“A única coisa que os invasores não querem é que a gente se una. Mas é hora de nos levantarmos. O tempo está se esgotando” – Entrevista exclusiva Lidia Thorpe

“A única coisa que os invasores não querem é que a gente se una. Mas é hora de nos levantarmos. O tempo está se esgotando” – Entrevista exclusiva Lidia Thorpe

Lidia Thorpe, senadora australiana indígena, concedeu entrevista exclusiva a Revista Esquerda em Movimento durante a realização da “Conferência Ecossocialista: Não à Barbárie” em Melbourne

Fred Fuentes e Israel Dutra 9 set 2025, 19:17

Entrevistamos a senadora australiana Lidia Thorpe, aproveitando sua participação na Ecosocialist not Barbarism Conference, organizado pela Socialist Alliance, em Melbourne, Austrália, nos dias de 5 a 7 de setembro, contando com a presença de ativistas de esquerda de mais de 12 países. No dia de abertura da conferência, a senadora cumpriu um papel de destaque na principal mesa de discussão durante a inauguração da atividade.

Lidia Thorpe é a primeira senadora indígena de Victoria, e tem sua trajetória ligada ao movimento indígena desde criança, sendo uma das mais importantes representantes dos povos aborígenes na Austrália. Foi eleita para a Assembleia Legislativa de Victoria em 2017 e em 2020 foi eleita Senadora. É uma senadora independente desde 2023, quando rompeu com o Partido Verde com críticas importantes a respeito do partido e da representação indígena e luta por mais direitos.

Nós da Revista Esquerda em Movimento, e do Movimento Esquerda Socialista estivemos acompanhando esta edição da Conferência Ecosocialista, que esse ano teve como mote principal “Conferência Ecossocialista: Não à Barbárie”, após muitos anos sem uma representação política do Brasil presente nessa conferência. Por isso, estamos muito felizes de poder trazer a cobertura completa dos debates e discussões que aconteceram durante o evento, e por poder fortalecer a troca de experiências entre os lutadores e lutadoras ao redor do mundo. Este é apenas um primeiro material de cobertura da Ecosocialist not Barbarism Conference, e estaremos publicando e divulgando mais notícias e artigos sobre esta importante conferência.

Da esquerda para direita: Fred Fuentes, Lidia Thorpe e Israel Dutra

Israel Dutra e Fred Fuentes

Gostaria de começar agradecendo pela oportunidade de realizar esta entrevista. Você é bastante conhecida no Brasil, especialmente por ter se levantado contra o Rei Charles quando ele esteve na Austrália. Isso foi visto como uma grande referência de resistência ao colonialismo. Esperamos que um dia você também possa visitar o Brasil. Mais uma vez, obrigado por esta oportunidade.

Lidia Thorpe

Nossos ancestrais estão conosco. Tudo o que sabemos e falamos nos dá força, e eles me deram força naquele dia. Eu não planejei nada daquilo, foram eles. Eles simplesmente me empurraram para frente e disseram: “Vai, resista por nós, por todos os nossos anciãos e ancestrais, e também pelos ancestrais de todos os povos”. Eu não tinha ideia de que isso teria repercussão mundial, mas acabou acontecendo e ressoando com tantas pessoas.

Israel Dutra e Fred Fuentes

Talvez você pudesse começar nos contando um pouco sobre o seu histórico, trajetória e como se tornou a primeira senadora indígena independente aqui na Austrália.

Lidia Thorpe

Bem, eu deixei a escola aos 14 anos e fui trabalhar com meu tio Robbie. Desde essa idade ele foi meu mentor, como se fosse meu pai, sabe? Ele é o irmão mais novo da minha mãe, e eu fui acolhida sob sua orientação. Trabalhei em Fitzroy, na Gertrude Street, sempre cercada de ativistas e lideranças negras. Essa foi a minha vida inteira, eu não conheci outra realidade.

Sempre me ensinaram, ou colocaram dentro de mim, que eu tinha que lutar pelo meu povo e trabalhar pelo meu povo. É para isso que fui colocada nesta Terra: para me levantar e lutar pelo meu povo. E foi isso que sempre fiz.

