Inflação 2024: o que ela mostra (e o que esconde)
INFLAÇÃO 2024

Inflação 2024: o que ela mostra (e o que esconde)

A inflação, em sua essência, é a manifestação do conflito distributivo entre capital e trabalho e deve ser analisada sob essa ótica

David Deccache 11 jan 2025, 16:32

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A inflação de 2024, medida pelo IPCA, fechou o ano com alta acumulada de 4,83%, muito acima do centro da meta de 3% e também superior ao limite de 4,5%, ultrapassando o teto estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O problema maior, entretanto, não é o patamar médio da inflação, mas sua composição: os alimentos, itens básicos para a população, registraram altas expressivas. Embora o cenário esteja longe de um colapso econômico, ele evidencia a continuidade de graves problemas estruturais herdados, em grande parte, dos governos Temer e Bolsonaro, que ainda não foram resolvidos. Entre esses problemas, destacam-se a lógica da política de Preço de Paridade de Importação (PPI) da Petrobras, que, mesmo suavizada, segue amplificando os impactos da pressão cambial sobre o custo de vida; a ausência de instrumentos não monetários para controle da inflação, como estoques reguladores de alimentos; e o enfraquecimento de mecanismos compensatórios, como o poder de compra do Bolsa Família corroído e uma valorização do salário mínimo insuficiente para conter a insatisfação popular – um quadro que tende a se agravar nos próximos anos com as novas regras aprovadas no final de 2024.

O câmbio foi um dos principais motores da inflação em 2024. O dólar, que encerrou o ano cotado a R$ 6,179, acumulou alta de 27,36%, pressionando os preços de produtos importados, insumos produtivos e bens que competem com importados. Essa desvalorização gerou um efeito cascata nos custos de produção e transporte. A lógica do PPI, introduzida no governo Michel Temer, segue expondo a economia brasileira às flutuações internacionais. Essa política atrela os preços domésticos de combustíveis ao mercado internacional e ao dólar, desconsiderando os custos internos de produção. O objetivo é maximizar o lucro dos acionistas em detrimento da maioria da população. O gráfico abaixo evidencia a permanência da relação entre o preço do barril de petróleo Brent e os preços da gasolina e do diesel no Brasil. Em 2024, a gasolina acumulou alta de 9,71%, sendo o item de maior impacto individual na inflação (+0,48 p.p.), enquanto o diesel, essencial para o transporte de mercadorias, gerou aumentos em alimentos e outros bens essenciais.Gráfico, Gráfico de linhas, Histograma

Descrição gerada automaticamente

Esses fatores – alta no dólar e preço dos combustíveis – foram particularmente sentidos no grupo “Alimentação e Bebidas”, que registrou alta de 7,69% no ano. Produtos básicos, como carnes (+20,84%), óleo de soja (+29,21%), leite longa vida (+18,83%) e café moído (+39,6%), tiveram aumentos significativos. Além disso, as condições climáticas adversas, marcadas pela seca mais intensa da história recente e pelo fenômeno La Niña, agravaram ainda mais a inflação ao reduzir a oferta agrícola. A ausência de estoques reguladores de alimentos, um instrumento essencial para amortecer choques de preços, agravou a situação e dificultou uma resposta mais efetiva.

Além disso, o enfraquecimento de políticas compensatórias foi notável. O Bolsa Família, um programa essencial para a segurança alimentar das famílias mais vulneráveis, não foi reajustado em 2024 e 2025, mesmo com a alta expressiva nos preços dos alimentos, resultando em menor poder de compra para milhões de pessoas. A valorização do salário mínimo, embora presente, foi tímida diante da inflação, especialmente nos itens básicos. Isso reduziu a capacidade de consumo das famílias mais vulneráveis, aprofundando o descontentamento social. Enquanto setores do mercado, em tom crítico, e o governo, em tom triunfalista, argumentam que a economia está “muito aquecida” e que o consumo segue elevado, a realidade concreta, marcada pela alta nos preços de alimentos e bens essenciais, revela que a vida da população está longe de corresponder a essa visão otimista.

Outro ponto fundamental é a dependência excessiva da política monetária para controlar a inflação. A meta de inflação de 3%, um patamar irrealista para a realidade estrutural da economia brasileira, é definida pelo CMN, composto por membros do governo (ministros da Fazenda e Planejamento) e o presidente do Banco Central. Essa meta excessivamente baixa legitima a elevação da taxa Selic como principal ferramenta para controlar os preços via câmbio e demanda. O diferencial de juros entre o Brasil e economias avançadas, especialmente os Estados Unidos, é utilizado para atrair capital externo e valorizar o real. No entanto, essa política gera custos elevados. Juros altos encarecem o crédito, aumentam os custos de produção e limitam investimentos em setores produtivos, criando um paradoxo: enquanto seguram a demanda e o câmbio, acabam também pressionando a inflação por meio de custos financeiros. Além disso, os juros altos transferem renda para rentistas, agravando desigualdades e desincentivando investimentos estruturais e geradores de emprego.

