Os meandros da crise política na França

Os meandros da crise política na França

Macron conseguiu formar um novo governo, Lecornu, cuja base será ainda mais fraca do que os dois últimos (Barnier e Bayrou)

Léon Crémieux 20 out 2025, 14:01

Na quinta-feira, 16 de outubro, com a rejeição da moção de censura apresentada pela France insoumise (por 18 votos) contra o governo Lecornu, nomeado primeiro-ministro novamente após um primeiro fracasso, Macron conseguiu formar, por um tempo, um novo governo cuja base será ainda mais fraca do que os dois últimos (Barnier e Bayrou), que administraram os assuntos desde as eleições legislativas de junho de 2024 e duraram apenas alguns meses. Nas últimas semanas, de 8 de setembro a 15 de outubro, uma sucessão de nomeações e demissões de Sébastien Lecornu, um fiel escudeiro de Macron, acabou por resultando num governo que conta apenas com o apoio real do próprio presidente. Mesmo os grupos que fazem parte do “bloco do centro” (Renaissance, Horizon e Modem) estão se distanciando de Macron e do seu governo no final do mandato. Edouard Philippe (Horizon), antigo primeiro-ministro de Macron, apela abertamente e com insistência à demissão deste último e a eleições presidenciais antecipadas. Gabriel Attal (Renaissance), também ex-primeiro-ministro de Macron, manifesta-se apenas para marcar o seu distanciamento em relação a este. Por fim, os Republicanos, que apoiaram os dois governos anteriores, decidiram não participar do governo finalmente montado pelo macronista Lecornu, não querendo ser contaminados pela radioatividade de Macron e seus últimos fiéis. Em resumo, estamos assistindo ao fim do reinado e à desintegração do macronismo, reflexo da relação de forças sociais no país, da rejeição maciça de sua política e de seus responsáveis políticos. Esta rejeição acompanha em grande parte uma exasperação contra os lucros exorbitantes das grandes empresas e a riqueza cada vez mais arrogante dos “super-ricos” (em 15 de outubro, em um único dia, graças a um salto na bolsa de valores das ações da LVMH, Bernard Arnaud viu sua fortuna – a primeira da França e a sétima do mundo – saltar 16 bilhões de euros, atingindo 164 bilhões de euros), a afirmação crescente da necessidade de justiça social e fiscal. Essa afirmação se refletiu nas mobilizações sociais das últimas semanas, especialmente nos dias 10 e 18 de setembro.

Este crescente isolamento, no seio da própria maioria presidencial, levou Lecornu a desistir de formar um governo no passado dia 6 de outubro, após ter perdido o apoio dos Republicanos de Bruno Retailleau. O maior risco era um fracasso total que levasse à dissolução da Assembleia Nacional e a novas eleições legislativas 16 meses após as anteriores. A maioria das pesquisas prevê, nesse caso, uma hecatombe para os partidos políticos do “campo presidencial” (Renaissance, MODEM, Horizons e UDI), que perderiam um terço dos votos e metade dos assentos (agora ocupam 162 dos 577 que compõem a assembleia). Independentemente da precisão dessa previsão, hoje a maioria da população rejeita o presidente, e dois terços querem sua saída.

Macron nomeou novamente Lecornu no dia da sua demissão, dia 6 de outubro, para conseguir formar um governo que fosse, acima de tudo, capaz de evitar a dissolução e conseguir aprovar um orçamento para 2026, retomando, grosso modo, as mesmas orientações dos dois governos anteriores, mas sem ser imediatamente derrubado. Dadas as relações de força parlamentares, a única saída era obter a benevolência do Partido Socialista, para evitar que uma nova moção de censura obtivesse maioria na Assembleia Nacional. A France insoumise havia, em todo caso, chamado à censura de qualquer novo governo. O PCF e os Verdes fizeram o mesmo, após dois encontros  com Lecornu, que lhes tirou qualquer ilusão sobre uma mudança de orientação. Como o RN também anunciou que votaria imediatamente a censura, a única saida era fazer um gesto para obter o apoio do PS sem questionar a política global pró-patronal de austeridade e sem chocar demasiado os grupos políticos do campo neoliberal. Além disso, Lecornu, em sua declaração de política geral, também quis agradar a direita e a extrema direita, comprometendo-se a incluir na Constituição as cláusulas do acordo de Bougival sobre Kanaky, que visa acabar com todo processo de descolonização e que é denunciado pelo FLNKS.

Além dos imperativos políticos, há sobretudo um receio e uma exigência vindos das fileiras dos patrões, dos grandes grupos capitalistas. O receio de que o descontentamento social desencadeie uma explosão social, ou pelo menos uma forte mobilização prolongada, como a França conheceu em 1995 ou 2023, uma situação que, dada a fraqueza dos partidos de centro e de direita, no mínimo colocaria em causa todas as reformas liberais da “política da oferta” realizadas em benefício dos capitalistas desde 2012 e a presidência de Hollande. Ciente da fraqueza política do poder, a MEDEF anunciou uma grande manifestação nacional para 13 de outubro, convocando todos os chefes de empresas a irem a Paris para, se oporem explicitamente a qualquer pressão fiscal adicional — ou seja, à manutenção de seus privilégios fiscais —, se oporem a qualquer política tocasse os cerca de 200 bilhões de euros em ajudas e benefícios fiscais concedidos às empresas, a qualquer política fiscal que atinja as grandes fortunas e seus patrimônios. Um exemplo desses privilégios fiscais é a lei Dutreil, que permite isentar da maior parte dos direitos de sucessão, da tributação comum sobre heranças, as doações ou heranças relativas a participações ou ações de empresas industriais ou de “holding animadora” (uma empresa-mãe). Essa isenção de classe custa 4 bilhões por ano.

