Avanço da extrema direita e adaptação na esquerda
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Avanço da extrema direita e adaptação na esquerda

Um debate com a Resistência/PSOL sobre a construção de alternativas antissistêmicas

Bruno Magalhães 22 jun 2024, 16:31

Foto: 1º de Maio em Itaquera/Reprodução

Em artigo recente publicado pelo portal Esquerda Online, o camarada Henrique Canary (dirigente da Resistência, tendência interna do PSOL) levanta questões sobre o papel da esquerda frente ao avanço da extrema direita no Brasil. Intitulado Na luta contra o fascismo, basta ser “antissistema”?, o texto de Canary indica a posição de sua organização apontando uma série de argumentos que discordamos frontalmente.

Em resumo, o camarada Canary aponta três argumentos: a falácia da postura “antissistema” da extrema direita, o erro da postura radical de esquerda em uma conjuntura defensiva e a necessidade da unidade com o governo Lula ao redor do “programa vencedor nas eleições de 2022”. Como saída, propõe uma política da mobilização popular em favor do governo que dê condições para a governabilidade de Lula “a quente” amparado pelas massas populares.

Para nós, os argumentos do camarada Canary combinam erros sobre a análise da ascensão da extrema direita frente à policrise mundial com esperanças falsas no arranjo burguês do atual governo. Aprofundaremos estas questões abaixo.

Crise econômica e mentiras da extrema direita

Não há dúvidas, em nenhum setor da esquerda, sobre a falácia presente no discurso “antissistema” da extrema direita, portanto nosso debate não é esse. Por outro lado, é impossível compreender o novo conservadorismo autoritário sem refletir sobre as contradições entre essência e aparência presentes nesse fenômeno. Em seu discurso, a extrema direita retira a ideia genérica de “sistema” de seu significado enquanto modo de produção e a transfere ao regime político, permitindo assim uma posição “antissistema” que ataca o regime liberal burguês ao mesmo tempo em que defende o aprofundamento da dinâmica do modo de produção capitalista.

Declarando-se a favor da “liberdade” do povo contra governos corruptos, figuras como Trump, Bolsonaro e Milei ocuparam na última década um espaço de narrativa radical historicamente reservado aos socialistas, conseguindo reunir toda a esquerda (reformista ou revolucionária) no mesmo campo político da direita liberal perante o imaginário de parte significativa da classe trabalhadora e da juventude. Como consequência, ressuscitam o anticomunismo ao definir “comunista” todo o conjunto da política tradicional à esquerda e à direita (vide FHC1), mesmo sem possibilidades revolucionárias próximas em nenhum país do mundo.

Esta conquista de corações e mentes foi possível devido a bases concretas. Por um lado, as consequências da crise econômica mundial de 2008/2009 pioraram os padrões de vida e derrubaram a credibilidade da democracia burguesa, modelo hegemônico no Ocidente após o fim do bloco soviético, abrindo grande espaço para seu questionamento. Por outro, as décadas de adaptação das esquerdas reformistas a esta mesma democracia burguesa hoje cambaleante esvaziaram os horizontes de expectativa pós-capitalista da classe trabalhadora na medida em que atuaram dentro do establishment como gestoras do capitalismo, colhendo os louros de seus momentos de expansão e sofrendo os desgastes de suas crises.

Essa combinação abriu uma brecha utilizada de forma muito sagaz por setores da burguesia. Necessitando reduzir cada vez mais os custos de produção (incluindo salários e direitos sociais) para manter seus padrões de lucro frente à crise, parte da burguesia utilizou a frustração social com a democracia capitalista (e com o próprio capitalismo) para estimular os movimentos de extrema direita e pressionar governos de todos os tipos por formas ainda mais intensas de exploração. Como as alternativas radicais à esquerda eram mais frágeis ou também se adaptaram, a avenida da insatisfação popular – que não faz diferença entre regime político e modo de produção – foi desviada e se abriu para nossos inimigos de classe levantarem a bandeira ultracapitalista como solução para a própria crise capitalista contra os grupos políticos que tentavam geri-la.

Isso se combina com um problema subjetivo da classe trabalhadora, que foi sistematicamente atacada e derrotada no campo econômico por todos os governos brasileiros desde os anos 1990. A flexibilização dos direitos trabalhistas promovida consecutivamente por todos os governos desde então enraizaram a subjetividade neoliberal entre os trabalhadores ao aprofundar a fragmentação do mundo do trabalho e precarizar suas relações seguindo os consensos desse modelo.2

Tal processo também ocorreu nos governos Lula e Dilma. Todas as leis flexibilizadoras criadas sob FHC foram renovadas ou não foram contestadas, chamando a atenção para aquelas que flexibilizaram a jornada de trabalho e as da previdência social, assim como liberaram a contratação de prestadores de serviços como pessoas jurídicas sem direitos trabalhistas. Nesse período, também se realizou uma famigerada reforma da previdência (aumentando a idade e o tempo de contribuição para a aposentadoria) e se permitiu o trabalho aos domingos e feriados para empregados do comércio, assim como se possibilitou a utilização da mão de obra de estudantes como forma de burlar direitos trabalhistas através da lei do estágio, entre outros exemplos.3

Estas informações não são nenhuma novidade para camaradas que guardam as próprias memórias das lutas anteriores contra tais retrocessos, mas as ressaltamos aqui porque os governos do PT representaram um fio de continuidade entre o neoliberalismo de FHC e o de Temer no campo dos direitos dos trabalhadores. E o conjunto destas mudanças ao longo de três décadas modificou o perfil da classe, rompendo as formas históricas de organização e solidariedade que derrotaram a ditadura na década de 1980. Somou-se a isso o papel do movimento sindical majoritário, cuja ligação ao governo e/ou a atuação em suas bases de forma exclusivamente cartorial levou ao descrédito do sindicalismo que enfrentamos hoje.

Nesse processo, as ilusões semeadas entre a população através do aumento momentâneo do consumo e dos Grandes Jogos4, assim como as promessas de que a crise econômica mundial (a “marolinha”5) não chegaria ao Brasil, levaram à enorme frustração social que protagonizou o levante de 2013 e todo o processo que se desenvolveu após ele. Os escândalos de corrupção do período – cuja utilização política deve ser questionada, mas também cuja materialidade não pode ser negada – foram a cereja do bolo da polarização que convulsionou o país, levou o debate político para dentro de espaços privados pela primeira vez em décadas e pôs em cheque o regime da Nova República. Nenhuma das promessas feitas por Dilma após Junho se concretizou e três anos depois o golpe do impeachment veio de dentro do próprio governo. A extrema direita chega ao poder tempos depois, mas não sem resistência, como demonstrou a greve geral de 20176 e o Ele Não7, entre outros exemplos.

O processo de fortalecimento da extrema direita brasileira então é muito mais complexo do que defende o camarada Canary. Houve uma equação na qual a classe trabalhadora perdeu direitos e viu seus representantes históricos capitularem “em troca” de um aumento no consumo que não resistiu aos primeiros sinais da crise mundial, logo depois presenciaram seus governantes “de esquerda” imersos nas mesmas dinâmicas legais e ilegais promovidas pela burguesia de sempre. Impregnados por décadas de catequização em prol da subjetividade neoliberal, sem uma alternativa política anticapitalista significativa, com renda menor e com menos direitos, não é difícil entender como multidões de trabalhadores decepcionados foram captados pelas mentiras “antissistema” da extrema direita.

Em seu texto, o camarada Canary lista qual seria a base social do bolsonarismo:

Vejamos a base social da extrema-direita: Será que a base evangélica aderiu ao bolsonarismo porque buscava uma força “antissistema”? É isso que esse setor sempre almejou e agora encontrou em Bolsonaro? E a base ligada ao agronegócio do centro-oeste? É “antissistema”? E a pequena burguesia, a classe média e a cúpula do funcionalismo público? São “antissistema”? E a alta burguesia? É “antissistema”? E as polícias? Desejam derrubar “tudo que está aí” e construir uma nova ordem social?

Reparem que os setores trabalhadores que formariam tal base social se reduzem, no texto, aos conservadores religiosos. Provavelmente, o autor não define aqui toda a base bolsonarista segundo sua opinião, mas nota-se uma lacuna na representação da classe trabalhadora nesse conjunto. Todos os evangélicos brasileiros representam um terço da população, porém Bolsonaro teve quase metade dos votos no segundo turno de 2022 e um terço dos evangélicos atualmente aprova o governo Lula.8

É óbvio que o conservadorismo religioso impulsionado pela burguesia reacionária e combinado com outras expressões do atraso social brasileiro, como o racismo, o patriarcalismo e a LGBTfobia, representam o núcleo duro do apoio popular à extrema direita no Brasil. Mas este apoio não se restringe a esses setores e, mesmo entre os evangélicos conservadores, o próprio PT já foi uma opção em eleições anteriores. Ou seja, uma parte significativa dos trabalhadores que apoiaram a extrema direita nas últimas eleições o fizeram por motivos que vão além do conservadorismo social.

