A “Gen Z” derrubou outro governo, o de Madagascar

A “Gen Z” derrubou outro governo, o de Madagascar

Depois do Nepal, em Madagascar, os jovens organizaram-se e fizeram-se ouvir contra cortes de energia, falta de água potável e corrupção, mas também contra pobreza endémica e exploração mineira. Uma revolta sem precedentes, horizontal e em rede, sob a bandeira do “Jolly Roger”, a bandeira pirata da série One Piece

Michel Strulovici 13 out 2025, 16:28

O presidente de Madagascar, Andry Rajoelina, demitiu o governo em consequência dos protestos dos últimos dias promovidos pela “Gen Z”. Nos últimos três dias, 22 pessoas foram mortas e mais de uma centena ficaram feridas. Dados do gabinete de Direitos Humanos da ONU culpam diretamente as forças de segurança por várias dessas mortes, enquanto atribuem outras a saques que “não estão associados aos manifestantes”.

Na televisão estatal, a Televiziona Malagasy reconheceu e pediu desculpas caso membros do governo não tenham cumprido suas tarefas atribuídas, e disse que entende “a raiva, a tristeza e as dificuldades causadas pelos cortes de eletricidade e os problemas no abastecimento de água”.

Rajoelina — que destitui o governo para tentar manter-se no poder — agora promete “diálogo” com os jovens. Na capital do país, Antananarivo, as ruas clamam por sua renúncia.

Há três dias, Michel Strulovici explicava o que estava acontecendo no país:

Revolta em Madagascar: o que é o movimento “Geração Z”?

“Quando falamos de ideias que revolucionam toda uma sociedade, estamos simplesmente afirmando o fato de que, no seio da velha sociedade, se formaram os elementos de uma nova sociedade, e que a dissolução das velhas ideias anda de mãos dadas com a dissolução das antigas condições de existência.”
— Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista, 1848

“Leo be” (“Basta!”). Esse é o slogan adotado por milhares de manifestantes em Madagascar nos últimos dias. Grande parte deles reivindica fazer parte de um coletivo “Geração Z Madagascar”, criado em meados de setembro nas redes sociais. Esse movimento, lançado pelos jovens malgaxes — da ilha e da diáspora — vem recebendo apoio considerável. Hoje protestam contra condições de vida que impossibilitam uma existência familiar e econômica normal. A mobilização é inédita tanto em forma como em escala.

Milhares de pessoas desafiaram a proibição da câmara municipal para qualquer aglomeração em Antananarivo. A organização, que se define como um “movimento pacífico e cidadão”, denuncia “cortes constantes de energia e a falta de acesso à água potável”, assim como “a corrupção sistêmica nas instituições” e “a pobreza extrema que atinge grande parte da população”, segundo comunicado divulgado numa quinta-feira. Em tentativa de amenizar o movimento, o governo destituiu o Ministro da Energia na manhã seguinte às manifestações.

A demissão ocorreu depois que a polícia abriu fogo com munição letal, matando seis manifestantes na sexta-feira (algumas fontes informam cinco mortes) e ferindo trinta. Até então, as forças repressivas usavam “apenas” balas de borracha, menos letais.

A jornalista Iss Heridiny, do principal jornal diário da ilha, relatou os acontecimentos violentos: “Na sexta-feira, 26 de setembro, por volta das 10h, houve confronto entre manifestantes e as polícias em vários locais, incluindo Tsena, Bazary Kely e Tanambao. O número de mortos foi de seis, entre eles um estudante universitário (…).”

Por volta das 15h, seus amigos e colegas decidiram atravessar a cidade de Sugarloaf carregando o corpo do estudante. “Não temos armas e permanecíamos no campus na quinta-feira, 25 de setembro, mas vieram aqui nos atacar. Nosso camarada estava na rua, não estava armado. Esse ato é condenável. Por respeito ao nosso amigo, não vamos desistir. A luta continua até que a justiça seja feita”, declarou um dos manifestantes.

O choque é grande na ilha e na diáspora, sobretudo porque todos os testemunhos confirmam a vontade pacífica dos manifestantes. Uma observadora da France 24, Mellit Derr, relatava, no dia seguinte à tragédia, um depoimento de sua “ligação” com Madagascar: “Foi um movimento pacífico, fomos com flores, justamente para mostrar que não tínhamos armas, que não estávamos ali para agredir pessoas (…). Todo mundo estava de bom humor, ficamos felizes de encontrar muitos de nossos amigos.”

