Gaza expõe a falência do liberalismo ocidental
Ao defender e armar Israel nos últimos dois anos, os governos ocidentais mostraram o vazio do direito internacional. O genocídio será lembrado como um momento decisivo no colapso do liberalismo
Ao defender e armar Israel nos últimos dois anos, os governos ocidentais demonstraram a insignificância do direito internacional. O genocídio será lembrado como um momento decisivo no colapso do liberalismo.
No seu livro Gaza Catastrophe: The Genocide in World-Historical Perspective (A catástrofe de Gaza: o genocídio numa perspetiva histórica mundial), Gilbert Achcar analisa os antecedentes, a dinâmica e as consequências globais da guerra de Israel na Faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023.
Nesta entrevista à Jacobin, Achcar discute a radicalização política da sociedade israelense, os erros estratégicos do Hamas e a cumplicidade aberta dos governos ocidentais no genocídio que se desenrola em Gaza. Ele argumenta que a guerra desmascarou a chamada ordem internacional liberal — e acelerou ainda mais a ascensão global das forças neofascistas.
ELIAS FEROZ – No seu livro, o senhor não se limita a condenar o ataque do Hamas de 7 de outubro, mas o coloca num contexto histórico mais amplo e critica as tentativas de racionalizar ou justificar o massacre. Como o senhor avalia as consequências a longo prazo desse evento para Gaza e para o futuro de Israel-Palestina?
GILBERT ACHCAR – A operação do Hamas de 7 de outubro — independentemente da sua natureza e das atrocidades cometidas naquele dia — foi, segundo os seus organizadores, concebida como um primeiro passo para a libertação da Palestina. A julgar por esse objetivo, resultou num desastre total. O povo palestino enfrenta agora uma ameaça maior do que nunca. Estamos presenciando uma guerra genocida por parte de Israel, que já matou um número enorme de pessoas.
Conhecemos os números oficiais das pessoas mortas diretamente pelas bombas, mas se incluirmos as mortes indiretas causadas pelo bloqueio, pela interrupção da ajuda humanitária, pela orquestração deliberada da fome, pelo corte do abastecimento de água e pela destruição da infraestrutura de saúde por Israel, o número real é certamente muito superior aos 60 000 oficialmente citados. Pode muito bem ultrapassar os 200 000. É um número impressionante.
Seguiu-se um ataque israelense em grande escala que não teria sido politicamente possível sem o pretexto de 7 de outubro — tal como o 11 de setembro serviu de pretexto para as invasões do Afeganistão e do Iraque pela administração Bush. Em Gaza, vimos algo semelhante. Um governo de extrema-direita — o mais extremista da história de Israel — aproveitou o ataque de 7 de outubro como pretexto. Para eles, foi quase como uma dádiva do céu, uma oportunidade de ouro para reinvadir a Faixa de Gaza. Todos os atuais membros do governo se opuseram à retirada de Gaza em 2005. Benjamin Netanyahu chegou a demitir-se do governo de Ariel Sharon em protesto. Agora, Netanyahu aproveitou a oportunidade não apenas para reinvadir Gaza, mas para ir muito além: expulsar a população.
O que estamos vendo é claramente a limpeza étnica de grande parte de Gaza, empurrando os palestinos para um canto da faixa. O próximo passo provavelmente será uma tentativa de organizar a migração dos habitantes de Gaza. Ao mesmo tempo, o governo israelita deu aos colonos da Cisjordânia — apoiados pelo exército israelense — carta branca para atacar a população local. Portanto, agora também estamos testemunhando uma limpeza étnica em curso na Cisjordânia. Os palestinos estão na pior situação que enfrentaram em muito, muito tempo.
ELIAS FEROZ – Descreva o grave erro de cálculo do Hamas, ao subestimar que Israel tem um governo de extrema direita, que defende abertamente a expulsão dos palestinos e está pronto para lançar uma guerra genocida. Como é que este contexto moldou as consequências do ataque de 7 de outubro e por que é que o Hamas não considerou plenamente este fator crítico?
GILBERT ACHCAR – Estamos falando da ala mais extrema da política israelita: todo o governo de Israel hoje é de extrema direita. Mesmo antes de 7 de outubro, o historiador do Holocausto Daniel Blatman, escrevendo no Ha’aretz, descreveu Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich como neonazis. Alguns são mais extremistas do que outros. Mas todos, em última análise, partilham o mesmo objetivo: livrar-se dos palestinos e estabelecer um estado de Israel que seja palästinenserfrei (livre de palestinianos) ou araberfrei (livre de árabes) do rio ao mar. É profundamente chocante que pessoas que reivindicam o legado das vítimas do Holocausto — as vítimas da campanha nazista por uma Alemanha judenfrei (termo em alemão que poderia ser traduzido como “livre de judeus”. Na Alemanha nazista, essa palavra era usada para designar o objetivo da limpeza étnica contra a população judia) — estejam agora perseguindo o objetivo de uma terra araberfrei (Hoje em dia, estudiosos utilizam a adaptação Arabfrei para designar o objetivo do genocidio Palestino praticado por Israel).
O Hamas provavelmente acreditava que o governo israelita estava enfraquecido, devido aos protestos em massa contra o julgamento por corrupção de Netanyahu, e contava com o apoio do Irã. Esperavam que o seu ataque desencadeasse uma revolta palestina mais ampla e uma guerra regional envolvendo o Hezbollah, a Síria e o Irã. Mas isso foi um erro de cálculo total. Em vez de dividir a sociedade israelense, o ataque unificou-a em torno de um único objetivo: esmagar o Hamas. O resultado foi um consenso esmagador entre os judeus israelenses em apoio à guerra de Gaza e à reocupação da Faixa de Gaza. Pesquisas recentes mostram até mesmo que a maioria dos judeus israelenses agora apoia a expulsão dos habitantes de Gaza, se não a expulsão dos palestinos da Palestina.
Não reconhecer isso — e, em vez disso, afirmar que o ataque do Hamas de alguma forma “colocou a questão palestina de volta em discussão” — é simplesmente absurdo. A questão palestina está de fato de volta em discussão, mas não para afirmar os direitos palestinos. Ela está de volta para que se chegue a um consenso sobre a melhor forma de liquidar a causa palestina. Isso não é um progresso para a luta palestina — é um enorme retrocesso, uma derrota grave. Israel está hoje mais triunfante do que nunca, o seu poder regional é maior do que nunca, e tudo isso com o apoio total dos Estados Unidos — apoio que não diminuiu de Joe Biden a Donald Trump, mas apenas se intensificou.
ELIAS FEROZ – Você mencionou a caracterização de Daniel Blatman do governo israelita, estabelecendo sua relação com regimes fascistas ou mesmo neonazistas. Você pode explicar por que acha que essa comparação é precisa?
GILBERT ACHCAR – Bem, os liberais e esquerdistas não têm problema em chamar a Alternativa para a Alemanha ou o Partido da Liberdade da Áustria de neonazistas. Em comparação com Ben Gvir e Smotrich, esses grupos são moderados.
Ben Gvir e Smotrich descrevem abertamente os palestinos como Untermenschen — literalmente. Eles pedem explicitamente a expulsão deles. Isso é equivalente a judenfrei: uma terra, Eretz Israel, como eles a chamam, livre de palestinos. Eles querem expulsá-los. São abertamente racistas e acreditam na força — na Machtpolitik, impondo as suas opiniões através do poder.
Não nos esqueçamos: entre 1933 e 1941, judenfrei para os nazis significava expulsão. Os anos do extermínio dos judeus europeus seguiram-se mais tarde. Primeiro, os nazistas expulsaram os judeus alemães para a Palestina. Eles concluíram um acordo com o movimento sionista para transferir os judeus alemães para lá. A Palestina era o único lugar onde os nazistas permitiam que os judeus que deixavam a Alemanha levassem algum capital com eles. Eles não queriam que os judeus alemães fossem para a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos, onde apoiariam os lobbies antinazistas. Eles queriam que fossem para a Palestina.
Smotrich e outros da sua laia — e isso é trágico — são descendentes de pessoas que foram vítimas do genocídio nazista. E, no entanto, eles podem reproduzir as mesmas visões e comportamentos de extrema direita que caracterizaram os nazistas. Mas é assim que a história é. Ser descendente de vítimas não significa necessariamente que você será um lutador pela liberdade. Vimos muitos opressores surgirem dos descendentes de vítimas, ou mesmo antigos oprimidos se transformarem em opressores.
ELIAS FEROZ – Você escreve que, dada a esmagadora superioridade militar de Israel, a única estratégia racional para os palestinos é a luta não violenta em massa, como exemplificado pela primeira intifada, que criou uma profunda crise ética e política na sociedade israelense. Na sua opinião, quais foram os erros ou limitações da primeira intifada e por que essa estratégia ainda não resultou em sucesso duradouro para os direitos palestinos ou no fim da ocupação?
GILBERT ACHCAR – Bem, a primeira intifada atingiu o seu auge em 1988, especialmente durante a primeira metade desse ano. Foi um movimento popular, organizado por comitês locais e populares — uma verdadeira mobilização em massa que contou com a participação significativa das mulheres. Pessoas de todas as idades estavam presentes. O movimento criou uma verdadeira crise moral dentro da sociedade israelense e até mesmo dentro do exército israelita. Também gerou considerável simpatia internacional pela causa palestina.
Então, por que falhou? Primeiro, porque a repressão israelita foi intensa. Mas, mais importante ainda, a OLP [Organização para a Libertação da Palestina] assumiu a liderança e sequestrou a intifada. Yasser Arafat e a OLP redirecionaram-na para o seu próprio projeto de estabelecer um chamado Estado palestino, o que acabou por levar aos Acordos de Oslo de 1993. Um ponto de viragem fundamental foi a mudança da liderança local nos territórios ocupados para a liderança da OLP em Tunes. A partir daí, começou a emitir declarações oficiais em nome da intifada através da rádio, marginalizando efetivamente a liderança popular. Isso marcou um grande retrocesso para a autonomia e direção do movimento.
Em segundo lugar, a luta de massas não vence de uma só vez. Ela acontece em ondas — cada onda fortalece o movimento e enfraquece gradualmente o adversário. É uma questão de equilíbrio de forças. Quando o seu inimigo é militarmente muito mais forte e está totalmente preparado para matar, não é do seu interesse iniciar ataques armados, ainda menos se o seu inimigo é apoiado pela maioria dos residentes do território devido ao desenraizamento do seu próprio povo. Se o fizer, eles irão esmagá-lo.
Mas se se envolver numa luta popular, ganha superioridade moral e pode atrair um apoio muito mais amplo. Nesse caso, o inimigo encontra-se numa posição mais difícil: se responder massacrando manifestantes pacíficos, será amplamente condenado. Perde legitimidade aos olhos da opinião pública internacional. Israel, em particular, depende fortemente do apoio do Ocidente — militar, político, diplomático — e, por isso, é afetado pela opinião pública ocidental.
Para fazer uma comparação: considere a população negra nos Estados Unidos e na África do Sul. Na África do Sul, os negros formavam uma maioria esmagadora, então fazia sentido estrategicamente para eles recorrerem à luta armada contra o regime do apartheid, juntamente com a luta de massas.
Em contrapartida, a população negra nos Estados Unidos, como minoria, não tinha hipótese de vencer através da violência. O movimento pelos direitos civis, com figuras como Martin Luther King Jr., teve sucesso ao usar a luta de massas não violenta para expor a brutalidade do sistema. Isso certamente desempenhou um papel muito maior no avanço da luta antirracista do que aqueles que apelavam à luta armada, como os Panteras Negras. Esse caminho não foi longe porque era um beco sem saída. Não se pode lutar com armas contra um inimigo que é muito mais forte do que você. Isso apenas fornece ao seu oponente um pretexto — uma desculpa — para responder com violência esmagadora. Eles vão matar muito mais pessoas do que matariam se estivessem enfrentando apenas protestos pacíficos.
É uma questão de estratégia. É preciso adaptar os métodos às capacidades. Os meios utilizados dependem da força e do equilíbrio geral das forças. A crença do Hamas — de que a violência armada libertaria a Palestina — era completamente ilusória. E aqui estamos nós. Não importa como se tente distorcer a situação, é claramente um grande desastre. O resultado desses eventos é uma catástrofe total. Dito isso, reconhecer as consequências desastrosas de 7 de outubro não justifica de forma alguma a guerra genocida que Israel vem travando desde então.
Durante o primeiro ano do genocídio, a maioria dos governos ocidentais nem sequer fingiu questionar o chamado direito de Israel à autodefesa — digo “chamado” porque é altamente questionável que um ocupante tenha o direito de se defender contra o direito legítimo dos ocupados de resistir à ocupação — mesmo que Israel tivesse matado muito cedo um número muito maior de palestinos do que o número de israelenses mortos em 7 de outubro.
Mas foram ainda mais longe: os governos ocidentais, não só os Estados Unidos, mas também as potências europeias, opuseram-se ativamente aos apelos para um cessar-fogo imediato durante vários meses, e Washington continua a fazê-lo. Ao fazê-lo, endossaram efetivamente a guerra — a guerra genocida que se desenrolava. Quando se opõe a um cessar-fogo, está a favor da continuação da guerra. Essa era a posição deles. É uma postura histórica vergonhosa.
Como explico no meu livro, este momento marcou o golpe final na chamada ordem internacional liberal baseada em regras. Esta ordem sempre foi uma ficção — mas nunca essa ficção foi tão claramente exposta como agora. O duplo padrão é flagrante, e em nenhum lugar mais do que no contraste marcante entre a forma como os governos ocidentais responderam à guerra da Rússia contra a Ucrânia e a forma como responderam à guerra de Israel contra Gaza.
Tudo isso tem um enorme impacto histórico. Abriu caminho para a ascensão contínua do neofascismo a nível global. A posição da administração Biden desempenhou um papel importante na derrota dos democratas e abriu caminho para o regresso de Trump à Casa Branca — desta vez com uma agenda e um comportamento neofascistas muito mais claros do que durante o seu primeiro mandato.
Isto impulsionou ainda mais a extrema direita em todo o mundo — da Alemanha à França, Espanha e outros países. Estamos agora vivendo, como escrevi num artigo há alguns meses, naquilo a que chamo a era do neofascismo. Tudo isto está ligado à perda total de credibilidade do liberalismo.
É por isso que o genocídio de Gaza e a atitude dos governos ocidentais em relação a ele serão lembrados como um ponto de virada histórico — um momento crucial que expôs e completou o colapso do liberalismo ocidental, ou atlantista.
ELIAS FEROZ – O senhor descreve o sionismo como um projeto colonial com “tendências genocidas”. Ao mesmo tempo, argumenta que a liberdade palestina requer a inclusão dos judeus israelitas e uma transformação da sociedade israelense. Como imagina que essa transformação possa acontecer, dadas as realidades políticas atuais, e que medidas concretas seriam necessárias para alcançar a liberdade tanto para os palestinos como para os israelenses?
GILBERT ACHCAR – Hoje isso parece utópico, mas devemos manter uma perspetiva histórica. Após a primeira intifada, de 1987 até a chamada segunda intifada em 2000, a opinião pública em Israel mudou a favor da paz e de um acordo com os palestinos. Essa foi a época dos Acordos de Oslo. Embora esses acordos fossem falhos desde o início, o clima da sociedade israelense era bem diferente naquela época.
Entre os intelectuais judeus-israelenses, havia um movimento pós-sionista que buscava superar o sionismo e alcançar a coexistência pacífica. Mas a partir de 2000, isso se reverteu depois que Ariel Sharon — que na época era o político mais à direita entre os políticos proeminentes de Israel — provocou os eventos que desencadearam a segunda intifada, na qual a liderança de Arafat caiu na armadilha da luta armada.
As forças de segurança palestinas utilizaram as armas ligeiras que o Estado de Israel lhes tinha permitido ter contra as tropas israelenses. Esta armadilha permitiu a Sharon ganhar as eleições em fevereiro de 2001. Assim, ele provocou o confronto em setembro de 2000, ganhou as eleições na onda criada por este confronto em fevereiro de 2001 e lançou o que foi o ataque mais violento à Cisjordânia desde 1967. A guerra atual é muito mais violenta, mas a guerra de 2002, lançada sob o governo de Sharon, já foi muito brutal.
É por isso que digo que é importante que os oprimidos tenham uma visão estratégica clara e escolham métodos de luta adequados — em vez de métodos que terminam em catástrofe.
ELIAS FEROZ – O senhor descreve como grupos sionistas extremistas de extrema direita, outrora marginalizados e até rotulados como terroristas por Israel e pelos países ocidentais, passaram a fazer parte do governo israelense através de Netanyahu. Como vê o apoio militar contínuo a um governo que inclui estas facções de extrema direita?
GILBERT ACHCAR – Quando Trump foi eleito pela primeira vez, ele rompeu com o consenso bipartidário que definia a política dos EUA desde 1967. Ele apoiou a anexação das Colinas de Golã — algo que nenhum governo anterior havia reconhecido — e fez o mesmo com Jerusalém Oriental. Ele abraçou totalmente a perspectiva israelense.
Depois veio [Joe] Biden. Durante a sua campanha, prometeu reverter as políticas de Trump — mas acabou por ser um mentiroso total. Não reverteu nada. E quando 7 de outubro aconteceu, ele apoiou totalmente a guerra genocida. Israel não teria sido capaz de travar esta guerra prolongada sem o apoio contínuo dos EUA — e isso começou sob a administração Biden. Foi Biden quem forneceu a Israel bombas massivas de uma tonelada.
Quando se lança essas bombas numa área densamente povoada como Gaza, trata-se claramente de uma arma genocida. Vai-se matar milhares de pessoas, a maioria delas civis, incluindo crianças. Quarenta por cento das vítimas são crianças.
Mesmo que acreditasse que todas as vítimas masculinas eram membros do Hamas — o que está obviamente longe de ser verdade — ainda assim 70% das vítimas seriam claramente não combatentes: mulheres e crianças. Menciono as mulheres porque, em Gaza, as mulheres não são combatentes. O Hamas não recruta combatentes femininas. Assim, apenas uma minoria das vítimas são combatentes. A maioria delas esconde-se nos túneis que o Hamas construiu. Não existem abrigos para civis, que são deixados à superfície, bombardeados e mortos, enquanto os combatentes podem refugiar-se no subsolo.
É aqui que fica clara a enorme responsabilidade criminal da administração Biden — e ela será continuada, é claro, pela segunda administração Trump. Houve outros genocídios desde 1945, especialmente na África. Mas este é o primeiro genocídio cometido por um Estado industrialmente avançado e apoiado por todo o sistema ocidental, todo o bloco ocidental. É por isso que este genocídio é um divisor de águas histórico tão importante.
ELIAS FEROZ – Você descreve o apoio incondicional do Ocidente a Israel após o ataque de 7 de outubro como uma forma de «compaixão narcisista», semelhante à reação do Ocidente após o 11 de setembro, em que a empatia se estende principalmente a «pessoas como nós». Como é que esta compaixão seletiva influencia a perceção pública e as respostas políticas ao sofrimento dos palestinos?
GILBERT ACHCAR – Existe uma identificação dos israelenses como um povo europeu, visto como parte do Ocidente dentro do Oriente. Theodor Herzl, o fundador do sionismo político moderno, escreveu no seu manifesto, Der Judenstaat, que os judeus vão construir “uma fortaleza da civilização no meio da barbárie”. Este é um discurso colonial típico — a ideia de que “nós” somos europeus civilizados e os “outros” são bárbaros.
Essa identificação dos Estados ocidentais com Israel também é reforçada pelo fato de Israel reivindicar o legado do Holocausto. Isso permite que os governos ocidentais apoiem Israel com poucas reservas, acreditando que, uma vez que têm vários graus de responsabilidade pelo genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, têm a obrigação moral de apoiar Israel.
Essa atitude atingiu o seu auge com o governo alemão. A Alemanha foi a principal perpetradora do genocídio de 1941 a 1945, mas a forma como o país interpreta as lições da era nazista e do Holocausto é completamente errada. Se a lição que tiram é: “Como os nossos antecessores cometeram genocídio contra os judeus, agora devemos apoiar um chamado Estado judeu que comete genocídio contra outro povo”, então claramente tiraram as lições erradas. Ao fazer isso, estão revivendo o clima ideológico de violência irrestrita que deu origem ao nazismo — embora agora apareça numa nova forma de neofascismo a nível global.
A lição correta do Holocausto — tanto o genocídio dos judeus como de outras vítimas, como homossexuais, pessoas com deficiência e ciganos — é estar constantemente vigilante contra todas as formas de racismo, opressão e políticas de poder agressivas, como a ocupação. É importante ressaltar que essas lições devem ser aplicadas de forma consistente e não seletiva.
Eles aplicam esses valores contra Vladimir Putin por causa de sua invasão da Ucrânia, mas não aplicam os mesmos valores ao governo israelense e sua liderança de extrema direita pelo que estão fazendo em Gaza. Isso é uma enorme contradição. Para além da questão moral, que é significativa, os governos ocidentais são extremamente míopes. Mesmo da perspetiva dos seus próprios interesses, estão agindo de forma míope, porque estão a contribuir para a desestabilização global. Estão criando condições de violência que inevitavelmente vão se espalhar pela Europa e até pelos Estados Unidos.
Veja a violência da década de 1990 — a guerra do Iraque, o embargo ao Iraque, os bombardeamentos contínuos — toda essa violência acabou por se voltar contra os países ocidentais e seus aliados, culminando em tragédias como o 11 de setembro. Quem pensa que o que está acontecendo hoje em Gaza não terá consequências graves no futuro está enganado.
ELIAS FEROZ – Você argumenta que o conceito de «novo antissemitismo», amplamente atribuído aos muçulmanos e seus defensores, é usado para absolver a extrema direita europeia e americana de seu próprio antissemitismo, possibilitando uma aliança perigosa baseada na islamofobia. Como essa dinâmica afetou as respostas ocidentais ao sofrimento palestino e quais são as consequências mais amplas desse «duplo padrão racial» que você descreve?
GILBERT ACHCAR – A extrema direita, especialmente na Europa e nos EUA, frequentemente acusa movimentos como o Black Lives Matter de racismo anti-brancos. Essa é a mesma lógica que os governos europeus usam quando rotulam as populações muçulmanas — algumas das quais podem ter opiniões antissemitas, mas a maioria não — como antissemitas simplesmente porque apoiam os palestinos contra o governo israelense. Isso não é antissemitismo.
O fato é que a extrema direita atual — como a Alternativa para a Alemanha ou o Partido da Liberdade da Áustria — supera todos os outros em ser mais pró-Israel do que o resto. Marine Le Pen, na França, faz o mesmo. Esta extrema direita ocidental, apesar de sua longa história de antissemitismo, tornou-se agora uma forte defensora de Israel porque vê Israel como um aliado contra seu alvo comum: os muçulmanos.
A atual aliança das forças neofascistas baseia-se na nova forma dominante de racismo no Ocidente: a islamofobia. Em vez de reconhecerem que o antissemitismo ainda existe principalmente dentro destas tradições de extrema direita, os apoiadores de Israel ignoram as suas raízes antissemitas. Reprimem sem restrições o movimento de solidariedade com a Palestina.
Na Grã-Bretanha, onde estou, o governo de Keir Starmer decidiu banir como “terrorista” um grupo cuja última ação foi jogar tinta vermelha em aviões de combate da Força Aérea Real. Essa ação teve como objetivo chamar a atenção para o papel da Grã-Bretanha na guerra em Gaza, fornecendo equipamento militar a Israel. Chamar isso de terrorismo é ultrajante. Muitos defensores dos direitos civis protestaram contra esta decisão, explicando que, se começarmos a chamar tudo de terrorismo, abrimos caminho para a destruição das liberdades políticas.
Se o partido de direita de Nigel Farage, Reform UK, ganhar as eleições — o que já não é impossível de imaginar —, poderá usar essa lei para suprimir ainda mais as liberdades políticas. Assim, os chamados governos liberais ocidentais estão jogando um jogo muito perigoso que provavelmente terá um efeito contrário, mesmo contra eles próprios.
ELIAS FEROZ – Você previu — bem antes de acontecer — que Israel poderia arrastar o Irã para um confronto que tornaria inevitável uma ofensiva conjunta dos EUA e de Israel, especialmente sob o governo Trump. Como você interpreta o papel do Irã na atual escalada e o que a sua previsão anterior nos diz sobre o cálculo estratégico que move tanto Israel quanto os Estados Unidos?
GILBERT ACHCAR – O regime teocrático do Irã tem usado a questão palestina como uma importante ferramenta ideológica para expandir a sua influência nos países árabes. Para superar as divisões entre persas e árabes, e entre xiitas e sunitas, ele tem contado fortemente com a causa palestina. Desde o início, essa foi uma carta ideológica fundamental para o regime.
Teerã, portanto, apoiou as forças árabes anti-Israel — principalmente o Hezbollah, que travou uma verdadeira luta contra a ocupação israelense do Líbano. O Hezbollah foi fundado sob o patrocínio iraniano após a invasão de Israel em 1982 e travou uma longa campanha contra essa ocupação, ganhando assim o status de aliado fundamental do Irã.
O Irã aproveitou a ocupação dos EUA no Iraque; como é sabido, o Irã foi o principal beneficiário da invasão dos EUA e hoje tem mais influência no Iraque do que os Estados Unidos. Em seguida, interveio na Síria para apoiar o regime despótico de Bashar al-Assad contra a revolta popular de 2011, o que o ajudou a ampliar ainda mais a sua influência
Isso permitiu ao Irã criar um corredor de poder em toda a região árabe, ao qual se juntou o Iêmen, onde os houthis assumiram o controle da parte norte do país em 2014, desencadeando uma guerra civil.
O Irã tem, assim, construído uma rede de influência direta em toda a região, acreditando que isso lhe proporcionará uma forte proteção. Mas, em vez disso, fez com que Israel visse o Irã como uma ameaça ainda maior, especialmente quando o Irã começou a desenvolver o seu programa nuclear. Isso tornou-se uma obsessão para Israel, apoiada por Washington.
Depois que Trump retirou os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã em 2018, o Irã aumentou consideravelmente seu enriquecimento de urânio para 60%. Esse nível está claramente além do necessário para fins pacíficos, mas permanece abaixo do necessário para uso militar. Portanto, a alegação do Irã de que não tinha intenção de construir armas nucleares foi contradita por esse nível de enriquecimento. Essa postura contraditória saiu pela culatra para o Irã e foi, na minha opinião, outro grande erro de cálculo.
Israel aproveitou então a oportunidade criada pelos acontecimentos de 7 de outubro para primeiro esmagar o Hezbollah e depois lançar um ataque em grande escala ao Irã com o apoio dos EUA. Entretanto, entre estes dois, o regime de Assad entrou em colapso.