Nossa tarefa é nos debruçar sobre esses motivos, que refletem a dinâmica econômica recente e os movimentos internacionais na superestrutura, indo além das definições simplistas e das explicações monocausais. O crescimento da extrema direita é fruto de uma combinação de fatores que envolvem as consequências da crise de 2008/2009, o papel dos governos de esquerda zeladores da democracia burguesa, a disputa de narrativa promovida pelos novos fascistas sobre esse período e, também, o conservadorismo enraizado na sociedade.

Os limites do atual arranjo burguês de Lula

Outro elemento ignorado pelo camarada Canary é a profunda crise intraburguesa que se verifica em nível internacional e tem reflexos diretos no Brasil. O próprio desenvolvimento da extrema direita no país demonstrou isso tanto antes como durante o governo Bolsonaro através de suas sucessivas crises próprias. Para além da descrição, é importante notar que o governo bolsonarista esteve longe da estabilidade e isso se sucedeu mais pelos problemas internos da própria burguesia brasileira do que pela força da resistência popular antifascista. Apesar dos exemplos massivos de resistência, como o próprio Ele Não e o Tsunami da Educação, outros grandes revéses políticos para Bolsonaro foram derivados da disputa entre setores da burguesia, como na saída de Sérgio Moro do governo9, nas sucessivas trocas de ministros da Saúde durante a pandemia10, nas dificuldades de consolidação de sua base mais próxima em um único partido (a fracassada Aliança pelo Brasil11) ou na total rendição ao Congresso no tema do orçamento.

Apagar este elemento do cenário político é muito importante para sustentar a posição do camarada Canary, que aumenta a unidade do bloco burguês ao redor da extrema direita para abrandar o caráter burguês do governo Lula. Sua composição com partidos como MDB, PSD, Republicanos, União Brasil e PP, assim como a vice-presidência de Geraldo Alckmin, demonstram a natureza deste governo que tem a burguesia liberal como principal fiadora política. Nesse sentido, Lula voltou a ser, para esta burguesia, a melhor opção na busca por estabilidade após os anos de Bolsonaro. Isso explica desde a atual política econômica do governo e suas sucessivas derrotas no Congresso até sua própria (e justa) absolvição anterior por um STF cuja conduta é exclusivamente política.

Nesse contexto, as esperanças do “giro à esquerda” do governo não se fundamentam porque nunca houve nenhum sinal de que Lula iria dá-lo. Ao contrário, como representação “progressista” da estabilidade burguesa, Lula opera no sentido oposto e utiliza tal esperança para dar um “giro à direita” que arrasta inclusive parte da esquerda radical, cujo programa político se rebaixa cada vez mais em prol da unidade com o governo contra a ameaça fascista. Os exemplos desse rebaixamento programático são vários e vão desde ações mais graves, como a votação a favor da última reforma tributária por parlamentares do PSOL ou a postura vacilante perante o enorme ataque trabalhista representado pelo PL do Uber12, até exemplos deseducativos mais anedóticos como a comemoração do aumento do PIB por Guilherme Boulos13 ou as saudações à atual “reconstrução do Brasil” feitas por diversos parlamentares do PSOL.

Criticando a postura “antissistema” de setores à esquerda de sua organização, o camarada Canary escreve que:

O fascismo juntou dezenas de milhares de bandidos no 08 de janeiro e tentou dar um golpe. Esse é seu grau de motivação. Temos força para fazer o mesmo? O que os atos de 1º de Maio dizem sobre nossa capacidade de mobilização para ações “antissistema”? Afinal de contas, quem muito fala precisa ser capaz também de fazer… Antes de ser “antissistema”, a esquerda precisa voltar à cena política e social do país.

Vemos aqui outra incongruência. O ato esvaziado do último 1º de Maio14 foi um grande exemplo justamente das dificuldades de mobilização do sindicalismo adaptado, assim como de suas prioridades políticas em um ano eleitoral. Imaginar que o ato das grandes centrais sindicais seria uma ação “antissistema” demonstra a falta de compreensão sobre as posições desse debate. A resposta do camarada Canary a este lembrete provavalmente seria aprofundar ainda mais seu argumento utilizando o exemplo dos atos de 1º de Maio do sindicalismo radical, sempre mais esvaziados que o ato oficialista, mas isso reforçaria o que dizemos sobre a incompreensão do debate na medida em que a própria crise do sindicalismo é parte da argumentação que levantamos acima.

