Golpes de Estado na África Ocidental: apenas mudando de dono
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Golpes de Estado na África Ocidental: apenas mudando de dono

Os novos governos militares na região africana do Sahel mantém o poder através da repressão política, apesar da retórica anticolonial

Paul Martial 26 jul 2024, 08:00

Foto: Africanews/Reprodução

Via ESSF

O Mali, depois Burkina Faso e, por fim, o Níger sofreram golpes de Estado e, posteriormente, formaram a Aliança dos Estados do Sahel (AES). Essas juntas militares estão buscando uma política unificada de aproximação internacional, uma estratégia compartilhada na luta contra os jihadistas e uma retórica comum em torno da defesa da soberania nacional. O que devemos pensar dessa nova realidade para a África Ocidental? Alguns veem esses líderes golpistas como novos arautos da libertação da África. Infelizmente, a realidade é bem diferente.

O ponto em comum entre esses três golpes é o fato de serem dirigidos contra a política francesa. Isso não é o mesmo, por exemplo, que o golpe no Gabão, um país da África Central que também faz parte da esfera de influência da França.

A crise é tão profunda que os soldados franceses foram expulsos, as missões diplomáticas foram fechadas e os cidadãos franceses são considerados persona non grata.

A história africana não reconhecida pela França

Há várias causas para essa rejeição popular compreensível, especialmente entre os jovens. Há, é claro, a história das relações da França com os países africanos, marcada pela escravidão e pelo colonialismo, aspectos dos quais muitos políticos franceses ainda veem de forma positiva.

A política neocolonial da França pós-independência era conhecida como “Françafrique”. A antiga potência colonial manteve seu domínio econômico e financeiro com o uso contínuo do franco CFA, uma moeda garantida pelo Tesouro francês. O domínio militar também persistiu, com tropas francesas estacionadas no Gabão, Senegal, Costa do Marfim, Chade e Djibuti. E isso sem mencionar as mais de sessenta intervenções militares no continente desde a independência. A intervenção na Líbia enfrentou forte oposição e desestabilizou a região do Sahel. A cumplicidade da França no genocídio dos tutsis em Ruanda continua sendo uma lembrança dolorosa.

Confronto com a política francesa

Um jornalista francês publicou um livro intitulado Arrogant as a Frenchman in Africa (Arrogante como um francês na África), uma frase que descreve bem como as autoridades francesas se isolaram da juventude africana. Lembramos as declarações de um ex-presidente que declarou em Dakar que “o homem africano não entrou na história” e a piada desdenhosa do Presidente Macron sobre seu colega em Burkina Faso, insinuando que ele estava saindo da sala para consertar o ar condicionado. A política de vistos injusta e humilhante também contribui para essa percepção.

A França é vista como um país islamofóbico e racista devido ao tratamento dado aos migrantes e às políticas discriminatórias em relação aos membros da diáspora africana.

O fracasso das operações militares francesas no Sahel

A incapacidade da França de erradicar a ameaça jihadista nessa região é uma das principais causas da discórdia. O exército francês interveio primeiro em Mali com a Operação Serval. Essa operação, erroneamente considerada um sucesso, apenas dispersou os grupos islâmicos, que rapidamente se reorganizaram e lançaram ataques cada vez mais ousados. As autoridades francesas, então, embarcaram em uma operação mais ampla, a Barkhane, que abrangeu todos os países do Sahel. Apesar de oito anos de intervenção, os islamistas avançaram em Mali, Níger e Burkina Faso, levando a um mal-entendido generalizado e até mesmo a teorias de conspiração sobre uma suposta aliança entre a França e os islamistas.

A verdade, é claro, é bem diferente. As autoridades francesas não perceberam que as insurgências foram enxertadas em problemas recorrentes que variavam de acordo com o território. Esses problemas incluíam a competição por terra e água entre pastores (principalmente da etnia Fulani) e fazendeiros, desafios à rigidez das estruturas sociais por parte dos jovens ou revoltas de descendentes de pessoas escravizadas e outras famílias marginalizadas. Além disso, as atividades islâmicas oferecem a muitos jovens remuneração por meio de várias atividades de tráfico. A resposta da França foi puramente orientada para a segurança. Pior ainda, em Mali, em 2017, as pessoas na Conferência de Reconciliação Nacional pediram às autoridades que iniciassem negociações com os beligerantes. A França se opôs firmemente a isso e, ao mesmo tempo, negociou e pagou resgates pela libertação de reféns franceses.

