Inflação 2024: o que ela mostra (e o que esconde)
A inflação, em sua essência, é a manifestação do conflito distributivo entre capital e trabalho e deve ser analisada sob essa ótica
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
A inflação de 2024, medida pelo IPCA, fechou o ano com alta acumulada de 4,83%, muito acima do centro da meta de 3% e também superior ao limite de 4,5%, ultrapassando o teto estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O problema maior, entretanto, não é o patamar médio da inflação, mas sua composição: os alimentos, itens básicos para a população, registraram altas expressivas. Embora o cenário esteja longe de um colapso econômico, ele evidencia a continuidade de graves problemas estruturais herdados, em grande parte, dos governos Temer e Bolsonaro, que ainda não foram resolvidos. Entre esses problemas, destacam-se a lógica da política de Preço de Paridade de Importação (PPI) da Petrobras, que, mesmo suavizada, segue amplificando os impactos da pressão cambial sobre o custo de vida; a ausência de instrumentos não monetários para controle da inflação, como estoques reguladores de alimentos; e o enfraquecimento de mecanismos compensatórios, como o poder de compra do Bolsa Família corroído e uma valorização do salário mínimo insuficiente para conter a insatisfação popular – um quadro que tende a se agravar nos próximos anos com as novas regras aprovadas no final de 2024.
O câmbio foi um dos principais motores da inflação em 2024. O dólar, que encerrou o ano cotado a R$ 6,179, acumulou alta de 27,36%, pressionando os preços de produtos importados, insumos produtivos e bens que competem com importados. Essa desvalorização gerou um efeito cascata nos custos de produção e transporte. A lógica do PPI, introduzida no governo Michel Temer, segue expondo a economia brasileira às flutuações internacionais. Essa política atrela os preços domésticos de combustíveis ao mercado internacional e ao dólar, desconsiderando os custos internos de produção. O objetivo é maximizar o lucro dos acionistas em detrimento da maioria da população. O gráfico abaixo evidencia a permanência da relação entre o preço do barril de petróleo Brent e os preços da gasolina e do diesel no Brasil. Em 2024, a gasolina acumulou alta de 9,71%, sendo o item de maior impacto individual na inflação (+0,48 p.p.), enquanto o diesel, essencial para o transporte de mercadorias, gerou aumentos em alimentos e outros bens essenciais.
Esses fatores – alta no dólar e preço dos combustíveis – foram particularmente sentidos no grupo “Alimentação e Bebidas”, que registrou alta de 7,69% no ano. Produtos básicos, como carnes (+20,84%), óleo de soja (+29,21%), leite longa vida (+18,83%) e café moído (+39,6%), tiveram aumentos significativos. Além disso, as condições climáticas adversas, marcadas pela seca mais intensa da história recente e pelo fenômeno La Niña, agravaram ainda mais a inflação ao reduzir a oferta agrícola. A ausência de estoques reguladores de alimentos, um instrumento essencial para amortecer choques de preços, agravou a situação e dificultou uma resposta mais efetiva.
Além disso, o enfraquecimento de políticas compensatórias foi notável. O Bolsa Família, um programa essencial para a segurança alimentar das famílias mais vulneráveis, não foi reajustado em 2024 e 2025, mesmo com a alta expressiva nos preços dos alimentos, resultando em menor poder de compra para milhões de pessoas. A valorização do salário mínimo, embora presente, foi tímida diante da inflação, especialmente nos itens básicos. Isso reduziu a capacidade de consumo das famílias mais vulneráveis, aprofundando o descontentamento social. Enquanto setores do mercado, em tom crítico, e o governo, em tom triunfalista, argumentam que a economia está “muito aquecida” e que o consumo segue elevado, a realidade concreta, marcada pela alta nos preços de alimentos e bens essenciais, revela que a vida da população está longe de corresponder a essa visão otimista.
Outro ponto fundamental é a dependência excessiva da política monetária para controlar a inflação. A meta de inflação de 3%, um patamar irrealista para a realidade estrutural da economia brasileira, é definida pelo CMN, composto por membros do governo (ministros da Fazenda e Planejamento) e o presidente do Banco Central. Essa meta excessivamente baixa legitima a elevação da taxa Selic como principal ferramenta para controlar os preços via câmbio e demanda. O diferencial de juros entre o Brasil e economias avançadas, especialmente os Estados Unidos, é utilizado para atrair capital externo e valorizar o real. No entanto, essa política gera custos elevados. Juros altos encarecem o crédito, aumentam os custos de produção e limitam investimentos em setores produtivos, criando um paradoxo: enquanto seguram a demanda e o câmbio, acabam também pressionando a inflação por meio de custos financeiros. Além disso, os juros altos transferem renda para rentistas, agravando desigualdades e desincentivando investimentos estruturais e geradores de emprego.
