Ajuste fiscal: quem vai pagar a conta?
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Ajuste fiscal: quem vai pagar a conta?

Sobre o novo pacote do governo federal e a necessidade de uma esquerda que defenda a classe trabalhadora

Estevan Campos 29 nov 2024, 11:28

Foto: Agência Brasil

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado

Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado

(Gonzaguinha, Comportamento Geral)

O Governo Lula, através do Ministro Fernando Haddad, anunciou em rede nacional de televisão, um pacote de medidas que visam cumprir a meta fiscal prevista no Arcabouço Fiscal.

O primeiro ponto é que o anúncio envolveu duas medidas separadas, que não tem relação alguma, incluindo no pronunciamento do dia 27/11 a proposta de mudança na cobrança de IR. Essa mudança, como disse o Ministro na coletiva do dia 28/11, é uma sequência da Reforma Tributária, não tem relação com o cumprimento do Arcabouço. Haddad afirmou exatamente: “não queremos confundir o debate da Reforma Tributária com a questão de medidas que visam reforçar o Arcabouço Fiscal”.1

Em segundo, o pacote de corte de gastos é uma consequência do “Teto de Gastos 2.0”, o Arcabouço Fiscal. A raiz do problema é o Arcabouço. Quando da sua votação, parlamentares do PSOL que se posicionaram contra a proposta foram atacadas e acusadas de divulgar fakenews, pois na oportunidade já denunciavam que a aprovação do Arcabouço levaria inevitavelmente a cortes nos “gastos sociais” e que os cortes chegariam (ou já chegaram) aos pisos constitucionais de saúde e educação.

Separando os temas, imposto de renda e pacote de cortes.

É evidente que o aumento da faixa de isenção do imposto de renda para R$ 5000,00 acompanhado do aumento da tributação de rendas não tributadas superiores a R$ 50.000,00 é progressivo. Mas precisamos dar atenção a alguns detalhes do pronunciamento e coletiva de Haddad.

O Ministro anunciou um princípio: todas as medidas tributárias do governo terão o que chamou de “neutralidade fiscal”, ou SOMA ZERO. Pode alterar a distribuição da arrecadação, mas aumentar a arrecadação está fora de cogitação (alívio para o andar de cima). Ou seja, por parte do Governo, não cabe pensar em propostas históricas da esquerda como a regulamentação da taxação das grandes fortunas (e patrimônio) que visem aumentar arrecadação para possibilitar atender mais necessidades de quem precisa, isso não acontecerá2.

Se as alterações do IR são de “soma zero”, elas não impactam em nada o cumprimento das “metas fiscais” do governo previstas no Arcabouço. Mas então, se não altera em nada, por que foram anunciadas juntas? Ora, e explicação aqui não tem nada de econômica, é política pura. Se não houvesse a proposta da alteração do IR, qual seria a repercussão do pacote no dia de hoje na base social de apoio ao governo, nos mais pobres, na classe trabalhadora?

Pisos da saúde e educação. Emendas e gambiarra do pé de meia.

Quando da aprovação do Arcabouço, já denunciávamos que ele levaria, mais cedo ou mais tarde, à revisão (para baixo) dos pisos constitucionais da saúde e da educação. Por quê? Os pisos constitucionais são atrelados à arrecadação, definidos com base em 100% do orçamento. O aumento de gastos permitido pelo Arcabouço se limita a 70% do aumento da arrecadação. Se o governo aumentar o orçamento de um ano para o outro em, digamos, 5%, o máximo de reajuste permitido pelo Arcabouço é de 3,5%, como os pisos são sobre o total do orçamento (subiriam por obrigação constitucional, os mesmos 5%, uma hora a conta vai estourar.

Haddad sabe disso. Na coletiva indicou que já tem data para essa revisão se impor: 2028 ou 2029. O fato de não terem apresentado abertamente a proposta de alteração do piso, não significa que os orçamentos de saúde e educação não serão impactados por esse pacote, especialmente e mais diretamente o da educação.