As ilusões da esquerda oficialista

Voltando ao texto, o camarada Canary coloca algumas condições para a esquerda “voltar à cena”. Vamos e elas:

Antes de ser “antissistema”, a esquerda precisa voltar à cena política e social do país. Como se faz isso? Há algumas condições.

A primeira é a unidade. A esquerda precisa se reapresentar à sociedade como uma força política decisiva. Unidade nas lutas sociais, nos sindicatos, no movimento estudantil, nas eleições. É lamentável que tenhamos eleições municipais em breve e que o PT priorize, em muitas cidades, a unidade com partidos do centrão e até com bolsonaristas arrependidos. 

A segunda condição é a aplicação do programa vencedor nas eleições de 2022. Temos uma grande vantagem em potencial na luta contra a extrema-direita: o programa deles foi derrotado nas urnas e ninguém pode se queixar de que as diferenças não estavam claras. Todo mundo entendeu tudo direitinho e votou por um programa de mudança social, de recuperação de direitos, de ampliação de conquistas e de defesa da civilização contra a barbárie. O problema é: que fim levou esse programa? Por que o governo não o aplica? Não luta por ele? De onde tiraram que o país precisava de um novo ajuste fiscal? Por que o centrão está no governo mesmo sem entregar nada no congresso nacional e agindo na prática como oposição?

A terceira condição é a luta política e ideológica. Não se trata apenas de que a comunicação do governo é ruim (embora seja). Se trata de entrar na briga, romper falsos consensos, fazer propaganda e agitação em larguíssima escala e não apenas promoção institucional ao estilo propaganda de margarina. O governo precisa dizer o que pensa, o que defende, explicar sua estratégia.

A terceira [ou quarta? N.A] condição é a mobilização popular e uma governabilidade “a quente”. Novamente, o exemplo da Colômbia pode nos ser útil. Gustavo Petro governa não em base a uma maioria parlamentar instável e vira-casaca, mas apoiado na mobilização popular. Sua base social está sendo permanentemente convocada e agitada. É isso que lhe garante legitimidade. A ideia de que os governos não fazem política (logo vem um comentarista da Globo News denunciar o “tom de comício”) nos foi imposta pela grande burguesia que segue sonhando com “um governo técnico”, enquanto o enorme potencial mobilizador de Lula e do PT seguem desperdiçados.

Tais condições políticas são muito reveladoras tanto das esperanças do camarada Canary quanto de suas frustrações. A unidade, primeira condição, é totalmente verdadeira. Não é possível derrotar a extrema direita sem a mais ampla unidade de ação antifascista, não só com o PT, mas também com todos os setores da pequena burguesia e da burguesia que se sintam ameaçados pela mudança autoritária no regime político. Contra Bolsonaro, votamos em Lula assim como votamos em Alckmin, e votaríamos também em FHC se fosse o caso. E a vitória de Lula foi um grande exemplo de triunfo da unidade de ação eleitoral contra a extrema direita15.

O problema aqui é outro, oriundo da confusão teórica entre este tipo de unidade de ação e a tática da frente única. Existem várias diferenças entre uma e outra, mas consideramos aqui a questão do programa político como central, afinal na unidade de ação antifascista o programa em comum se resume na derrota do fascismo enquanto na tática da frente única o programa se desenvolve ao redor de medidas transitórias. Ao transformar a primeira na segunda pela força da vontade, os camaradas da Resistência continuam esperando que Lula não seja Lula e lamentando toda a armação burguesa do governo registrada todos os dias em todos os jornais.

Daí vamos ao erro de sua segunda condição, uma sequência do erro anterior. Afinal, para defender a hipótese da frente única com o governo é preciso fazê-lo ao redor de um programa de medidas transitórias, declarado pelos camaradas da Resistência como o “programa vencedor nas eleições de 2022”. Mas qual é este programa? O de Haddad ou o de Silvio Almeida? Qual deles tem mais força no governo? Estas simples questões não são respondidas pelo camarada Canary, que conclui este tópico de sua proposta política perguntando porque Lula não avança contra a burguesia. Uma de suas perguntas é ótima: “de onde tiraram que o país precisava de um novo ajuste fiscal?” A resposta é tão evidente que não precisa ser repetida aqui outra vez.