A inflação, em sua essência, é a manifestação do conflito distributivo entre capital e trabalho e deve ser analisada sob essa ótica. Ela reflete disputas estruturais sobre quem arca com os custos de choques econômicos, como os de combustíveis ou cambiais. Quando esses choques ocorrem, o capital busca proteger suas margens de lucro, repassando os aumentos de custos aos preços finais, alimentando a inflação. Os trabalhadores, por sua vez, tentam recompor seus salários para recuperar o poder de compra diante da escalada dos preços.

A capacidade dos trabalhadores de alcançar reajustes salariais, entretanto, está profundamente vinculada à taxa de desemprego. Em um cenário de desemprego baixo, o poder de barganha da classe trabalhadora se fortalece, favorecendo aumentos salariais mais significativos. Para o capital, contudo, isso representa um aumento dos custos, gerando uma tensão que frequentemente se traduz em novos repasses aos preços. Nesse contexto, a inflação emerge como um reflexo direto do embate entre dois interesses antagônicos: a manutenção dos lucros pelo capital e a preservação do poder de compra pelos trabalhadores. Daí a atual reclamação dos capitalistas sobre um suposto superaquecimento da economia brasileira. O que, de fato, desejam é um aumento do desemprego para vencer o conflito distributivo contra os trabalhadores.

Esse conflito é central na dinâmica inflacionária e é sintetizado pelos economistas ortodoxos no conceito de NAIRU (Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment, ou taxa de desemprego não aceleradora da inflação). Na visão ortodoxa, a NAIRU define um nível “natural” de desemprego, no qual as pressões inflacionárias decorrentes de aumentos salariais são neutralizadas. Contudo, o que a NAIRU realmente representa é a taxa de desemprego necessária para enfraquecer a capacidade de negociação dos trabalhadores, mantendo seus salários estagnados e assegurando margens de lucro para o capital. Sob o pretexto de estabilizar a economia, a NAIRU institucionaliza níveis de desemprego como ferramenta para disciplinar a classe trabalhadora no conflito distributivo. Quando o país atinge essa “taxa limite” – que pode ser elevada, como 6% ou 7% –, dizem que estamos, vejam só, em pleno emprego. Isso escancara a excrescência de setores progressistas usarem esse conceito de forma elogiosa.

Na prática, essa narrativa teórica sustenta políticas monetárias e fiscais contracionistas que, ao reduzir o nível de atividade econômica, aumentam o desemprego e limitam a capacidade dos trabalhadores de reivindicar melhores condições. Daí as tentativas recorrentes de imposição de políticas fiscais de austeridade e o desmonte de políticas sociais protegidas pela Constituição. O custo social dessa lógica de austeridade permanente é imenso: desemprego elevado (mesmo quando economistas anunciam que a taxa de desemprego é “baixa”), desigualdade crescente e perda de qualidade de vida para amplas parcelas da população. Ainda assim, essas políticas são frequentemente apresentadas como tecnicamente neutras e inevitáveis para controlar a inflação, quando, na verdade, representam escolhas políticas claras em favor do capital.

Esse entendimento é fundamental para analisar a inflação sob um prisma mais realista, científico e que não camufle a luta de classes. Para 2025, é urgente abandonar a lógica do PPI, que prioriza os lucros de acionistas às custas da população. É igualmente essencial retomar estoques reguladores de alimentos, implementar uma política robusta de valorização do salário mínimo e reajustar anualmente o Bolsa Família acima da inflação. Além disso, a meta de inflação precisa ser ajustada para níveis mais condizentes com a realidade econômica e social do Brasil, como 4% ou 4,5%, possibilitando uma política monetária menos restritiva.

A inflação, em sua composição, reflete claramente o conflito distributivo entre capital e trabalho. Enfrentá-la de forma justa exige priorizar a maioria, questionar os interesses que perpetuam a desigualdade e desafiar a lógica do controle da inflação por intermédio de políticas de austeridade fiscal e das altas taxas de juros – a pior resposta para os trabalhadores e, simultaneamente, a melhor para o capital. Esse embate será central em 2025, definindo os rumos econômicos e sociais do país.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra | 27 dez 2024

5 desafios políticos para 2025

Para o ano que vem, deixamos cinco desafios que corroboram às reflexões que os socialistas fazem a respeito do “tempo de urgências”
5 desafios políticos para 2025
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi