O fenômeno Bukele
O contexto da ascensão do presidente de extrema direita de El Salvador, Nayib Bukele, e o que este processo aponta para a esquerda latinoamericana
Foto: Wikimedia Commons
Via Viento Sur
Em 4 de fevereiro, Nayib Bukele se autoproclamou vencedor das eleições presidenciais de El Salvador, anunciando sua reeleição sem sequer esperar que a contagem oficial dos votos fosse concluída, em meio a um processo eleitoral que foi, no mínimo, questionável[1]. Mesmo assim, ele voltará a governar o país centro-americano por mais cinco anos, e seu partido, Nuevas Ideas, também controla a Assembleia Legislativa, com 58 dos 60 deputados, o que significa mais cinco anos de controle absoluto sobre todas as instituições e poderes do Estado.
Bukele foi apoiado nas urnas apesar de ter contornado a proibição constitucional que o impedia de revalidar sua candidatura e de seu polêmico regime de emergência, que suspendeu boa parte dos direitos civis no país e prendeu mais de setenta mil pessoas sem o devido processo legal. Essa situação foi duramente criticada pela oposição, que há muito tempo acusa Bukele de ser um perigo para a democracia no país.
De fato, diante das críticas aos cortes democráticos em El Salvador por parte da imprensa e das ONGs de direitos humanos, o vice-presidente Félix Ulloa disse ao The Times que ambos (em referência a Bukele) estavam “eliminando um sistema democrático que só beneficiava os corruptos e deixou o país com dezenas de milhares de pessoas assassinadas (…) Para essas pessoas que dizem que a democracia está sendo desmantelada, minha resposta é sim. Não estamos desmantelando-a, estamos eliminando-a, estamos substituindo-a por algo novo”.
Logo depois que Bukele foi proclamado vencedor, os ministérios de relações exteriores ocidentais, tão propensos a denunciar os cortes democráticos na região, foram rápidos em parabenizar o presidente reeleito. Nesses anos, Bukele se tornou um dos principais referentes latino-americanos da onda reacionária global, participando em 2024, juntamente com Trump, Milei, Abascal e outros líderes da ultradireita internacional, da Conservative Action Political Conference, um dos principais eventos internacionais da ultradireita e o ponto de partida da campanha presidencial de Trump.
Mas quem é Bukele?
Nayib Bukele é um profissional de marketing, literalmente. Ele é um empresário do setor de comunicações, cuja família é proprietária da empresa de publicidade Obermert, e é mundialmente famoso por sua obsessão pelo X (antigo Twitter): desde que se tornou presidente, ele contratou, demitiu e deu ordens por meio da rede social, o que lhe rendeu o apelido de presidente millennial. Esse é um elemento que ele conseguiu usar para se mostrar como um rosto irreverente diante do sistema bipartidário que formou a espinha dorsal do sistema político salvadorenho no período pós-Acordos de Paz (1992), que ele acusa de ser corrupto e ultrapassado. De fato, o próprio Bukele chegou a afirmar durante a coletiva de imprensa após a votação nas últimas eleições presidenciais que: “El Salvador nunca teve democracia”. Ele acrescentou: “Esta é a primeira vez na história que El Salvador tem democracia”.
A carreira política de Bukele começou como prefeito do município de Nuevo Cuscatlán em 2012, sob a bandeira da Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí (FMLN). Sua popularidade permitiu que ele se tornasse prefeito de San Salvador, a capital do país, em 2015. Um passo que tradicionalmente precede uma candidatura presidencial em El Salvador. Mas uma série de desentendimentos com o FMLN levou à sua expulsão do partido e à fundação do Nuevas Ideas (2017), o partido político de Bukele. Naquela época, sua liderança incontestável era guiada por ideias neoliberais na esfera econômica e um certo grau de bem-estar social, embora discursivamente ele se posicionasse como uma força sem ideologia, favorecendo eixos como anticorrupção e segurança.
Nas eleições presidenciais de janeiro de 2019, Bukele teve de concorrer como candidato do partido GANA (Gran Alianza Nacional), uma cisão do partido de direita ARENA (Alianza Republicana Nacionalista), que foi implicado em casos de corrupção. Essa foi a única alternativa para concorrer às eleições devido a todos os obstáculos que os órgãos estatais colocaram no caminho do registro do Nuevas Ideas, apesar de atender a todos os requisitos devido à ofensiva aberta que a FMLN desencadeou contra Bukele e o Nuevas Ideas, o que no final só acelerou a crescente popularidade do agora presidente. No final, Bukele venceu as eleições confortavelmente com 53,10% dos votos, deixando para trás a FMLN (20%, com mais de um milhão de votos transferidos para Bukele) e a ARENA (22% dos votos).