Após os confrontos de quinta-feira em Antananarivo, as autoridades impuseram toque de recolher noturno na capital, das 19h às 5h. Desde então, instalou-se uma calma relativa em todas as cidades da ilha.

Ao denunciar as elites corruptas, o movimento da Geração Z malgaxe busca combater um mal que corrói um país rico em recursos, mas no qual 80% da população — quase 22,4 milhões de pessoas dentre 31 milhões de habitantes — vive abaixo da linha internacional da pobreza, com renda inferior a US$ 2,15 por dia (1).

A pobreza atinge com mais força as zonas rurais, onde a maioria depende de agricultura de subsistência e tem pouco acesso a serviços básicos (educação, saúde, infraestrutura). Porém, também cresce nas áreas urbanas, especialmente na periferia de Antananarivo, em razão de um êxodo rural em massa. Os jovens sofrem com alto desemprego e dificuldade em conseguir emprego qualificado.

Entre os jovens de 18 a 35 anos, a taxa de desemprego chega a cerca de 42%. Essas pessoas, embora mais instruídas que as gerações anteriores, são penalizadas por um mercado de trabalho saturado, pela falta de formação adequada, pela escassez de experiência e pela incompatibilidade entre suas qualificações e as exigências do mercado.

O papel dessa geração nas mobilizações expressa a desilusão que corrói. Essa constatação tornou-se quase uma regra nas sociedades capitalistas financeirizadas: “Enquanto o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) avança globalmente, Madagascar permanece preso a um paradoxo preocupante.” Embora seu IDH venha apresentando leve melhora, as desigualdades internas se agravam, empurrando grande parte da população para a periferia do progresso. Isso é observado pelo jornal Midi Madagasikara em matéria de 27 de setembro.

O PIB per capita estimado para 2025 é de US$ 516, segundo especialistas do BPI (2), um valor muito baixo que posiciona Madagascar entre os países com piores índices da África e do mundo.

O Relatório Preliminar de Desenvolvimento Humano de 2025 do PNUD revela uma situação dramática: em 2023, Madagascar ocupava a 150ª posição entre 166 países, com índice de 0,529 — bem abaixo da média da África Subsaariana (0,574) e da média global (0,739).

Esse resultado esconde realidades ainda mais duras. As desigualdades internas anulam quase 28% dos ganhos em desenvolvimento humano, de acordo com o IHDI (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade). Isso significa que o crescimento serve apenas a uma pequena fração da população. As desigualdades são visíveis no acesso a saúde, educação e renda digna.

No entanto, o país é dotado por natureza de grandes riquezas. Madagascar é o maior produtor mundial de baunilha, respondendo por cerca de 85% da produção global, exportada principalmente para as indústrias de perfumes e confeitaria. A costa leste é fértil e cultiva cafés de renome. Também se cultivam cana-de-açúcar, arroz, milho, pimenta e cacau na costa oeste.

Mais importante ainda, Madagascar possui vastas reservas de níquel, cobalto, ouro, safira, titânio, cromo, bauxita, grafite e pedras preciosas. Estima-se que esses recursos minerais somem quase 800 bilhões de dólares! Quem explora essas riquezas? Quem se apropria do trabalho do povo malgaxe?

A riqueza mineral de Madagascar está nas mãos de diferentes atores, especialmente empresas estrangeiras, algumas aliadas ao Estado malgaxe. Há três grandes protagonistas na exploração.

Primeiro, o projeto “Base Toliara”, no sudoeste da ilha, liderado pela Base Resources — empresa australiana recentemente comprada por uma companhia americana, a Energy Fuels Resources Inc. Esse projeto explora um grande depósito de ilmenita e planeja produção por 38 anos. O objetivo principal é fornecer terras raras para países ocidentais (3). Mas o projeto é fortemente contestado e estava suspenso desde 2019.

Movimentos da sociedade civil denunciam seus graves impactos ambientais e sociais. O projeto ameaça o ecossistema local, especialmente a floresta de Mikea, além de afetar comunidades agrícolas, pesqueiras e pastorais. Em novembro de 2024, após reforma do código mineral, o governo malgaxe levantou a suspensão, provocando mobilizações intensas e repressão severa aos oponentes.

O segundo ator é a Ambatovy Minerals SA, responsável por um dos maiores projetos minerais do país, com investimento superior a 8 bilhões de dólares em níquel e cobalto. Essa empresa atualmente é elegível aos benefícios previstos na lei de mineração de grande escala (4).