Eu tenho uma voz alta, muito alta, a maioria das mulheres da minha família também é muito barulhenta, orgulhosa e mandona. Acho que essa presença fez com que as pessoas me notassem, vissem no que eu acreditava e quisessem que eu fizesse parte do sistema delas.

Foi aí que os Verdes chegaram até mim e disseram: “Quer se juntar ao nosso partido?”. O Partido Trabalhista também me procurou, mas os valores deles não se alinhavam comigo. Até mesmo o Partido Liberal, em certo momento, me convidou, mas, obviamente, para isso eu teria que vender minha alma.

Então, eu aceitei ir para os Verdes, porque eles se importavam com o meio ambiente, com as pessoas, com os refugiados, com a gente. Mas depois percebi que também eram um partido muito branco e tive problemas com isso dentro dos Verdes. Por isso decidi me tornar independente.

Agora tenho mais dois anos e meio de mandato como independente, e é muito improvável que eu seja reeleita, porque esse é o sistema político que temos que enfrentar. Estou usando esse espaço para infiltrar e trazer à luz o que realmente está acontecendo neste país com o meu povo, e a sofisticação do genocídio de 2025 contra nós, que nunca acabou

Israel Dutra e Fred Fuentes

Seguindo o que você falou, poderia comentar sobre quais são, em sua visão, as principais contradições entre o sistema político existente hoje e as lutas dos povos indígenas na Austrália?

Lidia Thorpe

Bem, todo o sistema político deste país, o sistema colonizado, é um sistema que tivemos que engolir. Porque nós sempre tivemos o nosso. A estrutura de governança da cultura viva mais antiga e contínua do planeta vem do meu povo. Temos sistemas de leis e um sistema político, se quiserem chamar assim, que ainda é mantido até hoje e que tem milhares de anos.
 Mas o sistema político colonial que temos que enfrentar é completamente contraditório às nossas leis. O sistema político atual é usado contra o meu povo. Ele é uma arma contra o meu povo, para manter a supremacia branca sobre a qual esse sistema foi construído.


 Esse sistema nasceu de uma mentira, a de Terra Nullius,  mas também de estruturas racistas que meu povo enfrenta todos os dias: no acesso à saúde, na educação, na violência policial. Tudo isso é contraditório ao que somos. Além disso, esses sistemas são usados para nos prejudicar e continuar nos apagando: com mortes sob custódia, remoção de crianças, aumento da taxa de suicídio. Isso causa danos mentais ao nosso povo.


 A única forma de mudar o sistema é abolindo essas estruturas coloniais e aprendendo a partir dos nossos próprios sistemas, aqueles que mantêm e sustentam nosso povo. O que é bom para o meu povo é bom para todos, porque se trata de viver em unidade com a terra, com os animais, com nossos totens. Cada um de nós recebe a responsabilidade por uma espécie específica, que pode ser um animal ou uma planta. Quando recebemos um totem, temos a obrigação de cuidar daquele ser vivo.


 Se todos neste país, e no mundo todo fizessem isso, sustentaríamos nossas vidas e o planeta para sempre. Os povos indígenas ao redor do mundo têm essa prática. Mas o sistema que temos aqui foi construído sobre a supremacia branca, e é isso que ainda carregamos.

Israel Dutra e Fred Fuentes

Poderia nos contar um pouco sobre os ataques que aconteceram recentemente contra o Camp Sovereignty, e o que eles representam?

Lidia Thorpe

Aqueles ataques foram contra o meu povo, contra a nossa terra, contra um espaço sagrado, embora toda a nossa terra seja sagrada e especial. Mas ver neonazistas tendo liberdade para caminhar pelas ruas como homens brancos armados e raivosos, invadindo nosso espaço cultural mais significativo, foi uma violação contra nós enquanto povo e contra nossa terra.
 Isso mostra bem o que enfrentamos todos os dias. Aquilo foi violência extrema, mas a violência que enfrentamos diariamente é igualmente grave. É apenas a continuação da violência colonial à qual somos submetidos neste país.
 Por outro lado, foi positivo que o mundo tenha visto um ato tão violento, porque isso expôs a realidade: a Austrália é isso todos os dias. É apenas mais uma forma de violência que perpetram contra nós, protegidos pela polícia.