O fenômeno Bukele surgiu após os fracassos de quase trinta anos de governos de turno entre os principais partidos. Essas décadas resultaram em três presidentes processados por corrupção, aumento das desigualdades sociais, aumento da migração/expulsão dos setores mais pobres, promessas não cumpridas da direita e da esquerda e, é claro, a expansão incontrolável e o fortalecimento da violência das gangues (as maras) em todo o país. El Salvador passou a ser reconhecido como um dos países mais perigosos do mundo. O fenômeno Bukele é o resultado desse contexto de miséria, desigualdade, corrupção e violência.
O messias evangélico
Bukele e seu novo partido, Nuevas Ideas, construíram sua primeira vitória presidencial com base em um discurso de hostilidade contra o status quo (a partidocracia bipartidária, a política, a corrupção) e um voto de protesto. Mas sua verdadeira base social e eleitoral foram as igrejas evangélicas, que desde então construíram uma aliança genuína e uma devoção partidária, atuando como referência de legitimidade social e substituindo progressivamente a ideologia e a política pela retórica cristã evangélica e pela interpretação bíblica. Não podemos perder de vista o fato de que El Salvador é um dos países da América Latina com o maior número de seguidores de igrejas evangélicas, que têm uma presença importante entre as classes populares devido a suas obras de caridade, sua luta contra a violência estrutural e a corrupção.
Um bom exemplo das tentativas de Bukele de atrair as igrejas evangélicas desde o início de sua corrida presidencial foi o convite a um grupo significativo de pastores evangélicos para apresentar a criação, caso ele vença, de uma Secretaria de Valores. Uma instituição que acompanharia os esforços das igrejas evangélicas no território. Bukele recebeu a unção de um grupo de pastores evangélicos, entre eles Romel Guadrón, pastor da Igreja Espírito da Vida, que uma vez ungiu o ex-presidente Elías Antonio Saca, o primeiro presidente a quebrar a tradição de o hierarca da Igreja Católica ser o único a abençoar o novo governo, incluindo um pastor evangélico. Na cerimônia, o Pastor Romel tomou a palavra para afirmar que ele veio em nome de Jesus para declarar o novo presidente da República de El Salvador. “Quero lhe dizer que você é o homem que Deus buscou para este país (…) acredite que é assim, que eu não ungi mais ninguém, que este caso é diferente; eu senti isso em meu coração” [2]. Com esse ato, Bukele confirmou o apoio das igrejas evangélicas à sua candidatura à presidência de El Salvador em 2019.
Em julho de 2019, Franklin Cerrato, um pastor evangélico proeminente entre a comunidade de migrantes salvadorenhos nos Estados Unidos, organizou uma reunião de líderes evangélicos entre o Movimento Pastores por El Salvador e a Coalizão Latina por Israel (LCI). Entre os principais organizadores do evento com líderes evangélicos estava Mario Bramnick, um dos pastores mais próximos e influentes no círculo do então presidente Donald Trump. Bramnick é cubano-americano e fundador da LCI, uma organização sionista cristã com sede em Miami que mobiliza líderes políticos e religiosos latino-americanos para apoiar o reconhecimento de Jerusalém como o centro da atividade política e religiosa de Israel. Ele também é um ativista contra o aborto, contra a educação sexual e contra o reconhecimento e a garantia de respeito aos direitos das minorias sexuais.
Na reunião com Bukele, Bramnick tomou a palavra para afirmar que: “Estamos em um estágio de cumprimento da profecia de 70 anos. O tempo de cativeiro de El Salvador acabou, o Senhor está levantando Ciros não apenas nos Estados Unidos, mas na América Latina. Bolsonaro é um Ciro, o Presidente Bukele é um Ciro para este tempo, a mão de Deus está sobre ele”[3], disse ele, fazendo alusão a Ciro, o Grande, um rei persa que, de acordo com a Bíblia, conquistou a Babilônia e libertou os judeus.
Pouco depois de vencer as eleições presidenciais de 2019, Bukele viajou para Washington, onde deu uma palestra para o think tank de extrema direita Heritage Foundation, prometendo rever o relacionamento de El Salvador com a China. Lá, ele assumiu a responsabilidade de reduzir a migração indocumentada, prometeu um estado pequeno e novas liberdades para a iniciativa privada. Na saída do evento, ele também disse que Daniel Ortega e Nicolás Maduro “podem dizer adeus aos seus aliados em El Salvador”. Tudo para agradar o governo Trump. O próprio Bukele chegou a usar seus contatos com a comunidade evangélica americana e a proximidade com os círculos de poder na Casa Branca para fortalecer suas relações com o governo Trump, que ameaçou retirar a ajuda econômica a El Salvador. É importante lembrar que o ex-vice-presidente dos EUA Mike Pence e o ex-secretário de Estado Mike Pompeo, ambos cristãos evangélicos, mantiveram laços estreitos com o Capitol Ministries. Essa é uma organização religiosa que os dois ex-funcionários do alto escalão da administração Trump patrocinaram a partir da Casa Branca e que se dedica a evangelizar “líderes políticos mundiais” para que legislem de acordo com seus princípios bíblicos[4].
Em 2014, durante a campanha para prefeito de San Salvador, Bukele se reuniu com líderes da comunidade LGBTI para prometer que se tornaria um político “do lado certo da história” para fortalecer os direitos da população, em uma clara referência, entre outras questões, ao casamento igualitário. Quatro anos depois, tanto na campanha presidencial quanto como presidente eleito, ele tomou medidas decisivas que deixaram claro para o movimento evangélico que sua agenda moral era compatível com seu pensamento em questões centrais, como o apoio ao casamento heterossexual e sua rejeição ao aborto, demonstrando que o ungido pelos evangélicos sabe como pagar suas dívidas. O pastor Franklin Cerrato foi um dos lobistas mais insistentes para garantir que o presidente estivesse comprometido com os valores evangélicos pró-família e pró-vida. Após a unção dos evangélicos, e uma vez eleito presidente, ele convidou o pastor da igreja californiana RiverChurch, Dante Gebel, uma estrela do rock entre os evangélicos, para dividir o palco com o arcebispo de San Salvador durante a transferência de poder para abençoar seu governo.
De fato, o próprio Bukele alcançou repercussão internacional logo após seu primeiro mandato presidencial quando, em fevereiro de 2020, invadiu o Palácio Legislativo com policiais e militares, pronto para forçar os resultados da sessão plenária, uma decisão tomada após “ouvir Deus”. Depois de um show digno de um telepregador, ele saiu declarando que “se quiséssemos apertar o botão, era só apertar o botão. Mas eu pedi a Deus e Deus disse ‘paciência’. Paciência, paciência”.
Referências e acenos às igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais têm sido uma constante ao longo de seu mandato. No mesmo discurso em que comemorou sua reeleição presidencial, Bukele mais uma vez ofereceu sua imagem mais messiânica, com referências constantes a Deus como redentor de El Salvador e, evidentemente, a ele como o instrumento divino para essa redenção. “Deus queria curar nosso país e o curou (…) Vamos dar glória (a Deus) se é isso que queremos. Por que isso os afeta, por que os incomoda? (…) Talvez o exemplo os afete porque talvez as pessoas de seus países, a quem foi ensinado o ateísmo, voltem a acreditar em Deus”.
As referências divinas estão longe de ser novas; elas o acompanharam durante toda a sua presidência, onde as poderosas igrejas evangélicas do país se tornaram um pilar fundamental de seu sucesso e apoio popular. Bukele estabeleceu uma relação simbiótica com o fundamentalismo evangélico, que se consolidou durante seus anos no cargo e que, longe de ser simplesmente discursiva, é uma aliança que dá às igrejas cotas de poder e acordos especiais com o governo em troca da manutenção do apoio popular e simbólico do presidente. Nessa aliança reacionária, os perdedores são os direitos das mulheres, a diversidade sexual, o meio ambiente e as classes empobrecidas que são governadas pela Bíblia. Na prática, a interpretação da Bíblia tem mais peso do que as leis do país ou a própria Constituição, como se pode ver nos deputados e funcionários do governo que governam e legislam com discursos religiosos e justificam qualquer decisão com isso, mesmo que isso signifique tomar medidas anti-direitos, mas em nome de Deus.
Assim, o neofundamentalismo evangelista, como aconteceu com Bolsonaro antes dele, proporcionou ao fenômeno Bukele uma base social, discursiva e eleitoral. A importância política dos evangelistas não está apenas em seu crescimento exponencial ou em sua densa rede de mídia, mas, sobretudo, em sua inserção popular e capacidade de atrair votos, o que está dando novo impulso e, sobretudo, novos eleitores aos partidos conservadores em todo o continente.
A inexistência ou a presença muito fraca do Estado nos bairros populares da América Latina tem facilitado o estabelecimento de igrejas evangélicas por meio da prática do chamado cristianismo da tigela de arroz, ao mesmo tempo em que fornece assistência de vários tipos, desde cuidados com a saúde ou cuidados infantis até a procura de emprego, projetos de desenvolvimento e/ou a construção de igrejas, gerando redes de apoio comunitário que de outra forma não existiriam. Dessa forma, as igrejas evangélicas implantaram estratégias para conter as forças progressistas, posicionando-se habilmente nos setores populares e marginalizados onde essas forças estavam gradualmente perdendo sua presença e contestando o terreno tradicional dos movimentos de esquerda de uma forma que nenhuma organização conservadora havia feito antes.
