores dessa sociedade. Esperto o suficiente para compreender o melodrama como matriz narrativa, estética e cultural da América Latina, o gênero telenovela tem vida longa, contra todos aqueles que pregam e/ou desejam a sua queda.


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