‘Notas Sobre um Desterro’: um filme contra o apagamento da Palestina
Documentário brasileiro que estreia no Festival Olhar de Cinema transforma imagens da ocupação na Cisjordânia em denúncia sensível do apartheid israelense e da resistência palestina
Fotos: Fabulário Filmes/Divulgação
Em tempos de apagamento sistemático e discursos desumanizantes, “Notas Sobre um Desterro” emerge como um grito audiovisual contra o silêncio imposto à Palestina. Dirigido por Gustavo Castro, o documentário estreia no dia 14 de junho no Festival Olhar de Cinema, em Curitiba, e revela – com imagens brutais e delicadas – o cotidiano de uma terra que resiste, apesar da ocupação militar, do apartheid institucionalizado e da brutalidade normalizada.
A gênese do filme remonta a 2018, quando Castro e o fotógrafo Rafael de Oliveira cruzaram a Cisjordânia com câmeras na mochila e uma pergunta fundamental na cabeça: como sobrevivem os que resistem? Durante um mês, a dupla percorreu estradas vigiadas por tanques, checkpoints e soldados, sendo acolhida por uma família palestino-brasileira – a de Ruaida Rabah, irmã do presidente da Fepal, Ualid Rabah – no vilarejo de Kobar. A proposta inicial era simples: registrar a vida sob ocupação, retratando possibilidades de coexistência. Contudo o projeto muda de rumo à luz dos acontecimentos de 7 de outubro de 2023.
Com a finalização do filme atrasada pela falta de recursos, a equipe resolve revisitar o material captado costurando-o com vídeos de arquivo e materiais atuais compartilhados nas redes por palestinos – vítimas que, mesmo sob bombardeios e cerco, seguem narrando a própria história. A proposta estética rompe com a linguagem jornalística fria e com o didatismo dos grandes veículos ocidentais: Castro opta por um ensaio visual sensível, sem locução ou filtros técnicos, onde a realidade é mostrada em carne viva.
O filme não busca neutralidade – e isso é uma de suas maiores forças. Ao contrário do que prega o jornalismo de “dois lados”, “Notas Sobre um Desterro” parte do princípio de que, diante de um processo de ocupação e limpeza étnica, tomar partido não é um erro, mas uma obrigação ética. Um cinema feito com o coração do lado certo da história.
Na sequência, conversamos com o diretor Gustavo Castro sobre os bastidores do filme, o papel do Brasil na questão palestina e o desafio de fazer arte em tempos de genocídio.




Quando você iniciou as filmagens, sua proposta era falar sobre coexistência. Acabou que o filme virou outra coisa. Como foi esse processo?
Quando fomos para Palestina, em 2018, a gente entendia que querer fazer um documentário sobre o conflito seria algo muito pretensioso. Primeiro porque era uma época de relativa tranquilidade lá na Cisjordânia. E também porque já tem outros documentários muito importantes, muito impactantes que retratam o conflito sobre o olhar dos próprios palestinos. Através das pesquisas que fizemos, vimos vários exemplos de coexistência pacífica entre diferentes religiões do país. Inclusive existiam, antes de 1948, vários relatos de famílias que tinham judeus como amigos, que viviam em comunidade. Fomos atrás dessas histórias. Mas, enfim, passaram-se alguns anos, e a gente, por falta de incentivo, de leis, não conseguimos finalizar o filme. Mas quando aconteceu o fatídico 7 de outubro de 2023, a gente precisou revisitar o material e o filme acabou tomando outra direção, mudando até de nome [inicialmente, se chamaria “Coexistências”]. Aí, sim, tornou-se um filme que trata do conflito de uma forma bem direta. A gente teve acesso a imagens de arquivo da Urwa, que é a agência de refugiados palestinos da ONU, com registros de desde o início do século 20. O filme também se aprofunda nelas para contar a história da Palestina.
Vocês também empregaram imagens produzidas pela própria população palestina. Você se deparou com um problema ético?
Tivemos muitos agora, nessa etapa final de edição, justamente por tratar com essas imagens de genocídio que são transmitidas através das redes sociais. São crianças amputadas, pessoas em situação de sofrimento extremo, de fome… Mas há uma estratégia de apagamento por parte das big techs e da grande mídia, então essas imagens fazem parte do filme. Aí a gente teve várias questões éticas que a gente amadureceu e conversou aqui durante esse processo de edição. Decidir o que mostrar ou não. A gente conversou muito na equipe de roteiro do filme para entender qual era o limite, porque é uma desumanidade em nível extremo. Inclusive, abalando nossa condição de saúde mental.
Vocês ficaram muito afetados pelo conteúdo das imagens?
Sim, A equipe foi muito abalada por ficar em contato com esse tipo de material e manuseando ele, buscando uma sensibilidade. Isso nos afetou muito. Era muito comum aqui na produtora, a gente estar trabalhando e, de repente, as três pessoas que estão no roteiro, cada uma no seu computador, chorando. Tem essa questão da proliferação de imagens de guerra, mas muitas vezes essas imagens são produzidas pelas próprias vítimas.