Da mesma forma, a popularidade dos templos e o alto número deles nos bairros latino-americanos são facilitados pelo fato de que os fiéis podem abrir suas próprias igrejas, mesmo como franqueados de uma igreja matriz. Essa estratégia de expansão permite que eles permeiem diferentes realidades sociais que podem ser hierarquizadas de acordo com os contextos dos países e as dobras de classe dentro deles. Devido ao profundo classismo que existe nessas sociedades, os setores mais marginalizados (indígenas, favelados, membros de gangues) não terão acesso a um determinado tipo de templo evangélico (devido à sua localização, classe social e quantidade de dízimo exigido), que não seja o de seu bairro ou favela, o que facilita a geração de um deus de bolso, adaptado às classes subordinadas. Em outras palavras, há uma adaptação na prática da teologia da prosperidade em relação às classes sociais, tornando viável para as elites verem seus interesses salvaguardados em nível macro, enquanto as classes empobrecidas e desesperadas encontram salvaguardas e respostas imediatas. Tudo isso sob o guarda-chuva comum da religião.
Por exemplo, na América Central, essa implantação de vizinhança lhes permite aplicar sua teologia da prosperidade com o objetivo de conversão com o resgate de membros de gangues (o ministério da restauração, como uma missão específica dessas igrejas em contextos sociais marginalizados) e outros males, qualificados como inimigos públicos. Assim, em países como El Salvador, Guatemala e Honduras, as igrejas evangélicas e o evangelismo também são apresentados como uma resposta eficaz à violência social, um dos problemas mais sufocantes para a maioria. Da mesma forma, para responder a esses contextos de violência social, as implicações dessa prática de fé incluem o renascimento da militarização e do controle social, que acompanha o ressurgimento do autoritarismo na região. Isso se conecta perfeitamente e fornece uma base popular para o populismo punitivo de Bukele e seus desvios autoritários.
O vingador salvadorenho
Bukele foi vendido como uma figura nova, distante do passado político de El Salvador e, por um momento muito fugaz, ele pode ter sido, mas quaisquer dúvidas foram dissipadas assim que ele assumiu o cargo, dando início à consolidação de uma personalidade messiânica e, pior ainda, com aspirações autoritárias. Desde a sua posse como presidente, seu gabinete mais próximo é formado por amigos, parceiros de negócios, ex-funcionários e até mesmo familiares, recorrendo ao clientelismo servil do qual o Estado salvadorenho vem sofrendo há tanto tempo. De fato, uma investigação do jornal El Faro revelou como, apesar de não ocuparem publicamente nenhum cargo formal, dez venezuelanos formam um círculo de poder em El Salvador que só perde para o presidente, seus irmãos e outros parentes. Oriundos da oposição de extrema direita da Venezuela, eles estão acima do gabinete de ministros e encarregados de alguns dos planos mais decisivos que estão sendo implementados na administração salvadorenha. Um verdadeiro gabinete sombra que funciona como um elo entre o clã da família Bukele, o governo e o partido Nuevas Ideias.
El Salvador era um dos países com uma das taxas de homicídio mais altas do mundo – nove salvadorenhos eram assassinados em média todos os dias – e durante décadas os diferentes governos tentaram resolver a violência, causada principalmente pelas maras ou gangues, com políticas repressivas, mas só conseguiram piorar a situação. Bukele, como os demais presidentes do país antes dele, fez da luta contra a violência das gangues um de seus principais elementos programáticos. O próprio GANA, formado por ex-deputados da ARENA e que Bukele usou como veículo legal para concorrer às eleições, é um partido ultraconservador cujo deputado mais proeminente, Guillermo Gallegos, defendeu grupos de extermínio paramilitares, como o Sombra Negra, e propôs armar a população civil para fazer justiça com as próprias mãos contra os membros das gangues.
O populismo punitivo tem sido uma linha comum nos vários governos de El Salvador, independentemente de sua cor política. A diferença é que Bukele o utiliza, impulsionado por sua popularidade e apoio social ligado às igrejas evangélicas, como uma forma de reforçar o autoritarismo e o personalismo de seu governo e, ao mesmo tempo, destruir a autonomia dos diferentes ramos do governo.
Durante a pandemia, e sob a cobertura de medidas de confinamento e contra a Covid 19 , Bukele, em uma de suas transmissões de rádio e televisão, pediu aos agentes de autoridade que dobrassem os braços ou pulsos daqueles que não obedecessem à quarentena e saíssem às ruas. No entanto, foram as fotografias de centenas de prisioneiros salvadorenhos tatuados, vestindo apenas roupas íntimas, amontoados no chão de concreto em um abraço forçado, um após o outro, que deram a volta ao mundo como uma imagem angustiante do autoritarismo de Bukele. Com a ameaça óbvia de um contágio viral, sem mencionar a clara violação dos direitos humanos dos detentos, as imagens pareciam ter sido divulgadas sem autorização. Mas não, elas foram divulgadas pelo gabinete do Presidente Bukele quando ele anunciou um estado de emergência nas prisões em sua luta contra as gangues. Um exemplo paradigmático do populismo punitivo do governo salvadorenho, mesmo sabendo que essas imagens trariam críticas do exterior, mas seriam muito bem recebidas em casa, em um país devastado pela violência das gangues.