Haddad “confessou” com todas as letras: como alterar o piso da educação seria impopular, mudaram o conceito do que conta como “orçamento da educação”, incluindo neste, o programa “pé-de-meia”, um programa de transferência de renda direcionado a estudantes de baixa renda, beneficiários do CadÚnico. É uma “gambiarra” que diminui, na prática, o que seria o orçamento para a educação (ainda precisamos ver os detalhes das alterações anunciadas no Fundeb, pode significar mais cortes). Manobras desse tipo são alvo de denúncia firme do conjunto da esquerda, corretamente, como, por exemplo, quando o governo estadual de SP, do governador Tarcisio, incluiu como “gasto da educação” o pagamento de professoras e professores aposentados. É uma manobra que tira dinheiro da educação!

Para piorar. A conta do Arcabouço chegará e em algum momento “gambiarras” como as de Haddad e Tarcisio não serão suficientes para o cumprimento das previsões constitucionais. A previsão do governo é de que esse limite chegará em 2028, talvez 2029. Ou revogamos o Arcabouço ou a educação e saúde sofrerão (ainda mais) cortes.

Sobre quem está o ajuste?

Se as alterações do IR são de “soma zero”, de onde sai do dinheiro para cumprir a meta fiscal? Podemos responder sem sombra de dúvidas, pelos números apresentados pelo governo3, quem arca com a conta do ajuste são os mais pobres.

Se somarmos os cortes (“economia”) das mudanças no Salário-Mínimo, BPC e Bolsa Família, elas correspondem a 20% dos cortes para 2025, em 2026 a “economia” prevista com estes três itens já representa 35% dos cortes e atingem inaceitáveis 54% da “economia” prevista para 2030. Não podemos ter dúvida, o corte é sobre os mais pobres. Penaliza quem mais precisa para não tocar, a fundo, nos problemas estruturais da concentração de renda e riqueza no Brasil.

Unidade da esquerda, combate à extrema direita e ao pacote

Com o anúncio do pacote, já começaram os ataques aos setores da esquerda que denunciaram a retirada de direitos. Uma exigência de que, mediante a ameaça e força da extrema direita, seria “obrigação” nossa defender o governo de críticas e não sermos nós a criticar o pacote.

Há de se olhar para o norte do continente, o retorno de Trump à Casa Branca mostrou que não basta derrotar eleitoralmente a extrema direita. A crise econômica é profunda e a situação da classe trabalhadora é, ainda, de extrema precariedade. No Brasil, cerca de 70% das pessoas com carteira assinada recebem até 2 salários-mínimos. Quase 40% da classe trabalhadora é informal. Sem alterar as condições de vida dessa camada da população, o risco de um voto de “castigo”, decepcionado com o que foi prometido e não foi entregue, abrir caminho para o retorno da extrema direita é enorme.

Ao contrário do que afirmou parte da esquerda após a eleição municipal, não se trata de melhorar a comunicação. Esta está sendo feita muito bem. Basta vermos a repercussão no dia seguinte ao anúncio nos setores de esquerda organizada. “Compraram” a narrativa do governo se agarrando nas alterações do IR para silenciar sobre as retiradas de direitos que significam as mudanças no salário-mínimo, abono e BPC.

Precisamos fortalecer uma esquerda que fale a verdade para as pessoas. Que não tente convencê-las de que sua vida está boa e só falta elas entenderem isso. Se não falarmos do que as pessoas realmente sentem e vivem, já começamos a perder a disputa política na sociedade. O povo não é bobo, nem burro, não adianta culpar o povo. Se o povo não elegeu a esquerda (hegemônica) nas eleições municipais de 2024 é porque não viu na esquerda uma conexão com o que está vivendo e passando.

Notas

  1. https://www.youtube.com/watch?v=3i2ehN7Ivj8 entrevista com Haddad e outros Ministros. A frase citada está em 2m13s, logo na abertura da entrevista. ↩︎
  2. Aqui cabe observar, com o Arcabouço vigente, mesmo o aumento de arrecadação não significa aumento da capacidade de investimento do Governo, dado o limite de crescimento de despesas em 2,5% acima da inflação. ↩︎
  3. https://static.poder360.com.br/2024/11/plano-cortes-governo-28-nov-2024.pdf O resumo com os cálculos do impacto de cada medida estão na última página do documento. ↩︎

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Pedro Micussi