Portanto, tudo isso foi um duro golpe para o Irã. Tanto os Estados Unidos quanto Israel veem o Irã como um grande inimigo. Israel, porque o Irã se declara abertamente o inimigo mais ferrenho de Israel. Os Estados Unidos, embora não sejam ameaçados militarmente pelo Irã, o veem como uma ameaça aos interesses dos EUA no Golfo.
Nas duas vezes em que Trump foi eleito, a sua primeira visita ao exterior foi às monarquias árabes do Golfo, e a sua última visita envolveu discussões sobre acordos de centenas de milhares de milhões de dólares. Portanto, independentemente do que dizem — muitas vezes de maneira hipócrita —, as monarquias do Golfo, embora critiquem os ataques de Israel ao Irã, estão na verdade bastante satisfeitas, porque temem muito mais o Irã do que Israel.
Essa é a questão: os Estados Unidos opõem-se ao regime iraniano não principalmente por causa de sua natureza ou ideologia — afinal, a monarquia saudita é ainda mais repressiva —, mas por causa de sua ameaça geopolítica.
ELIAS FEROZ – Dada a situação atual em Gaza e na Cisjordânia, e com o governo israelense a seguir o que descreve como uma política de limpeza étnica, que futuro resta para o povo palestino?
GILBERT ACHCAR – A razão pela qual o governo de extrema direita de Israel não realizou uma expulsão em grande escala dos palestinos foi porque sabia que isso provocaria condenação internacional e provavelmente seria bloqueado. Mas o dia 7 de outubro proporcionou-lhes uma oportunidade — uma chance de começar a implementar este projeto com força total e extrema violência em Gaza, através do que se tornou uma guerra genocida.
Ainda não podem expulsar a população palestina de Gaza porque isso requer luz verde dos Estados Unidos. Mesmo sob a administração Trump, isso seria complicado pelas relações de Washington com os Estados do Golfo, que temem o efeito altamente desestabilizador de tal expulsão — especialmente dada a influência petrolífera e financeira desses Estados, que continua a ser crucial não só geopoliticamente, mas também para os interesses comerciais pessoais e familiares de Trump.
Existem agora dois cenários terríveis que os palestinos enfrentam: de um lado, está a perspetiva de uma limpeza étnica total — a sua expulsão em massa, que marcaria a segunda grande deslocação de palestinos da sua terra desde 1948. Embora tenha ocorrido uma expulsão mais limitada da Cisjordânia em 1967, o que está agora em jogo é a remoção da maioria do povo palestino de Gaza e da Cisjordânia.
Por outro lado — um cenário profundamente preocupante, mas que alguns consideram a opção do “mal menor” — está a criação de um falso Estado palestino composto por enclaves desconectados na Cisjordânia e em Gaza. O resto da terra seria anexado por Israel, preenchido com colonos e forças militares. Isto já está em discussão: a administração Trump e Netanyahu estão supostamente negociamdo com os Emirados Árabes Unidos, o reino saudita e o Egito um acordo que faria com que esses países administrassem temporariamente os habitantes de Gaza como parte deste chamado “Estado” até que um substituto palestino de Israel se tornasse capaz de substituí-los.
É claro que isso não seria libertação. Seria simplesmente uma nova forma de organizar a prisão a céu aberto na qual os palestinos estão confinados desde 1967 — uma prisão moldada pela ocupação, agora redesenhada para parecer um “acordo político”, preservando as estruturas centrais de dominação de forma muito agravada.
COLABORADORES
Gilbert Achcar é professor emérito da SOAS, Universidade de Londres. Os seus livros mais recentes são The New Cold War: The United States, Russia and China From Kosovo to Ukraine (A Nova Guerra Fria: Os Estados Unidos, a Rússia e a China, do Kosovo à Ucrânia) e Gaza Catastrophe: The Genocide in World-Historical Perspective (A Catástrofe de Gaza: O Genocídio numa Perspectiva Histórica Mundial).
Elias Feroz é escritor freelancer. Entre outras coisas, os seus focos incluem racismo, antissemitismo e islamofobia, bem como a política e a cultura da memória.