O presidente decretou a emergência prisional, embora o procedimento indique que ela deve ser solicitada pela diretoria de cada estabelecimento. Apesar disso, várias prisões do país começaram a lacrar as portas das celas onde os membros de gangues são mantidos com placas de metal. O próprio Bukele anunciou isso em sua conta no Twitter da seguinte forma: “De agora em diante, todas as celas de membros de gangues em nosso país permanecerão lacradas. Não será mais possível ver para fora da cela. Isso impedirá que eles possam se comunicar com sinais para o corredor. Eles ficarão lá dentro, no escuro, com seus amigos da outra gangue[5]”.
O segredo do populismo punitivo é criar um senso de emergência e alarme social para convencer a maioria da população da necessidade de medidas excepcionais, e não ordinárias, para combater a insegurança do cidadão. Uma tentativa de introduzir uma mentalidade de guerra na sociedade para resolver conflitos com base nos conceitos de inimigo interno e inimigo externo. Desse modo, o populismo punitivo se configura como uma demanda, presumivelmente popular, dirigida às autoridades públicas por uma mão mais dura, por maior eficácia no enfrentamento do crime, do que decorre a contínua ação repressiva contra os diferentes, estigmatizando os pobres e os miseráveis.
A demagogia punitiva de Bukele simplifica a solução para a insegurança com mais violência estatal, chegando a defender o assassinato, garantindo a impunidade das forças de segurança e do exército no exercício da violência, transmitindo a ideia de que a repressão e a prisão acabarão com o crime e a corrupção. Assim, o fenômeno das maras e gangues é abordado por meio da promoção de uma visão de que “o problema do crime são os indivíduos violentos e não o que o sociólogo Randall Collins chamou de ‘situações violentas’.”[6] Uma visão individualizada do crime e dos problemas sociais, que ignora as raízes intimamente ligadas ao empobrecimento da população após décadas de ajustes estruturais neoliberais que geraram um contexto de violência estrutural.
De fato, as políticas punitivistas do governo salvadorenho não são dirigidas nem contra as elites nem contra as classes médias, mas são claramente baseadas em classes e direcionadas às pessoas pobres e aos bairros da classe trabalhadora. Os mesmos que durante trinta anos estiveram sob o controle de gangues e que agora são marcados pela repressão do governo e seus habitantes são os que enchem os cemitérios e as prisões. Porque, não vamos nos enganar, o populismo punitivo de Bukele significou mais do que uma guerra contra as gangues, significou uma guerra contra os pobres, que são os que sofreram na carne com suas políticas de cortes de direitos, prisão e morte.
O estado de emergência e a deriva iliberal de El Salvador
O primeiro a cunhar o conceito de iliberalismo foi o cientista político norte-americano Fareed Zakaria, no final da década de 1990. Zakaria o definiu como uma forma de governo em algum lugar entre uma democracia liberal tradicional e um regime autoritário, um sistema no qual certos aspectos formais da prática democrática, como as eleições, são respeitados, mas outros aspectos igualmente fundamentais, como a separação de poderes, são ignorados, enquanto os direitos civis são violados. Nos últimos tempos, em que a extrema direita conseguiu tomar o poder em várias democracias liberais, vimos como ela está se movendo na direção do iliberalismo: atacando a independência dos juízes e da mídia, desconsiderando os direitos das minorias e minando a separação dos poderes.
O ataque ao estado de direito e às liberdades das minorias tem sido uma constante nos diferentes governos da extrema direita, de Trump a Bolsonaro, passando por Modi, Duterte, Bukele, Erdoğan, Orbán ou Putin, todos eles líderes que fizeram dos ataques à democracia o leitmotiv das ações de seus governos. Dessa forma, durante os primeiros anos do governo Bukele, ele eliminou quaisquer contrapesos institucionais que pudessem existir. Em 2021, ele conseguiu garantir que a Assembleia Legislativa fosse composta por uma grande maioria de membros do seu partido Nuevas Ideas, que ele usou para substituir os principais juízes da Suprema Corte, permitindo-lhe, alguns meses depois, reinterpretar a Constituição para legalizar a possibilidade de concorrer novamente à presidência.
