Pequeno inventário dos dias que se seguiram à execução de Marielle
Um relato de Honório Oliveira, dirigente do PSOL que acompanhou a repercussão do assassinato de Marielle desde os primeiros momentos.
Eram quase dez horas da noite quando meu telefone tocou, naquele 14 de março de 2018. Eu estava caminhando da Cinelândia para casa. Do outro lado da linha, uma dirigente da nossa organização conta que um telefonema confuso para o gabinete do então deputado federal Chico Alencar – de quem ela era assessora – informava que o carro de Marielle tinha sido alvo de tiros no bairro do Estácio, na altura da rua João Paulo I.
Desliguei o telefone, liguei para Marcelo Freixo e me apressei a entrar num táxi rumo ao local do crime. Ao chegar, encontrei dois assessores de Marielle e deparei-me com o carro perfurado – dentro, ela e o motorista, Anderson Gomes, sem vida. Uma cena que não dá pra esquecer. A assessora que acompanhava Marielle na ocasião, Fernanda Chaves, única sobrevivente, havia sido retirada do veículo e encaminhada ao hospital minutos antes.
O cenário era, claramente, de execução. Tiros agrupados no lado direito do banco traseiro, com dois veículos em movimento. Uma ação profissional.
Aos poucos, outros dirigentes e militantes do PSOL começaram a chegar, a imprensa também. A primeira declaração do partido teria muita importância. Tarcísio Motta, Freixo e eu nos afastamos do tumulto para dialogar sobre qual seria nossa primeira palavra pública.
Ponderei que o cenário era de execução e que o que seria dito por nós naquele momento teria enorme importância na forma como o caso seria tratado e investigado. Tarcísio tinha a mesma opinião. Concordamos sobre qual seria o melhor caminho: assim, a primeira entrevista que o PSOL deu, na figura de Freixo, tratou com força da hipótese de execução.
Apesar do choque brutal a que todos nós estávamos submetidos naquele momento, conseguimos dar o passo inicial correto. Passo desperdiçado nas decisões seguintes.
Algumas horas depois, saímos da cena do crime e reunimos parte da direção do partido para debater o que faríamos no dia seguinte – quando aconteceria o enterro de Marielle. A notícia se alastrava feito pólvora. Seguramente, quem encomendou o assassinato calculou mal o impacto do crime e acabou dando início a um processo de comoção planetária.
O velório de Marielle seria só o início da impressão, na história, de um dos símbolos do nosso século: a figura de Marielle rodou o mundo e tornou-se exemplo de luta e ativismo para milhões, fato que perdurará pelas próximas gerações. A imagem de militantes, dirigentes e parlamentares carregando os caixões de Marielle e Anderson e foi capa de todos os jornais brasileiros – foto de uma cena que ainda tenho nítida na memória. O velório se transformou em um ato de milhares de pessoas, que saíram em marcha pelo centro do Rio de Janeiro – envoltas numa energia forte, pesada, densa. Tristeza e indignação transbordavam. Seria necessário organizar e dar coerência a tudo isso. Um desafio enorme, o maior até então enfrentado pela camada de dirigentes e ativistas que estavam à frente dos processos que antecederam o crime bárbaro.
Os dias que se seguiram foram de reuniões e manifestações nas ruas. Uma polêmica se instalou no interior do partido: qual seria a consigna da necessária campanha que faríamos diante do brutal assassinato de nossa companheira? Um debate curioso se estabeleceu: uma ala do PSOL não topava o mote “Justiça para Marielle” porque acreditava que nele existia uma legitimação do Estado penal. Afirmavam que Marielle jamais aceitaria uma campanha com pedido de justiça – algo no mínimo estranho. Criou-se um impasse e, pela delicadeza do momento, o partido acabou ficando sem linha unitária.
Assim, nós, do MES, tocamos a nossa. Acreditávamos que seria escandaloso não pedir justiça. Fizemos, por meio do jornalista Glenn Greenwald, uma campanha internacional, com o mote “Justiça Para Marielle”, que contou com artistas, diretores e personalidades do mundo: Ava Duverney, Naomi Campbell, Danny Glover, Viggo Mortensen, Oliver Stone, Ken Loach, Chimamanda Ngozi, entre outros.
Mas, antes disso, a vida tratou de resolver a polêmica, que acabou quando, no primeiro ato realizado na Maré, conjunto de favelas que foi berço de Marielle, o principal carro de som trazia uma grande faixa, feita pelos próprios moradores, onde se lia “Justiça para Marielle”. Naquele momento, era o povo do Rio de Janeiro que estava “dirigindo” o PSOL. E de certa forma, assim foi nos meses que se seguiram.
Marielle, enquanto figura pública, foi fruto de um processo de acumulação e reconhecimento do PSOL e seu líder à época, Freixo. Um movimento que vinha das lutas sociais e políticas travadas pelo partido na última década, como a “Primavera Carioca”, num estado conflagrado e com enormes contradições. Existia pouca estratégia partidária em relação a onde se chegaria. A intervenção do PSOL era eminentemente democrática, fluida e muito menos orgânica do que a dimensão de massas assumida pelo partido necessitava para encarar os desafios seguintes.
Nesse sentido, o assassinato de Marielle tem um duplo componente de barbaridade e covardia: ela ainda era uma líder a se “realizar”, seria muito maior e mais potente nos anos seguintes do que era no momento de seu assassinato. Além disso, tudo indica que foi assassinada não por conta de sua própria atuação, mas por vingança, pelo fato de ter trabalhado com Freixo. Morreu por um risco que não assumiu, andava em carro comum e sem seguranças. Foi uma covardia tremenda.