Golpes como respostas à mobilização popular

Os golpes ocorreram em meio a mobilizações populares significativas que denunciavam os dois regimes corruptos e sua incapacidade de resolver a crise de segurança.

Em Mali, grandes manifestações precederam o golpe. Elas foram lideradas por uma coalizão, o Movimento 5 de Junho – Reunião das Forças Patrióticas (M5-RFP), composta por partidos e associações islâmicas. Uma facção minoritária do M5-RFP, liderada por Choguel Maïga, apoiou a junta.

Em Burkina Faso, uma revolução em 2014 derrubou a ditadura de Blaise Compaoré e os militares franceses facilitaram a fuga de Compaoré do país. Isso foi seguido pela eleição do presidente Roch Kaboré, cujo histórico de segurança ruim facilitou o golpe militar.

O caso do Níger é um pouco diferente. O golpe do General Tiani, chefe da guarda presidencial, resultou de uma luta interna dentro do Partido Nigerino para a Democracia e o Socialismo, que governava o país.

Entretanto, em todos os três casos, as juntas apareceram como salvadoras e contaram com algum apoio popular.

O papel da Cedeao e a crítica francesa

A popularidade das juntas foi reforçada pela política da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao). Sob o pretexto de restaurar a ordem constitucional, a Cedeao impôs um severo embargo econômico que afetou principalmente as populações já duramente atingidas pela crise da COVID. A Cedeao chegou a ameaçar uma intervenção militar contra o Níger, ao mesmo tempo em que endossava todas as fraudes eleitorais. Ao mesmo tempo, as autoridades francesas criticaram continuamente as juntas publicamente. Macron até se recusou a atender à exigência do Níger de que as tropas francesas saíssem, considerando o governo ilegítimo. As juntas se aproveitaram disso para se retirar da estrutura regional e formar a Aliança dos Estados do Sahel (AES), uma aliança econômica e militar.

As Juntas são progressistas?

Os líderes dos golpes adotaram um discurso soberanista, antifrancesa e antiocidental que se alinha perfeitamente à ideologia de Putin. A democracia é criticada como um sistema imposto externamente e inadequado para as tradições africanas ou como ineficaz.

O sucesso prometido é evidente? Claramente, não. A situação da segurança está se deteriorando significativamente, com os jihadistas controlando vastos territórios. O recente ataque ao quartel de Mansila em Burkina Faso, onde mais de cem soldados morreram, demonstra a incapacidade de resistência das juntas. Ironicamente, os detratores da França adotaram a mesma política focada na segurança e rejeitam qualquer solução política para o conflito. O uso de mercenários Wagner de alto custo resultou em vários massacres, como em Moura, onde mais de 500 civis foram mortos por mercenários e soldados malineses. O Níger contratou os serviços de uma empresa mercenária turca, a SADAT. Em Burkina Faso, a junta criou milícias mal armadas e mal treinadas, os Voluntários para a Defesa da Pátria (VDP), que são alvos fáceis para grupos islâmicos e frequentemente têm como alvo a comunidade Fulani.

Supressão da democracia e repressão

À medida que a crise se aprofunda, as juntas se enfraquecem e respondem com a redução do espaço democrático. As atividades políticas são proibidas e os líderes são presos ou exilados, como aconteceu com Oumar Mariko, líder de uma organização radical de esquerda do Mali. A imprensa é censurada, os oponentes são presos ou enviados para a linha de frente com o VDP, como aconteceu em Burkina Faso com o advogado Guy-Hervé Kam, cofundador da organização militante da sociedade civil “Balai Citoyen” e ex-ministro das Relações Exteriores, mesmo aos 70 anos de idade. Líderes sindicais, como Moussa Diallo, da Confederação Geral do Trabalho de Burkina Faso, são perseguidos.

Alguns podem ser enganados pela retórica soberanista ou mesmo anti-imperialista das juntas, que apenas imitam outros ditadores africanos. Acusados de corrupção ou fraude eleitoral, eles se defendem adotando uma retórica anticolonialista para difamar seus oponentes.

Na prática, as juntas são indistinguíveis de outras ditaduras: a mesma censura, a mesma repressão, a mesma fraude eleitoral, a mesma corrupção. A única diferença é sua fidelidade a Putin. Aqueles que são tentados pela política “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” desconsideram os interesses do povo desses países e não conseguem ver que as juntas não os libertaram do neocolonialismo; eles apenas mudaram de dono.


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