Nesse sentido, a pouca resistência às pretensões autoritárias de Bukele mostra o relativo fracasso da consolidação da democracia salvadorenha mais de três décadas após a assinatura dos Acordos de Paz. Quando Bukele chegou com sua “fórmula mágica” para acabar com as gangues, a palavra democracia significava pouco ou nada para a maioria das pessoas. Nesse vácuo, as formas autoritárias e repressivas tiveram um impacto concreto e tangível na vida de grande parte dos salvadorenhos: uma redução na violência e um aumento na qualidade de vida diária para muitas pessoas. El Salvador encerrou o ano de 2023 com uma taxa de homicídios de 2,4 por 100.000 habitantes. Isso é muito melhor do que eles tiveram nos últimos trinta anos e, diante disso, para a maioria, os custos que a democracia está pagando não parecem muito altos.[7] O elemento-chave da chamada guerra contra o terror é o fato de que é uma guerra que está sendo travada contra o governo.
O principal elemento na suposta guerra contra as gangues foi o estado de exceção decretado por Bukele em março de 2022, por meio do qual a polícia e o exército receberam poderes para perseguir e prender qualquer pessoa suspeita de fazer parte das gangues. Um verdadeiro colapso do estado de direito salvadorenho que levou mais de 71.000 pessoas a serem detidas em um ano e meio, ou seja, 1,6% da população foi privada da liberdade sem o devido processo legal ou respeito aos direitos humanos mais básicos. De fato, o próprio governo salvadorenho reconheceu oficialmente que pelo menos 6.000 pessoas foram detidas injustamente. Milhares e milhares de detenções arbitrárias nas quais dois perfis se destacam: a pobreza e a condição de classe dos detidos, por um lado, e o perfil dos ativistas e defensores dos direitos humanos, por outro. Uma verdadeira guerra contra os pobres e o tecido social salvadorenho. Soma-se a essa situação o aumento do número de pessoas desaparecidas nos últimos anos, sendo a grande maioria jovens e mulheres, com 4060 casos registrados somente entre 2020 e 2022[8].
A deriva iliberal de Bukele incluiu sua guerra particular contra a liberdade de imprensa, recusando-se a tolerar qualquer voz crítica às suas políticas. Para isso, o presidente usou três estratégias para silenciar a liberdade de informação no país: assédio, espionagem e perseguição à imprensa que não se curvou aos seus desígnios. Bukele frequentemente acusa a mídia independente de ter fontes falsas, enganar a população e cometer ilegalidades, como evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
Uma reportagem da Reuters revelou em novembro de 2022 que havia uma “fazenda de trolls” a serviço do presidente. “Uma poderosa operação de comunicação que permitiu a Bukele influenciar o que os salvadorenhos leem, veem e ouvem sobre seu governo como nenhum outro líder anterior em El Salvador[9]”. O governo de Bukele, assim como outros na região, também foi acusado de usar o spyware israelense Pegasus para espionar jornalistas. De acordo com um relatório da organização canadense CitizenLab, houve 35 casos confirmados de jornalistas e membros da sociedade civil cujos telefones foram infectados com sucesso com o spyware Pegasus da NSO entre julho de 2020 e novembro de 2021. Uma situação que se agravou desde a aprovação do Regime de Emergência em março de 2022, que permitiu ao governo limitar as garantias constitucionais para, entre outras coisas, acabar com a confidencialidade da correspondência privada.
Além disso, o governo Bukele criminalizou a imprensa, por meio de visitas de policiais aos escritórios da mídia independente com um objetivo puramente intimidatório, a abertura de processos judiciais contra alguns meios de comunicação. Assim como a promoção de leis que limitam o exercício da liberdade de expressão, como a que estabelece penas de prisão de 10 a 15 anos para aqueles que, por meio do uso da tecnologia da informação e da mídia, transmitem mensagens originárias ou presumivelmente originárias de grupos criminosos que possam gerar pânico entre a população. Vinculando explicitamente a mídia às gangues, estigmatizando-as, criminalizando-as e apontando-as para a população como parte de seus objetivos na suposta guerra contra as gangues.
O caso mais emblemático da perseguição de Bukele à mídia é o da mídia digital El Faro, uma referência na região, que revelou vários casos de corrupção que afetam a administração salvadorenha ou que o próprio Bukele negociou com as gangues, apesar das garantias do presidente de que nunca faria isso. Isso lhe rendeu todo tipo de perseguição a seus funcionários e criminalização, com a abertura de uma investigação de lavagem de dinheiro contra a El Faro. Devido a essa situação, El Faro teve que transferir sua estrutura legal e logística para a Costa Rica e alguns de seus jornalistas foram para o exílio, embora continue a trabalhar em El Salvador.