A terceira condição demonstra sinceridade no argumento, mas sua aplicação frequentemente sai pela culatra. Não há dúvida sobre a necessidade da luta política e ideologica contra a extrema direita, a forma de fazer isso é o assunto principal de nosso debate, a questão é que nessa luta os revolucionários e os reformistas não estão na mesma posição. Nos casos da política econômica, da relação com o Centrão, da flexibilização das leis trabalhistas, entre outros, Lula já disse “o que pensa, o que defende” e se colocou frontalmente contra os interesses concretos da classe trabalhadora. No caso específico da combativa greve da educação federal, Lula inclusive “explicou sua estratégia” para derrotar os trabalhadores16, assim como sobre a exploração de petróleo na bacia amazônica17. Sendo assim, não há sentido algum em atuarmos como conselheiros de propaganda desse governo.

Por fim, a ultima condição sintetiza o problema. Exigir uma governabilidade “a quente” de um governo que existe justamente com o objetivo de fazer política “a frio”, através da conciliação em busca da estabilidade burguesa, é o reflexo final da sequência de confusões encadeadas que chegaram até aqui. Por que Lula não faz como Petro? Exatamente pelo mesmo motivo pelo qual não fez como Chavez há vinte anos atrás, porque seu projeto é outro e não mudará.

Uma dúvida nos surge. Os camaradas da Resistência realmente consideram possível tal mudança do governo? O governo está em disputa? Ou trata-se de uma tática para aproximar-se da base petista? A segunda possibilidade falaria muito melhor sobre os camaradas do que a primeira. Mas, ao agitarem publicamente a primeira possibilidade, eles próprios acabam sendo parte desse movimento de rebaixamento programático que acontece na vida concreta, apesar de alguns textos que tentem provar o contrário. Somando a isso as possibilidades eleitorais e estruturais promovidas pelo governo de conciliação, temos o mesmo perigo que engoliu parte da esquerda petista há duas décadas atrás.

Mais uma vez, é importante registrar: isso não significa recusar a unidade com o reformismo, como o camarada Valério Arcary argumentou diversas vezes em seu espantalho sobre a “ofensiva permanente”18. Ao contrário, a linha justa nesse caso consiste precisamente na independência política real, sem compor o governo (como o PSOL infelizmente já faz) e combatendo suas políticas liberais, mas também, ao mesmo tempo, compondo fileiras em todas as pautas progressivas, como nos exemplos da CPI do MST19 ou na campanha “Lula Tem Razão”20 contra o genocídio palestino.

A necessidade de uma alternativa antissistêmica

A policrise capitalista mundial nos coloca numa encruzilhada inédita marcada pela emergência ambiental, pela crise da esquerda radical e pelo avanço da contrarrevolução mesmo sem possibilidades revolucionárias imediatas. Por outro lado, o fracasso da democracia burguesa e a decadência do modo de produção capitalista são sentidos na pele pelo conjunto de uma classe trabalhadora debilitada politicamente, mas que não tem tendências ao suicídio coletivo. Nesse cenário de polarização crescente, não há saída fora da construção de um polo de esquerda radical.

A construção desse polo só será possível ao redor de um programa que represente uma alternativa antissistêmica e enfrente o conjunto de retrocessos que estão intrissecamente interligados. Para derrotar a extrema direita, a tão necessária unidade de ação antifascista deve ser combinada com a tenacidade dos revolucionários contra todos os ataques contra a classe trabalhadora, venham de onde venham. Somente assim será possível recuperar a credibilidade das ideias anticapitalistas tão atacadas nas últimas décadas.

A defesa intransigente dos interesses dos trabalhadores em sua luta permanente contra o capital é imprescindível para isso. Esse elemento central do programa para qualquer frente única inviabiliza a composição estratégica com setores cuja política econômica defenda a manutenção ou ampliação da exploração capitalista. A luta contra os retrocessos nesse tema só pode ser efetiva se avançar também na luta pela ampliação dos direitos e garantias, sob pena de ser ludibriada constantemente pela lógica do “bode na sala” que mantém a precarização contínua dos direitos sociais e das garantias trabalhistas. Vacilar perante propostas como o PL do Uber, que permite aumentar ainda mais as jornadas de trabalho, empurrará para a extrema direita cada vez mais trabalhadores que vêem “a esquerda” operando tais ataques. A mesma coisa acontece com as atuais propostas de fim dos pisos constitucionais para saúde e educação.