Por fim, a QMM (QIT Madagascar Minerals) — 80% controlada pela Rio Tinto e 20% pelo governo malgaxe — explora areias minerais que contêm ilmenita e zircão.

Vale a pena relembrar a história da Rio Tinto. Essa gigante multinacional anglo-australiana é referência na voracidade do capitalismo e na destruição ambiental que frequentemente o acompanha. Sua sede é dividida entre Melbourne e Londres. Especializa-se em extração de minerais como alumínio, ferro, cobre, carvão e ouro.

O nome Rio Tinto remonta às antigas minas na Andaluzia, na Espanha, onde a bacia de Rio Tinto foi explorada por mais de 2 mil anos. A empresa moderna foi criada em 1873 a partir da aquisição dessas minas, e tornou-se famosa pela produção de cobre no fim do século XIX. Hoje, possui ativos na Austrália, Canadá, América Latina e África.

Após adquirir a canadense Alcan em 2007, o alumínio virou um de seus principais negócios. A Rio Tinto também se fez presente na história: contra sua exploração destrutiva, a população da região espanhola rebelou-se em 1888 — as primeiras manifestações ecologistas — mas foi brutalmente reprimida. O exército espanhol, convocado pela administração das minas, abriu fogo na população, causando entre 100 e 200 mortes.

Em Madagascar, como em outras partes do mundo, os jovens da “Geração Z” assumem a liderança deste protesto, de caráter social e ecológico. Nesse país, as mobilizações massivas recentes não seguem modelo clássico: não há líderes ou representantes fixos.

Os protestos são coordenados pelas redes sociais e inspirados em exemplos internacionais. A estrutura é horizontal, sem líderes, e o símbolo escolhido é a bandeira pirata Jolly Roger da série animada One Piece.

O movimento malgaxe se vê como parte de uma “Internacional” que atua globalmente, recusando-se a ser dirigido por figuras de liderança.

Exemplos semelhantes já ocorreram: o movimento “Fridays for Future”, criado por Greta Thunberg, que levou a marchas climáticas mundiais; ou a organização “Zero Hour”, de Jamie Margolin, que mobiliza jovens globalmente contra as mudanças climáticas.

Mobilizações lideradas por jovens na Índia, Nigéria, Brasil e Europa surgiram em torno de temas como meio ambiente, igualdade, direitos civis e feminismo — muitas vezes organizadas por coletivos descentralizados.

Por fim, lembremos que recentemente ocorreu uma revolta da “Geração Z” no Nepal. A partir de 8 de setembro, o país, pressionado pelos gigantes Índia e China, se tornou o epicentro de um terremoto político. O que começou como uma manifestação juvenil conectada se converteu em uma revolta nacional. Os meios locais chamaram o fenômeno de “Revolução da Geração Z”.

O resultado: governo derrubado, dezenas de mortos, centenas de feridos e instabilidade política. Lá, os jovens estão desesperados. Os “filhos odiados” das famílias de corruptos e poderosos são alvo de críticas: nas redes sociais, a hashtag #Nepobabies circulou para atacar os filhos de líderes que ostentavam estilos de vida extravagantes.

Cerca de 20% dos jovens entre 15 e 24 anos estão desempregados, muitos sobrevivem com salários miseráveis, e um terço das crianças de 5 a 17 anos trabalha, muitas vezes em condições perigosas, conciliando trabalho e faltas à escola. O trabalho infantil está ligado à pobreza familiar.

Sob o título “Da tela à rua: a cronologia de uma explosão”, a Baku Network (centro analítico do Azerbaijão) divulgou em 11 de setembro de 2025: “Tudo começou com uma decisão tecnocrática aparentemente inócua: bloquear 26 redes sociais — Facebook, X (antigo Twitter), YouTube, Instagram e LinkedIn — por descumprimento das exigências de registro impostas pelo Ministério das Telecomunicações. Mas, por trás desse pretexto regulatório, escondia-se um barril de pólvora social: desemprego em massa, corrupção endêmica, um elevador social quebrado para jovens com diplomas, mas sem futuro.”

Do Nepal a Madagascar, estamos no meio de uma mudança de época. As gerações mais jovens estão se apropriando das ferramentas de comunicação atuais e transformando-as nas armas para mudar a sociedade.