O efeito de imitação no continente
A narrativa empregada pelo próprio Bukele, que se vangloria de uma “vitória eleitoral esmagadora” em sua reeleição como presidente de El Salvador, juntamente com uma verdadeira pandemia de violência que o continente latino-americano está sofrendo, consolidou uma espécie de efeito de contágio e imitação de suas políticas de populismo punitivo e restrição das liberdades. A recém-nomeada ministra de segurança da Argentina, Patricia Bullrich, declarou, poucos dias após as eleições em El Salvador, que seu governo estava “interessado em adaptar o modelo de Bukele”. Mas ela não é a única: o prefeito do distrito de La Florida, em Santiago, Rodolfo Carter, encontrou no populismo punitivo contra o narcocrime um nicho político para lançar sua candidatura presidencial. Ele propôs a demolição das casas dos supostos traficantes de drogas em seu município, uma iniciativa que não tem base legal e é totalmente arbitrária, mas que foi apoiada com entusiasmo na televisão. Isso lhe rendeu um perfil público como uma das principais figuras na luta contra o crime no Chile. Nesse sentido, o prefeito de Lima declarou: “Bukele conseguiu um milagre em El Salvador”, elogio ao qual se juntaram o primeiro-ministro peruano e juízes do tribunal de justiça.
No entanto, esses estão longe de ser casos isolados, mas sim uma tendência geral que está ganhando cada vez mais adeptos de forma preocupante. Em países vizinhos a El Salvador, como Guatemala e Honduras, houve marchas de cidadãos a favor de Bukele. A ex-candidata presidencial na Guatemala, Zury Ríos, filha do ditador Ríos Montt, declarou na última campanha que “El Salvador é um modelo a ser imitado”; enquanto o ministro do Interior de Honduras disse que “há coisas a aprender com El Salvador”, um país que, apesar de ter um governo de esquerda, está sendo acusado por ONGs de direitos humanos de aplicar uma política prisional semelhante à de Bukele.
Assim como pela aprovação dos chamados “estados parciais de exceção” para combater o crime nas áreas mais inseguras das cidades hondurenhas. O modelo Bukele foi implementado em 120 comunidades, onde as garantias constitucionais foram suspensas e os militares foram mobilizados para estabelecer a ordem. A esse respeito, o ministro da segurança de El Salvador disse em 2022 que havia se reunido com seus homólogos guatemaltecos e hondurenhos para explicar como o plano Bukele funcionava, dizendo: “O que conseguimos em El Salvador está disponível para todos os países”.
Um dos países latino-americanos mais afetados pelo fenômeno do crime organizado é o Equador, tradicionalmente conhecido como um dos países mais seguros do continente, que se tornou um dos mais perigosos desde a pandemia do coronavírus. Uma situação que chegou a ser descrita pelo presidente Daniel Noboa como um “estado de guerra interna”, o que o levou a declarar estado de emergência, permitindo que os militares saíssem às ruas para proteger os cidadãos e as infraestruturas estratégicas nas principais cidades do país. Entre as medidas anunciadas pelo governo está a construção de duas prisões de segurança máxima, com o próprio Noboa afirmando que elas serão “as mesmas (que as de El Salvador) porque é a mesma empresa, o mesmo projeto que fez (para) as prisões no México e em El Salvador”. Para todos os amantes de Bukele, é a mesma prisão. Se você quiser ir, dê uma volta, conheça, fique uma noite, cometa um crime”.
A tal ponto que, diante da falta de líderes na direita colombiana após a derrota eleitoral nas últimas eleições presidenciais, Bukele substituiu o ultradireitista Álvaro Uribe como inspiração para os setores mais extremistas da direita colombiana, como a senadora María Fernanda Cabal, que se declarou admiradora do presidente. Em uma reportagem especial sobre o fenômeno Bukele, o semanário colombiano Semana chegou a afirmar que “o presidente de El Salvador é hoje o líder político mais popular do continente e os especialistas o consideram uma figura de classe mundial. Ele tem apenas 41 anos e o que ele fez em seu país é considerado quase milagroso”.
A disseminação do fenômeno Bukele do populismo punitivo não está apenas permeando governos ou partidos conservadores, mas também está afetando cada vez mais setores populares e classes médias que, diante do dilema de escolher entre uma democracia esvaziada de conteúdo após décadas de choque neoliberal e o autoritarismo securitário, escolhem a ficção securitária. Expandindo perigosamente a noção de que somente com medidas emergenciais e restrição de liberdades é possível combater o crime organizado e a violência. Isso significa introduzir uma mentalidade de guerra na sociedade para resolver conflitos com base no conceito de inimigo, uma palavra-chave no pensamento de um dos grandes ideólogos do regime nazista, Carl Schmidt. Todo o direito penal da ditadura de Hitler foi construído com base nesse conceito: o inimigo não é readaptado, nem reintegrado, nem ressocializado, ele é simplesmente alvejado, morto, derrotado, destruído. Dessa forma, o populismo punitivo se configura como a demanda supostamente popular dirigida às autoridades públicas por uma mão mais dura, por maior eficácia no enfrentamento do crime, por uma ação repressiva contínua contra os diferentes.