A emergência climática hoje é reconhecida por multidões afetadas diretamentes por ela, colocando os negacionistas reacionários na defensiva nesse campo (assim como ficaram na pandemia) e dando um novo marco de massas para a crítica ao capitalismo e suas incapazes tentativas de solução do problema, como os mercados de carbono e modelos de transição energética que afetam diretamente as populações pobres e racializadas. Comemorar o “crescimento econômico” capitalista puxado pelo agronegócio extrativista ou vacilar perante a extração de petróleo em áreas protegidas vai em sentido totalmente contrário a isso.

Os enfrentamentos no campo da reprodução social e as pautas de direitos civis também devem estruturar essa alternativa. A grande indignação promovida pelo PL do Estupro demonstrou que a força das ideias conservadoras na sociedade é relativa e que esse terreno também está em disputa. Porém, assim como nos exemplos anteriores, só nos atrapalham certas posturas como a vacilação do líder do governo na Câmara (“não é assunto do governo”21) ou o encontro das parlamentares com Lira depois que a pauta já estava questionada e o “Fora Lira”22 surgia entre o movimento feminista.

Para a esquerda radical “voltar à cena política e social do país”, a primeira tarefa deve ser a afirmação de um programa obstinado em defesa dos interesses reais de toda a classe trabalhadora, incluindo aí os setores mais precarizados (como os pensionistas da previdência social23, os motoristas de aplicativos atacados pela proposta do governo ou os terceirizados do serviço público ou privado). Para isso, a independência política é essencial e as pequenas e sequenciais capitulações recentes da maioria do PSOL fazem o inverso, defendendo o governo de forma vibrante em pautas de consenso e criticando timidamente seus ataques contra a classe trabalhadora.

A luta contra a extrema direita só terá condições de vitória se combinar, de forma simultânea, a mais ampla e completa unidade antifascista com a mais rigorosa defesa de um programa antissistêmico que dispute o imaginário social contra as tais mentiras “antissistema” que a extrema direita dissemina entre a nossa classe. Não seremos nós os defensores de um “sistema” que explora, espolia e pauperiza os trabalhadores cada vez mais.

Concordando com o final do texto do camarada Canary, “precisamos ser políticos, atuar juntos, agir inteligentemente aproveitando oportunidades”. Só não podemos fazer isso desprezando a inteligência desses trabalhadores.

Notas

  1. Ver Luis Nassif, Olavo de Carvalho. Fernando Henrique Cardoso e os comunistas do Plano Real. (DCM. 2019). Leia aqui. ↩︎
  2. Ver Pierre Dardot e Christian Laval. A nova razão do mundo (Boitempo. 2016) ↩︎
  3. Ver Wallace dos Santos de Moraes. Regulação trabalhista no Brasil – governo Dilma segue a tendência de Lula ou de Fernando Henrique? Leia aqui. ↩︎
  4. Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. ↩︎
  5. Ver O Globo (04 de outubro de 2008). Leia aqui. ↩︎
  6. Ver Brasil de Fato (28 de abril de 2017). Leia aqui. ↩︎
  7. Ver BBC Brasil (30 de setembro de 2018). Leia aqui. ↩︎
  8. https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2024/04/6833039-com-baixa-popularidade-entre-os-evangelicos-lula-ensaia-aproximacao.html ↩︎
  9. Ver DW (20 de abril de 2020). Leia aqui. ↩︎
  10. Ver Poder 360 (15 de março de 2021). Leia aqui. ↩︎
  11. Ver Folha de São Paulo (29 de abril de 2022). Leia aqui. ↩︎
  12. Ver os artigos de David Deccache na Revista Movimento aqui e aqui. ↩︎
  13. Ver publicação na plataforma X aqui. ↩︎
  14. Ver Terra (2 de maio de 2024). Leia aqui. ↩︎
  15. Ver Revista Movimento (04 de novembro de 2022). Leia aqui. ↩︎
  16. Ver Agência Brasil (10/06/2024). Leia aqui. ↩︎
  17. Ver EPBR (03 de agosto de 2023). Leia aqui. ↩︎
  18. Temos um exemplo em EOL (08 de novembro de 2019). Leia aqui. ↩︎
  19. Ver Carta Capital (16 de agosto de 2023). Leia aqui. ↩︎
  20. Ver Revista Movimento (09 de março de 2024). Leia aqui. ↩︎
  21. Ver Exame (15 de junho de 2024). Leia aqui. ↩︎
  22. Ver Valor Econômico (18 de junho de 2024) e Fórum (15 de junho de 2024). Leia aqui e aqui. ↩︎
  23. Ver Poder 360 (19 de setembro de 2023). Leia aqui. ↩︎

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