A morte de Marielle desencadeou um processo disruptivo, catapultando lideranças negras e feministas. Marielle foi, sim, semente – a um custo alto e que causou um trauma ainda não superado, mas cheio de significado e com uma mensagem de um futuro poderosa.
O primeiro passo correto em relação ao que comunicar sobre o ocorrido, praticamente minutos depois e in loco, deu a falsa impressão de que as coisas iam caminhar para a elucidação do assassinato no prazo de poucos meses. Ainda estava oculta, naquele momento, a surpreendente rede subterrânea que tramou o assassinato.
No Rio, uma organização de assassinos de aluguel operava a preço de ouro para matar figuras proeminentes. O “Escritório do Crime”, como era chamada a organização, operava com assassinos profissionais, alguns com origem e formação nos grupos de elite das forças de segurança pública do estado. Foram membros dessa quadrilha que executaram Marielle – como saberíamos mais tarde.
Inacreditavelmente, o Escritório do Crime operava havia pelo menos dez anos sem que a opinião pública e qualquer autoridade houvesse pronunciado seu nome. Até a investigação da morte de Marielle, promoviam assassinatos quase sem deixar rastros e com um nível de profissionalismo incomum.
A Polícia Civil e, principalmente a Divisão de Homícidios (DH-Capital), sequer mencionaram, em qualquer inquérito, a existência da organização – que só passou a ser conhecida após a revelação do miliciano Orlando Curicica. Em depoimento, Curicica afirmou ainda que agentes da DH recebiam propina do grupo, o que explica que tenha sido possível uma quadrilha ter atuado tanto tempo em anonimato em um estado onde o crime atua aberta e publicamente.
O maior erro que poderia ser cometido naquele momento era confiar a investigação do caso à Polícia Civil do Rio de Janeiro – e foi exatamente esse o caminho escolhido. Nos meses seguintes, todo tipo de distracionismo e boicote à investigação foi realizado: falsos depoimentos, falsos suspeitos, além de delegados e chefe de polícia afastados.
Lembro-me do dia em que a bancada do PSOL na Câmara de Vereadores reuniu-se com o então chefe da PCERJ, Rivaldo Barbosa, e eu já estava absolutamente convencido do erro que havia sido cometido ao não se federalizar o caso. David Miranda, que era parte da bancada, avesso a liturgias e protocolos, perguntou diretamente a Barbosa sobre a possibilidade de a Polícia Civil apontar falsos mandantes e executores no caso – questionamento que provocou, evidentemente, um enorme mal-estar. Considerei o constrangimento necessário, apesar de não combinado. Barbosa fez um discurso demagógico, em tom de indignação, como se sua honra tivesse sido atacada. Tempos depois, foi afastado do cargo sob suspeição.
Foi um grave erro não ter pedido de imediato a federalização do caso – mas pouquíssimos dirigentes do PSOL-RJ defenderam essa hipótese. O governo de plantão ainda não era o de Jair Bolsonaro e sequer existia ainda a clareza de que Bolsonaro seria presidente – a maioria considerava essa possibilidade, até então, quase nula. É óbvio que, sob o governo Bolsonaro, a federalização não faria sentido, e sua ascensão ao poder fez com que a única chance de elucidação do crime fosse suspensa por quatro anos – quatro preciosos anos.
Um ano depois do assassinato, foram presos os executores, mas até hoje não foram revelados o(s) mandante(s). Apesar do enorme prejuízo já causado à investigação após todo esse tempo, a eleição de Lula coloca novamente a chance de que o crime seja, finalmente, solucionado.
A execução de Marielle foi como um trovão que antecede a tempestade. A relação da família Bolsonaro com membros do Escritório do Crime tornou-se conhecida durante seu governo – quando foram reveladas, inclusive, homenagens feitas por Jair e seus filhos ao então chefe da organização criminosa, o miliciano Adriano da Nóbrega.
Solucionar o assassinato de Marielle e Anderson é uma necessidade democrática de primeira ordem. No Brasil, o crime organizado e a política se relacionam organicamente, cada vez com mais força – traço da vida brasileira que se aprofundou sob o governo Bolsonaro. Prender os mandantes desse crime bárbaro deve servir para desencadear um processo de depuração social necessário e profundo, do ponto de vista simbólico e prático. Está claro que a extrema-direita tem unidade política e econômica com parte do crime organizado do país – milícias, garimpo e desmatamento ilegal são só algumas dessas atividades. Quando isso ocorrer, o Brasil terá um motivo a menos para se envergonhar perante o mundo e finalmente a memória de Marielle terá sido reparada.
Marielle era do PSOL, nossa companheira de partido. Hoje é inspiração para militantes e ativistas do mundo inteiro. Honrar sua memória é garantir também que o PSOL seja portador de uma mensagem de futuro, que seja parte do novo que ainda não existe, mas que derrotará o que existe de velho e assombra o Brasil e o mundo. Sendo um partido independente e preparado para as novas batalhas que virão.
Esse pequeno inventário de memórias e erros cometidos tem a intenção de alerta para que não deixemos passar essa nova oportunidade. Derrotamos Bolsonaro e uma das dimensões dessa enorme vitória é que ela abre a chance de descobrirmos quem mandou matar a nossa companheira. Que isso não nos escape, pelo nosso futuro e pela memória de Marielle e Anderson.