A inflação, em sua essência, é a manifestação do conflito distributivo entre capital e trabalho e deve ser analisada sob essa ótica. Ela reflete disputas estruturais sobre quem arca com os custos de choques econômicos, como os de combustíveis ou cambiais. Quando esses choques ocorrem, o capital busca proteger suas margens de lucro, repassando os aumentos de custos aos preços finais, alimentando a inflação. Os trabalhadores, por sua vez, tentam recompor seus salários para recuperar o poder de compra diante da escalada dos preços.
A capacidade dos trabalhadores de alcançar reajustes salariais, entretanto, está profundamente vinculada à taxa de desemprego. Em um cenário de desemprego baixo, o poder de barganha da classe trabalhadora se fortalece, favorecendo aumentos salariais mais significativos. Para o capital, contudo, isso representa um aumento dos custos, gerando uma tensão que frequentemente se traduz em novos repasses aos preços. Nesse contexto, a inflação emerge como um reflexo direto do embate entre dois interesses antagônicos: a manutenção dos lucros pelo capital e a preservação do poder de compra pelos trabalhadores. Daí a atual reclamação dos capitalistas sobre um suposto superaquecimento da economia brasileira. O que, de fato, desejam é um aumento do desemprego para vencer o conflito distributivo contra os trabalhadores.
Esse conflito é central na dinâmica inflacionária e é sintetizado pelos economistas ortodoxos no conceito de NAIRU (Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment, ou taxa de desemprego não aceleradora da inflação). Na visão ortodoxa, a NAIRU define um nível “natural” de desemprego, no qual as pressões inflacionárias decorrentes de aumentos salariais são neutralizadas. Contudo, o que a NAIRU realmente representa é a taxa de desemprego necessária para enfraquecer a capacidade de negociação dos trabalhadores, mantendo seus salários estagnados e assegurando margens de lucro para o capital. Sob o pretexto de estabilizar a economia, a NAIRU institucionaliza níveis de desemprego como ferramenta para disciplinar a classe trabalhadora no conflito distributivo. Quando o país atinge essa “taxa limite” – que pode ser elevada, como 6% ou 7% –, dizem que estamos, vejam só, em pleno emprego. Isso escancara a excrescência de setores progressistas usarem esse conceito de forma elogiosa.
Na prática, essa narrativa teórica sustenta políticas monetárias e fiscais contracionistas que, ao reduzir o nível de atividade econômica, aumentam o desemprego e limitam a capacidade dos trabalhadores de reivindicar melhores condições. Daí as tentativas recorrentes de imposição de políticas fiscais de austeridade e o desmonte de políticas sociais protegidas pela Constituição. O custo social dessa lógica de austeridade permanente é imenso: desemprego elevado (mesmo quando economistas anunciam que a taxa de desemprego é “baixa”), desigualdade crescente e perda de qualidade de vida para amplas parcelas da população. Ainda assim, essas políticas são frequentemente apresentadas como tecnicamente neutras e inevitáveis para controlar a inflação, quando, na verdade, representam escolhas políticas claras em favor do capital.
Esse entendimento é fundamental para analisar a inflação sob um prisma mais realista, científico e que não camufle a luta de classes. Para 2025, é urgente abandonar a lógica do PPI, que prioriza os lucros de acionistas às custas da população. É igualmente essencial retomar estoques reguladores de alimentos, implementar uma política robusta de valorização do salário mínimo e reajustar anualmente o Bolsa Família acima da inflação. Além disso, a meta de inflação precisa ser ajustada para níveis mais condizentes com a realidade econômica e social do Brasil, como 4% ou 4,5%, possibilitando uma política monetária menos restritiva.
A inflação, em sua composição, reflete claramente o conflito distributivo entre capital e trabalho. Enfrentá-la de forma justa exige priorizar a maioria, questionar os interesses que perpetuam a desigualdade e desafiar a lógica do controle da inflação por intermédio de políticas de austeridade fiscal e das altas taxas de juros – a pior resposta para os trabalhadores e, simultaneamente, a melhor para o capital. Esse embate será central em 2025, definindo os rumos econômicos e sociais do país.