Diário de classe #1: A esperança na educação é ato político
Conheça a nova coluna sobre educação da Esquerda em Movimento!
Um recorte da novela Vale Tudo se espalhou nas redes sociais no último final de semana com uma cena que deve ter passado despercebida no desenrolar da trama, mas que nos chamou muito a atenção. Não, a cena não faz nenhuma referência ao assassinato da personagem Odete Roitmam, que o público ama odiar. Na cena em questão, a personagem Maria de Fátima responde a indagação feita sobre a sua formação. O sentido da pergunta era saber qual a faculdade ela teria cursado; ao que a personagem responde: ‘faculdade eu não fiz, porque é uma coisa que tá ultrapassada, né?’. Qual a relevância da cena para o desenrolar da trama, não sabemos. Mas conhecemos bem o discurso e os impactos que ele pode causar.
Como professora e professores da Rede Emancipa – Movimento Social de Educação Popular, temos percebido a escalada deste discurso nos últimos anos. Cada vez menos jovens têm procurado os cursinhos para ingressar nas universidades. Os motivos são variados, mas, via de regra, seguem a mesma lógica da personagem da ficção: a ideia de que fazer faculdade é algo ‘ultrapassado’. A lógica do imediatismo ganha terreno em um mundo cada vez mais acelerado e individualista: parece improvável dedicar quatro ou cinco anos para a formação de nível superior quando os exemplos de influenciadores digitais que ascendem economicamente de forma rápida estão todos os dias expostos nas mídias e redes sociais. Porém, sabemos que estes são a exceção que se mostra como regra. É a atualização do discurso meritocrático. Isso cria uma desesperança que está cada vez mais difícil de se combater. Essa falta de perspectiva para o futuro fica explícita na personagem citada: não cursou a faculdade porque é algo ultrapassado e, também, não tornou-se uma influenciadora, a promessa meritocrática capitalista. Sobrou o desalento, sinal dos tempos. Neste dia das professoras e dos professores, nos perguntamos: qual é o papel do/a educador/a no combate a essa desesperança?
Ao pensar a educação é impossível desviar de um certo inventário de problemas que se acumulam: o desinvestimento público, a precarização das condições de trabalho, a desvalorização econômica e social da profissão docente, as constantes mudanças de política, as consequências das crises cíclicas que se sucedem no capitalismo etc. Nos últimos oito anos, o Brasil implementou duas reformas educacionais que resultaram no chamado ‘Novo Ensino Médio’. O objetivo era explícito: flexibilizar o currículo da etapa de ensino e torná-lo mais ‘atrativo’ e ‘alinhado com os interesses’ dos estudantes. O que estava por trás da política, entretanto, ficou evidente durante a sua implementação: a reforma serviu para grandes conglomerados empresariais encherem os bolsos e para aprofundar a socialização capitalista entre os estudantes através das competências socioemocionais e da individualização dos itinerários formativos, enquanto a implementação cotidiana ficou a cargo de professoras e professores que precisaram dar conta das mudanças sem incentivos ou preparo prévio. O resultado? Um desastre tão grande que, em menos de dois anos de implementação, a reforma precisou ser reformada. Entre a falácia da meritocracia, a euforia oportunista sobre essas políticas educacionais e a realidade do chão da escola e dos cursinhos populares, estamos nós, professoras e professores, responsabilizadas/as pelo (in)sucesso da educação como projeto social no país.
Uma das consequências mais visíveis dessas reformas educacionais dos últimos anos é a que impacta diretamente a nossa prática na educação popular, especialmente no ingresso dos estudantes no ensino superior: a perda de significado coletivo da educação. O projeto de entrar na universidade nunca foi um sonho individual para os jovens da classe trabalhadora: fazer um curso superior era uma forma de garantir um futuro melhor para si e para os seus, com ascensão social através do estudo e do trabalho. Perdemos as contas de quantos estudantes passaram pelos bancos do cursinho tendo sido os primeiros de suas famílias a ingressar no ensino superior, os primeiros a terem uma formatura e um diploma. Até o início dos anos 2000, menos de 7% da população adulta brasileira possuía curso superior completo. Este número reflete o tamanho de uma elite econômica que sempre teve acesso aos privilégios mas, também, de uma parcela relevante da classe trabalhadora que viu a possibilidade de ascender através do investimento na formação intelectual. Estes, dentro das universidades, romperam a lógica da meritocracia e lutaram para fazer o que parecia improvável: abrir espaços para que mais estudantes da classe trabalhadora também estivessem ali. Afinal, projeto de construção e de apropriação do conhecimento é projeto coletivo. Acontece que, nos últimos anos, este projeto está sendo ameaçado. Frente aos avanços recentes de democratização do acesso ao Ensino Superior, as elites reagem para manterem seus espaços e privilégios, instigando a competição e o Individualismo entre os debaixo e desidratando a solidariedade de classe.
Frente a isso, o desafio de ser educador/a hoje em dia reside no dilema: como é possível resgatar a esperança na educação se nós estamos no olho do furacão? Com que moral devemos estimular a juventude a buscar um curso superior quando nossas carreiras estão sendo desmontadas e nossos salários vem sendo sistematicamente arrochados? Estas questões não são apenas teóricas, mas devem pautar nossas reflexões e lutas cotidianas em defesa da educação pública e da dignidade do nosso trabalho na sociedade.
Recuperar o sentido coletivo da educação é central nesse esforço. Apenas a partir da organização dos/as trabalhadores/as em educação e dos/as estudantes, aqueles/as que sentem diariamente as consequências do desmonte da educação pública, será possível disputar o presente e o futuro e, assim, resgatar a esperança. Não de forma ingênua, mas a partir da elaboração das nossas demandas e da afirmação das nossas pautas sobre qual educação queremos e, consequentemente, qual sociedade queremos. A esperança é um ato político.
Agradecemos à Revista Movimento o espaço para a publicação deste DIÁRIO DE CLASSE, um projeto de escrita coletivo que buscará informar, denunciar, refletir e propor, periodicamente, sobre os temas da educação e do trabalho docente, a partir do chão da escola e dos cursinhos populares. Este texto inicial não tem a intenção de apresentar fórmulas prontas e sim, de fazer provocações e trazer apontamentos que possam contribuir para ações concretas no resgate da esperança como força política. Nossa equipe inicial será composta pelos autores deste texto.
Apenas começamos! Educadores/as do mundo, uni-vos!