Nessa lógica punitiva, a pobreza é construída como um inimigo, mas o objetivo não é tanto acabar com a pobreza quanto acabar com os pobres. Nesse sentido, deixamos de abordar a pobreza ampliando o Estado social para substituí-lo por um Estado policial. Diante da impossibilidade de resolver a insegurança derivada das políticas de ajuste e austeridade, fenômenos sociais como a migração e a pobreza são problematizados.
Propõe-se que esses problemas sejam resolvidos com mão de ferro, mais policiais, mais câmeras ou mais detentos nas prisões. A suposta guerra contra a delinquência e o crime organizado é, na verdade, uma guerra contra os pobres. Não podemos aceitar a lógica da guerra interna que só traz mais violência, segurança fictícia, restrição das liberdades, criminalização e estigmatização da pobreza e dos pobres.
Contestar o conceito de segurança a partir de uma perspectiva que rompe com a lógica punitiva para se opor a um horizonte de direitos sociais é fundamental para poder responder, a partir de uma perspectiva de classe, às inseguranças e à violência geradas pelas políticas neoliberais. É fundamental para evitar que as políticas punitivas penetrem na medula das classes populares, estigmatizando a migração e a pobreza e favorecendo a guerra dos penúltimos contra os últimos. De fato, estamos diante de uma crise de direitos que coloca uma questão fundamental: quem tem direito a ter direitos? Dependendo de como respondermos a essa pergunta, podemos lutar ou abrir caminho para a extrema direita.
Mas também não podemos negar que o aumento da violência, que está claramente enraizado em desigualdades gritantes e na destruição das economias locais pelo neoliberalismo, é cada vez mais um problema em muitos países. O neoliberalismo expulsou grande parte das classes trabalhadoras da sociedade, alimentando gangues, quadrilhas e, por fim, o crime organizado, com um número infinito de homens e mulheres que não conhecem outras opções. Essa situação sequestrou qualquer possibilidade de democracia e favoreceu a disseminação do populismo punitivo, do qual o exemplo de Bukele é paradigmático.
Nesse sentido, o discurso do compartilhamento da riqueza, da eliminação das desigualdades e do aumento do estado social é fundamental para encontrar qualquer solução de médio prazo. Mas, a curto prazo, isso pode parecer irrealista em termos de enfrentamento dos problemas de violência que a comunidade realmente sofre diariamente. O desafio da esquerda é apresentar à sociedade alternativas confiáveis para o enfrentamento da violência estrutural que mostrem um caminho diferente do populismo punitivo de Bukele. Uma solução que deve envolver a colocação em prática de modelos de segurança comunitária, como, por exemplo, em algumas regiões do México ou do Equador. Em face da crescente violência estrutural, pensar em modelos de segurança comunitária torna-se um elemento central, não apenas para combater a violência, mas também para reconstruir os laços comunitários. Só poderemos derrotar o fenômeno Bukele se nos tornarmos uma alternativa confiável às suas propostas autoritárias.
Notas
[1] A contagem foi controversa. Quando as seções eleitorais começaram a registrar os resultados na noite da eleição, a plataforma caiu. Com 70% dos votos presidenciais e 5% dos resultados legislativos registrados, o Supremo Tribunal Eleitoral declarou que a contagem preliminar havia falhado. As acusações de fraude aumentaram exponencialmente, sem mencionar a falta de garantias nos procedimentos on-line no exterior ou a possibilidade de votar com documentação vencida dentro e fora do país.
[2]https://elfaro.net/es/201812/ef_foto/22762/El-ungido.htm
[3]https://www.lamalafe.lat/los-pastores-de-trump-tambien-tientan-a-nayib-bukele/
[4]https://elfaro.net/es/201908/internacionales/23554/L%C3%ADderes-evang%C3%A9licos-amparados-por-la-Casa-Blanca-exportan-agenda-fundamentalista-a-Am%C3%A9rica-Latina.htm
[5]https://mundo.sputniknews.com/america-latina/202004281091253956-pandilleros-presos-en-el-salvador-permaneceran-en-celdas-selladas-y-junto-a-rivales–fotos/
[6] “La trampa neoliberal: ¿Individuos violentos o situaciones violentas?”, El faro académico, 15 de junio de 2023, https://elfaro.net/es/201503/academico/16717/La-trampa-neoliberal-%C2%BFIndividuos-violentos-o-situaciones-violentas.htm
[7]https://elpais.com/america/2024-02-05/bukele-reelecto-la-victoria-de-la-violencia.html
[8] Fonte: Observatório Universitário de Direitos Humanos (OUDH) da Universidade Centro-Americana (UCA). De acordo com o OUDH, o aumento no número de desaparecimentos de jovens coincide com o mandato presidencial de Bukele.
[9]https://expansion.mx/mundo/2024/02/01/nayib-bukele-verdugo-libertad-de-prensa-el-salvador