Como é que você enxerga esse fenômeno? Isso ressignifica, de alguma forma, a maneira como o mundo consome ou responde a esse tipo de horror?
Olha, isso é uma novidade, né? E a situação do genocídio em Gaz marca essa peculiaridade que é o início da transmissão das imagens de guerra em tempo real pelas próprias vítimas. Isso realmente é muito impactante. Acho que isso transforma realmente a maneira como a gente interage com o que está acontecendo no mundo. Mas, em paralelo, existe todo um sistema que essa estratégia da gente é bombardeado com uma quantidade de imagens diariamente que não permite com que a gente reflita sobre aquela imagem de guerra ou a contextualize. Aquela imagem de guerra ela vem muitas vezes imersa de tantas imagens que fazem você a sua atenção reter para outro campo de mental que você não consegue entender. Até porque aquela imagem ela está descontextualizada de um filme narrativo. Então nosso filme tenta justamente colocar essas imagens dentro de um filme narrativo.
O que mudou no seu olhar, como cineasta, ao revisitar as imagens gravadas em 2018 à luz do que está acontecendo hoje na Palestina?
Olhando as imagens que foram feitas em 2018, a gente estava buscando respostas para o que acontece agora. Chegamos a conclusão de que é resultado de um processo de colonização muito feroz em curso na Palestina já há 77 anos. O que a gente fez nessa nova edição do filme, foi colocar isso mais em evidência. O que eles narram é que realmente já existia uma opressão, mas agora o exército passa na frente da casa deles na Cisjordânia toda semana. Às vezes, o exército fecha as entradas e as saídas desse vilarejo e eles não podem sair e fazer compras, têm que ficar em casa durante dias seguidos. Os colonos sionistas cada vez mais saem de suas colônias e vão aterrorizar os palestinos durante a colheita de olivas Eles intimidam, muitas vezes agridem esses palestinos. Soltam porcos selvagens nas plantações dos palestinos para que eles destruam tudo, esse tipo de coisa.
Depois dessa experiência, o que você entende sobre colonização, apartheid e genocídio?
Antes de ir para a Palestina eu já havia estudado sobre isso. E também o Brasil é um país extremamente racista e desigual. A gente já vive aqui no Brasil, uma espécie de apartheid, né, entre centro e periferia, entre brancos e negros, ricos e pobres, né? Mas isso tudo é, de certa maneira, um pouco velado. Mas quando você vai para Palestina acompanhar o dia a dia do povo, vê que o apartheid é institucionalizado. Então, existe um estado que submete uma população a leis militares, a um controle rígido, uma população que vive sem leis. Então, eu acho que há uma transformação muito grande interna, em a gente entender essa desigualdade num nível da subhumanização. Você desumaniza o outro. Tive oportunidade de ficar alguns dias em Israel antes de cruzar para a Palestina. E conversando com israelenses, pode-se ouvir “lá só tem terroristas, “não são humanos”. É esse tipo de coisa que o sionismo prega e faz com que esse tipo de pensamento seja aceito. Agora vemos uma escalada apenas, porque não houve nenhuma mudança de rumo da política sionista que vem sendo concebida desde o início do século passado.
Algo na construção do seu filme deixou você surpreendido?
Muita coisa. A primeira coisa que eu poderia citar é que se trata de um local extremamente turístico. Estamos falando da Terra Santa, o berço das três principais religiões monoteístas do mundo, né? Então, existe gente do mundo inteiro, o ano inteiro, circulando pelos locais sagrados.É uma região em que as distâncias são curtas, então, você está a todo momento cruzando o muro para um lado e para o outro. E quem é turista nem percebe que existe um apartheid, porque isso não é dito. Os guias turísticos vão falando sobre a história, sobre a religião, mas não citam a ocupação, não citam o que realmente acontece lá. Então, você cruza um muro achando que é uma questão de segurança, que é um posto de controle, mas você não tem essa noção de segregação.
Como você percebe o distanciamento ou a empatia do público brasileiro em relação à questão da Palestina?
Há um ano e meio, ouvimos notícias em praticamente todos noticiários brasileiros sobre Gaza, sobre o que está acontecendo lá, mas são notícias muito superficiais, que tratam sempre a situação da mesma forma, falando de “direito de defesa” como se algo houvesse iniciado no 7 de outubro de 2023. Então, há um entendimento muito superficial do público brasileiro sobre essa questão. Existem pouquíssimos filmes feitos para sala de cinema sobre esse tema feitos por brasileiros. Por isso acreditamos que nosso filme tem uma importância muito grande para contextualizar a situação que acontece na Palestina sob a ótica de quem está no Brasil. É importante porque você vê que até a Câmara Municipal de Araraquara, discutindo o conflito Israel-Palestina, teve vereadores exaltados com posições contrárias. Isso porque o tema aqui entrou um pouco nesse jogo de polarização política que a gente vive atualmente. Então, esse filme vem lançar um pouco de luz sobre essa situação e tentar aprofundar um pouco mais o debate sob o olhar de alguém que vive a realidade brasileira.