Os limites do PT de Quaquá no combate estratégico às milícias no Rio de Janeiro
As posições do atual vice-presidente do PT representam a dimensão da adaptação do partido no Rio de Janeiro
Foto: Brasil 247
A prisão dos mandantes do assassinato de Marielle Franco soou como um grito sufocado por seis anos. Ainda não foi a solução integral do caso e tampouco da metástase que assola o Rio de Janeiro.
A detenção dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa é apenas uma camada de uma situação complexa, de coexistência, no estado e especialmente na capital fluminense, entre o capitalismo neoliberal e outro decadente, bárbaro, de acumulação primitiva, produto também do processo de reprimarização do país e do lugar que essa grande fazenda em que se transformou o Brasil ocupa na divisão internacional do trabalho.
Prova disso, por exemplo, é que no Rio coexistem o Grupo Globo, maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil e da América Latina, símbolo do neoliberalismo progressista que ajudou a derrotar Bolsonaro, junto com as milícias. Um processo de desenvolvimento desigual e combinado que acumula contradições abissais. Aqui, são raros os partidos que não estejam vinculados a grupos milicianos. Com representação parlamentar, o PSOL é uma dessas raríssimas exceções.
Na ocasião do anúncio da prisão dos mandantes do crime que resultou no assassinato de Marielle e Anderson, o ministro Lewandowski, como expressão dos limites que o regime brasileiro tem no combate ao crime organizado, anunciou a versão do governo de que o caso estava encerrado. Não é razoável dar como encerrado um caso que levou seis anos para ter seus mandantes revelados e cujo inquérito foi comandado por cinco delegados durante esse período. O que o ministro fez foi descartar uma obviedade que se coloca com a imponência de um edifício: além dos irmãos Brazão e de Barbosa, existe certamente uma rede de cooperação, corrupção e prevaricação que operou não só a obstrução de justiça deste caso, mas de muitos outros.
A versão de encerramento do caso é de um ministro do governo Lula, eis um limite concreto. Essas são as contradições do governo Lula, que, embora fundamental na derrota de Bolsonaro, não pode ir a fundo em nenhuma questão estrutural, por sua natureza de unidade nacional, de uma concertação entre classes. Isto é, foi uma composição fundamental para derrotar eleitoralmente o neofascismo, mas que seguirá acumulando profundas contradições. Uma parcela da burguesia brasileira está vinculada a este modo de acumulação primitiva: o agronegócio e as milícias do campo, o garimpo e os madeireiros na Amazônia, no Rio de Janeiro, todos sabemos como negócios, crime, polícia e política se relacionam. Neste quadro, o PSOL do Rio de Janeiro terá uma dura tarefa, que não tem só a ver com os processos eleitorais, mas é nesses processos que as coisas costumam ficar mais evidentes.
Em 2024, é certo que o PSOL não terá apoio formal de nenhum partido com representação parlamentar à candidatura de Tarcísio Motta. Quase a totalidade dos partidos que compõem a base do governo Lula vai apoiar Eduardo Paes – dentre eles, o PT. Paes é criatura do processo que expandiu as milícias como portadoras e afiançadoras do poder público carioca e fluminense. Isso não é novidade para nenhum carioca, o vínculo de Paes com as milícias vem de longa data e seus três mandatos na Prefeitura do Rio são a maior prova disso – há pelo menos duas décadas nenhum prefeito é eleito aqui sem apoio de milicianos. A equação é simples: por meio do controle e exploração do território, se controla o voto – e hoje as milícias controlam 57% do território da capital. Não se faz necessário insistir no truísmo de que Paes tem ligação política com as milícias, a presença de Chiquinho Brazão no seu secretariado até dois meses atrás é só o último ato dessa antiga relação. Aqui nos interessa explicar por que o PT-RJ apoiará Paes.
O movimento de degeneração do PT-RJ tem como marco de inflexão política a intervenção nacional no diretório estadual na ocasião da escolha de Vladimir Palmeira para ser candidato ao governo do estado em 1998. Palmeira era o candidato da ala esquerda do partido, apoiado também pelo então jovem Quaquá. Lula e José Dirceu ignoraram o processo democrático interno, intervieram no diretório estadual e impuseram a candidatura de Anthony Garotinho com a vice-candidatura de Benedita da Silva. De lá pra cá, o que marcou o partido no Rio de Janeiro foi o vale tudo – inclusive abrigando, por sucessivos mandatos parlamentares, figuras como Jorge Babu, que, sendo policial civil e notório miliciano da Zona Oeste, ostentou mandatos de vereador da capital e deputado estadual pelo PT.
A recente declaração do vice-presidente nacional do PT e deputado federal, Washington Quaquá, sobre a inocência de Domingos Brazão no caso Marielle não é “raio em céu azul”. O PT-RJ, ou pelo menos sua ala majoritária, já naturalizou as milícias como parte inerente ao ethos político da realpolitik fluminense. Quaquá, e até as pedras do Arpoador, sabem que a família Brazão tem seu império político montado sobre o crime no Rio de Janeiro. Recentemente, Quaquá posou em seu camarote na Sapucaí coberto de ouro – um desavisado diria se tratar de um bicheiro. Sabe-se lá porque e para que um deputado federal tem um camarote desse tipo, segundo ele para faturar quatro milhões durante o carnaval. A última do chefe máximo do PT-RJ foi faltar à votação que definiu pela manutenção de Chiquinho Brazão, um dos mandantes da execução de Marielle. O PT-RJ tem esse poder de ser uma espécie de Midas ao contrário, tudo que toca se transforma em seu oposto – ou piora muito.
O último célebre caso do tipo é Marcelo Freixo, que, de presidente da CPI das Milícias, passou a subordinado de ministra miliciana na Embratur – me refiro à anterior ministra do Turismo Daniela do Waguinho. Aí se encerrou a travessia do Rubicão por Freixo. Caminhamos para um cenário eleitoral em que, mesmo com a elucidação do caso Marielle Franco, PT, PSB e PDT já fecharam questão no apoio a Paes. Para quem acompanha e vive a política do Rio de Janeiro de perto, não existe surpresa. Mas ao PSOL-RJ cabe a tarefa de seguir, mesmo que solitariamente, em relação à superestrutura política, essa luta democrática, fazendo todos os esforços para que uma parcela da sociedade carioca enxergue que quem está com Paes é conivente com o crime organizado e com as milícias. Temos que lutar para que a campanha de Tarcísio Motta se transforme num movimento da cidadania carioca e que tenha essa pauta como eixo democrático de primeira ordem. Com milícia não tem jogo, o Rio de Janeiro precisa ser refundado.