Como lembram os pesquisadores Raphael Lupovici e Melanie Lecha, na Revue Politique de 3 de julho de 2025: “A mediatização dos movimentos sociais mudou sob a influência das tecnologias digitais, ao ponto de algumas mobilizações escaparem às lógicas tradicionais de representação, apoiando-se na comunicação online.”

O que era, então, a ferramenta perfeita para fragmentar a sociedade e o indivíduo isolado, transforma-se num meio de encontro e de transformação social. Como disse um dos mestres do desespero, Thomas Bernhard: “O belo é o imprevisto.” (5).


Publicado originalmente no Les Humanités. Republicado no Europe Solidaire sans Frontières e Esquerda.Net.

Notas:

(1) Em 2025, o Banco Mundial estima que 79,7% dos malgaxes vivam em extrema pobreza. Em 2022, este número rondava os 75%. A pobreza é muito acentuada nas zonas rurais (quase 80%), mas está a aumentar rapidamente nas zonas urbanas, especialmente nas cidades secundárias, onde atinge agora os 61%. A insegurança alimentar afeta particularmente o Grande Sul, com taxas de pobreza superiores a 90% em certas regiões. As privações são múltiplas (acesso à educação, à saúde, à habitação, à alimentação) e são agravadas pelos desastres climáticos, pelo crescimento populacional e pela fragilidade do emprego produtivo. Ver aqui.

(2) Fonte: BPIFRANCE, Departamento de Avaliação de Estudos e Prospetiva – Ficha do país Madagáscar. Janeiro de 2025. Ver aqui.

(3) Suspensão em 2019 por razões sócio-ambientais, particularmente disputas sobre benefícios para as populações locais, impactos na pesca e na zona costeira. O Código de Mineração de Madagáscar alterou o regulamento ambiental em 2023 para permitir que a Energy Fuels retomasse as suas operações. A operação ilustra a forma como os Estados Unidos e a União Europeia pretendem contar com futuros produtores de terras raras em África, com o objetivo de reduzir a sua dependência da China. Para Mark S. Chalmers, CEO da Energy Fuels, “as capacidades atuais e planeadas de separação de terras raras da central contribuirão significativamente para o estabelecimento de uma cadeia de abastecimento de terras raras no Ocidente”.

(4). A LGIM (originalmente uma lei de 2001, alterada em 2005) oferece um regime muito atrativo para investimentos em mineração de grande dimensão (acima de um determinado limite). Entre as principais vantagens: isenção temporária do imposto mínimo sobre o rendimento das pessoas coletivas, taxas reduzidas para outros impostos, isenção de direitos aduaneiros e, no âmbito cambial, a possibilidade de transmissão de operações correntes (pagamentos, repatriamento de lucros/dividendos) mediante simples declaração…

(5). Thomas Bernhard, Perturbation, edições Gallimard, coleção L’imaginaire, 1967.


TV Movimento

Encontro Nacional do MES-PSOL

Ato de Abertura do Encontro Nacional do MES-PSOL, realizado no último dia 19/09 em São Paulo

Global Sumud Flotilla: Por que tentamos chegar a Gaza

Importante mensagem de três integrantes brasileiros da Global Sumud Flotilla! Mariana Conti é vereadora de Campinas, uma das maiores cidades do Brasil. Gabi Tolotti é presidente do PSOL no estado brasileiro do Rio Grande do Sul e chefe de gabinete da deputada estadual Luciana Genro. E Nicolas Calabrese é professor de Educação Física e militante da Rede Emancipa. Estamos unindo esforços no mundo inteiro para abrir um corredor humanitário e furar o cerco a Gaza!

Contradições entre soberania nacional e arcabouço fiscal – Bianca Valoski no Programa 20 Minutos

A especialista em políticas públicas Bianca Valoski foi convidada por Breno Altman para discutir as profundas contradições entre a soberania nacional e o arcabouço fiscal. Confira!
Editorial
Israel Dutra | 07 out 2025

A Flotilha deu um exemplo de coragem! Seguiremos denunciando o genocídio na Palestina!

Após a libertação da delegação brasileira das prisões israelenses, seguimos na luta em defesa da Palestina!
A Flotilha deu um exemplo de coragem! Seguiremos denunciando o genocídio na Palestina!
Publicações
Capa da última edição da Revista Movimento
A ascensão da extrema direita e o freio de emergência
Conheça o novo livro de Roberto Robaina!
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Conheça o novo livro de Roberto Robaina!

Autores