A vida sob o apartheid israelense na Cisjordânia: entrevista com Bassem Tamimi
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A vida sob o apartheid israelense na Cisjordânia: entrevista com Bassem Tamimi

Um testemunho exclusivo sobre a limpeza étnica planejada e prolongada contra o povo palestino

Frederico Henriques 15 out 2025, 14:48

Em 2018, estive na Cisjordânia a convite do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) que atua internacionalmente na defesa dos direitos do povo palestino. Naquele período, tive a honra de ser acolhido na aldeia de Nabi Saleh, nos arredores de Ramallah, à sombra de um grande assentamento colonial israelense que nos observava do alto como uma ameaça constante. Fiquei hospedado na casa de Bassem Tamimi, reconhecido líder comunitário, e de sua família. Sua filha, Ahed Tamimi, havia acabado de ser presa por enfrentar um soldado israelense que havia invadido sua casa e agredido seu irmão. A imagem de Ahed resistindo viralizou pelo mundo e transformou-se em símbolo — mas em Nabi Saleh, ela era apenas mais uma jovem que aprendeu cedo que existir é resistir.

Durante minha estadia, entre conversas sobre o cotidiano e relatos de prisões, funerais e reconstruções, pude sentir a força histórica de resistência daquele povo. Em um dos dias, enquanto estávamos sentados, um jipe militar israelense passou pela entrada da aldeia. Instantaneamente, dezenas de jovens correram em direção ao veículo, enfrentando-o com pedras — não por ingenuidade militar, mas por dignidade. Perguntei se aquilo acontecia todos os dias. Eles me responderam: “Sabemos que isso não vai derrubar a ocupação agora. Mas é a forma de garantir que eles não avancem nem um milímetro sobre nós.”

Desde então, Nabi Saleh se tornou para mim uma referência viva de resistência popular. Por isso, diante do genocídio em Gaza e do silêncio que ainda paira sobre a Cisjordânia, decidi retomar contato com Bassem para compreender o que mudou — ou pior, o que permaneceu igual — desde aqueles dias.

Bassem Tamimi, como muitos sabem, é um dos principais rostos da resistência civil palestina. Preso diversas vezes por liderar manifestações não violentas, ele segue firme mesmo sob cerco contínuo. Nesta entrevista — enviada por mensagens em meio a apagões de energia e bloqueios militares — ele oferece um testemunho que dispensa adjetivos: a descrição precisa de uma limpeza étnica planejada e prolongada, que não se faz apenas com bombas, mas com portões fechados, burocracias, medo e cansaço.


Fred Henriques: Desde 7 de outubro de 2023, o mundo viu imagens chocantes de Gaza. Mas muitas vezes não se compreende a dimensão dessa violência no cotidiano das aldeias e cidades da Cisjordânia. Como você descreve o que está acontecendo com o povo palestino desde então?

Desde 7 de outubro, os ataques das forças de ocupação e dos colonos contra vilarejos e cidades palestinas se intensificaram de forma violenta, com o uso de munição real, mirando diretamente nas pessoas e de maneira generalizada, com o objetivo de matar. Por isso, o número de mortes aumentou dezenas de vezes em comparação com o mesmo período de anos anteriores — 1.050 pessoas foram assassinadas, a maioria delas crianças.

As autoridades de ocupação israelenses demoliram 1.787 estruturas palestinas apenas entre 7 de outubro de 2023 e 15 de outubro de 2024, incluindo 800 casas habitadas. Essas demolições deslocaram 4.498 palestinos, enquanto aproximadamente outros 531.593 foram afetados pela destruição de suas casas ou de instalações comerciais, industriais e agrícolas. O ataque mirou sistematicamente os campos de refugiados, com o objetivo de destruir o campo como símbolo da Nakba e do deslocamento forçado.

Em setembro de 2025, o número de postos de controle e portões de ferro instalados pelo exército de ocupação na Cisjordânia chegou a 910, incluindo 247 instalados após 7 de outubro. O número de prisões desde o início do genocídio em Gaza chegou a 16.400, incluindo mais de 510 mulheres e cerca de 1.300 crianças. Isso sem contar as milhares de detenções na Faixa de Gaza. A maioria dessas prisões ocorre sem qualquer acusação, são detenções administrativas, e mais de 65 prisioneiros foram mortos dentro das cadeias.

Como resultado dessa violência extrema e das políticas de repressão sistemática — com prisões, bloqueios e restrições — impôs-se uma realidade complexa que não deixa espaço para ação e resistência organizada. A própria Autoridade Palestina impede qualquer atividade, as organizações políticas estão ausentes, não há programa de resistência, e o medo da população é usado como justificativa para repressão e expulsão. As pessoas reagem individualmente. O povo palestino está chocado com o genocídio, com a limpeza étnica e com a fraqueza da comunidade internacional.

E diante desse cenário, como você avalia a reação internacional à limpeza étnica em curso?

As pessoas estão começando a entender a situação aqui, mas não é suficiente. O que estamos vendo é um genocídio e uma limpeza étnica diante dos nossos olhos; é um holocausto diante de nós. É pior do que o que Hitler fez com os judeus e com os povos da Europa — e toda a humanidade deveria se sentir culpada pelo seu silêncio.

O problema está nos governos — Estados que participam diretamente, apoiando Israel na guerra contra a humanidade. Não é contra os palestinos, é contra a humanidade. Devemos unificar nossos esforços em todos os lugares para criar um movimento internacional pela libertação da humanidade. A Palestina e o povo palestino agora representam os direitos humanos, a liberdade, a justiça e todos os valores humanos. A bandeira palestina se tornou símbolo de liberdade, justiça e democracia. Estar ao lado dos palestinos não é caridade — é um dever e uma responsabilidade.

Mas vemos como a política de Israel, com apoio americano e europeu, age com total impunidade. Eles fornecem armas, exércitos e todo poder para destruir a vida em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, no Irã, na Síria. Eles não estão assistindo — são parte da guerra. Por isso, os povos desses países devem lutar contra seus próprios governos.

Tudo o que chamávamos de valores internacionais — direito internacional, ONU, Tribunal Penal Internacional, justiça, democracia, direitos humanos — tudo isso se tornou falso. Serve apenas para maquiar o rosto da colonização ocidental, que destrói vidas na América do Sul, no Oriente Médio, na Ásia, na África. A lei vale contra os pobres, mas não contra os colonizadores. Netanyahu, Ben Gvir ou Smotrich podem declarar abertamente que cometem genocídio — e nada acontece. É genocídio cultural, humano, legal. Eles destroem os valores da humanidade diante do mundo, protegidos pelo veto americano e pelo apoio europeu.

Você mencionou que, além de Gaza, existe uma forma de genocídio mais silenciosa na Cisjordânia: a do cerco, da espera. No caso da sua aldeia — Nabi Saleh — o que isso significa no dia a dia?

Se olharmos para o nosso caso em Nabi Saleh, desde o primeiro dia após 7 de outubro, eles fecharam os portões. Ninguém consegue ir ou voltar para Ramallah, para o trabalho, para lugar algum. Eles invadem a aldeia todos os dias. Invadem Nabi Saleh, a aldeia vizinha. Matam. Todos os dias invadem.

Nas outras aldeias, matam uma, duas, três pessoas. No começo, logo depois de 7 de outubro. E prenderam a maioria dos ex-prisioneiros dessa área — Nabi Saleh, Beit Reema, Deir Ezzan, Bani Zeid. Todas essas cinco aldeias são invadidas várias vezes por dia. Prendem pessoas, atiram, ferem, matam. Destruindo campos, casas. Quebram portas de lojas. Fazem de tudo.

Eles atiram na central de energia elétrica. Ficamos dias sem eletricidade. O portão está fechado há mais de 16 meses. Antes, íamos para Ramallah em 20 minutos. Agora leva mais de duas horas. Isso é limpeza étnica silenciosa — expulsar os palestinos para as cidades.

Querem esvaziar a Área C. 62% da terra é Área C. Em Nabi Saleh, mais de 80%. Emitiram ordem de demolição para 13 casas — 12% da aldeia. Somos 500 pessoas. Isso significa que a nova geração não pode construir. Eles serão obrigados a sair. A Área B está lotada. Não há terra. Isso muda a forma da aldeia. É uma política escondida para nos forçar a sair e tomarem a terra para os colonos.

Os colonos invadem com cães. Atiram em quem chega perto da estrada. Invadem casas e matam dentro delas ou destroem, roubam dinheiro, ovelhas, terra. Cortam centenas ou milhares de oliveiras. Em Lemgayer, Koformalik, Derijirir, Deboa. Em Sinjil, destroem e matam porque as pessoas vão à sua própria terra. Eles tomam a água dos poços e das nascentes. Não deixam pegar água. Os grupos terroristas dos colonos agora têm autoridade para fazer o que quiserem contra os palestinos.

Quando meu filho tentou voltar para casa, o caminho que levaria 22 minutos levou mais de 4 a 6 horas. Isso faz parte da nossa vida. Mas eu não acho que as palavras conseguem dar uma imagem real do que está acontecendo. E tudo isso na Cisjordânia ainda não é nada comparado com o que vemos em Gaza.

Obrigado, Bassem. Seu relato é uma documentação essencial. Vou garantir que ele circule amplamente para fortalecer a mobilização na nossa América Latina e o mundo.


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