Israel Dutra e Fred Fuentes

Existe hoje um movimento internacional de enfrentamento por parte de povos indígenas e outros povos racializados contra símbolos, opressores, línguas, enfim, contra o colonialismo e o neocolonialismo. Isso acontece no Brasil, com indígenas e negros; nos EUA, com o Black Lives Matter; no Chile, com os Mapuche. Como você vê a relação da sua luta com a luta desses povos pelo mundo?

Lidia Thorpe

Somos todos um só povo. Estamos aqui para manter a resistência que nossos ancestrais sustentaram. Temos semelhanças incríveis como povos indígenas ao redor do mundo.
 Nós temos as soluções para as mudanças climáticas, para o ecocídio que todos estamos vivendo. Estamos todos sofrendo o mesmo ataque dos invasores das nossas terras. E quanto mais nos unirmos, mais medo eles terão.


 Já temos poder, porque somos da terra em que vivemos, somos parte dela. Ninguém mais tem esse poder, exceto os povos indígenas do mundo inteiro.


 E a única coisa que os invasores, esses colonizadores violentos, não querem é que a gente se una. Mas é hora de nos levantarmos. O tempo está se esgotando, irmão. Temos que fazer isso pelas próximas gerações, senão não teremos nada. Nossas canções, nossa cultura, nossas histórias, nossas danças, nossa terra, nossa água, nosso céu, nosso ar, tudo desaparecerá se não nos unirmos globalmente para lutar juntos.


 Estive na ONU em junho deste ano e me encontrei com indígenas do mundo todo. E sabe? Eles nos colocaram em uma sala separada, longe das grandes negociações. E eu disse: “Isto é a ONU? Nós, povos indígenas, é que somos as verdadeiras Nações Unidas”.
 Precisamos nos unir, porque eles não sabem o que estão fazendo. Eles destroem tudo em seu caminho. Precisamos agir, e eu sei que os povos indígenas ao redor do mundo estão prontos. Só precisamos fazer acontecer.

Israel Dutra e Fred Fuentes

A extrema-direita costuma atacar os imigrantes com o discurso de que eles estão “invadindo suas terras”. Isso revela mais um caráter supremacista do que de fato uma defesa de território, já que esses grupos são colonizadores assentados em terras ocupadas. Como você enxerga esse discurso da direita em relação à migração e à proteção de fronteiras, considerando que eles mesmos vivem em terras roubadas?

Lidia Thorpe

Eles são almas perdidas, porque não conhecem a verdadeira história deste país, ou preferem ignorá-la. Eles são os verdadeiros imigrantes. E são os imigrantes que nós não queremos aqui: os brancos.
Todos os outros são bem-vindos, mas não aqueles que causam tanto dano. Esses são colonizadores. Mas ninguém nasce racista. Eles foram ensinados a ser assim. É parte da narrativa colonial, porque este país negou às pessoas a educação necessária para não serem racistas. Assim, apenas perpetuam essa narrativa racista colonial.
 Eles se tornaram homens pequenos, perdidos, sem alma, sem conexão com lugar nenhum. Porque eles não são destas terras. E certamente não são bem-vindos. Quanto mais cedo aceitarem que estão em terras roubadas e que precisam respeitar a terra que é nossa, melhor. Esses “pequenos nazistas” precisam começar a pagar aluguel por viver em terra roubada.

Israel Dutra e Fred Fuentes

Para finalizar, agradecemos muito o seu tempo e gostaríamos de manter contato. Queremos convidá-la a participar do Encontro Antifascista Internacional que estamos organizando no Brasil em março do próximo ano. Acreditamos que seria extremamente importante ter a sua voz e a de outros povos indígenas do mundo nesse espaço.

Lidia Thorpe

Obrigada, meu irmão. Eu adoraria conhecer o seu belo país. E sim, se eu conseguir, estarei lá. Também tenho compromissos no Parlamento, mas se não houver sessão, eu irei.


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