Macron conseguiu, assim, sair temporariamente do impasse. O PS enfraqueceu voluntariamente a frente política de rejeição a Macron, a marcha caótica, mas real, para um confronto social, ajudando, ao mesmo tempo, a maioria das direções sindicais (CFDT, CGC, CFDT e FO) a sair da dinâmica de mobilização iniciada no início de setembro. Para fazer isso, Macron teve que fazer uma grande concessão simbólica: prometeu uma pausa no aumento da idade de aposentadoria e da duração das contribuições para uma aposentadoria integral. Em termos claros, o congelamento em 62 anos e 9 meses como idade de aposentadoria com pensão integral (com a condição de ter contribuído por 170 trimestres), congelamento até 2027, ou seja, a próxima eleição presidencial. Sem esse congelamento, a cada ano, seriam necessários mais 3 meses (em idade e duração das contribuições) para se aposentar com pensão integral. Dado que a questão das aposentadorias tem sido o principal confronto social e político desde 2023, a medida do congelamento pode ter parecido, pelo menos simbolicamente, um recuo importante. Assim, 300 mil pessoas poderiam, em teoria, se aposentar três meses mais cedo em 2026 e 2027. Isso poderia parecer um incentivo, um recuo das políticas patronais diante do movimento social, um recuo que levaria a outros. Mas o PS preferiu se vender por um prato de lentilhas, e Macron conseguiu realizar uma “manobra”, um pequeno sacrifício que lhe permite esperar evitar a catástrofe imediata. Por enquanto, ele salva o essencial, e principalmente o pouco de credibilidade que lhe resta junto aos grupos capitalistas.

A “suspensão” anunciada é apenas um compromisso verbal de Lecornu que não consta do projeto de orçamento apresentado à Assembleia Nacional e deve assumir a forma de uma emenda à lei de financiamento da Previdência Social (LFSS), que deve ser debatida e votada em novembro/dezembro. As promessas só comprometem aqueles que acreditam nelas. Mas, acima de tudo, toda a estrutura financeira dos projetos de orçamento do Estado e da Segurança Social prevê mais de 30 mil milhões de economias, essencialmente em detrimento das classes populares, dos assalariados e dos reformados. Congelamento do montante das pensões, dos salários dos funcionários públicos e das prestações sociais. Congelamento também da tabela de impostos, o que leva automaticamente a um aumento dos impostos. Aumento dos impostos de milhões de aposentados, afetando cerca de 2 milhões de famílias, corte de reembolsos de medicamentos e subsídios de doença. Compressão dos orçamentos públicos e supressão de 3.000 postos de funcionários públicos, sem qualquer virada para investir maciçamente na transição ecológica, com uma redução pela metade do Fundo Verde, passando para 600 milhões de euros para o financiamento das autarquias locais para projetos concretos relacionados com as alterações climáticas e o desenvolvimento de energias renováveis. Um símbolo: o orçamento das forças armadas aumenta 6,7 bilhões, enquanto o projeto de orçamento prevê 7,1 bilhões de economias para a Saúde.

Por outro lado, não há questionamento dos 91 bilhões de isenção de contribuições sociais que beneficiam as empresas, uma nova redução de mais de 1 bilhão nos impostos sobre a produção. Desde 2021, a redução do conjunto desses impostos sobre a produção (CVAE e CFE) é de 10 bilhões por ano.

Quanto à justiça fiscal, a linha vermelha de Lecornu é a mesma dos governos anteriores: não se trata de mexer na tributação das empresas nem na dos rendimentos provenientes das empresas. O imposto Zucman, que proporia uma tributação de 2% sobre o patrimônio, é rejeitado em uníssono pela extrema direita, pela direita e pelos macronistas, porque minaria os fundamentos do investimento e colocaria em risco as empresas. No entanto, afetando os 1.800 maiores contribuintes (patrimônios superiores a 100 milhões de euros), ela poderia render, segundo Gabriel Zucman, 25 bilhões de euros por ano. Na prática, isso não teria como efeito diminuir o patrimônio desses grandes privilegiados, mas sim frear o aumento de suas fortunas, o que já é um crime para os defensores do sistema. Entre 2003 e 2023, na França, os 500 maiores proprietários de empresas viram sua fortuna multiplicar-se por 9,3, atingindo 1,2 trilhão de euros em 2021 (124 bilhões em 2003). O imposto seria, portanto, apenas uma pequena correção nesse aumento da riqueza às custas das classes populares.

Portanto, não há como Macron (nem os republicanos ou o RN) questionarem os pilares do capitalismo, os “bens profissionais”.

Para tentar evitar os perigos de uma mobilização social, o governo também anunciou uma nova conferência social sobre aposentadoria e trabalho, colocando de volta nos trilhos a transição de uma aposentadoria por repartição para uma aposentadoria por capitalização, prometendo uma gestão paritária entre sindicatos e patrões, com a porta aberta, como em muitos países, para a gestão de grupos bancários e seguradoras. O problema é que, como no início de 2025, quando Bayrou organizou um conclave sobre as aposentadorias, a maioria das direções sindicais (CFDT, CFTC, CGC e FO) se precipita nessa nova armadilha cujo único objetivo é dividir e frear as mobilizações frontais contra a política de austeridade deste governo e deste presidente frágil.

A questão, portanto, mudou nos últimos dias. Trata-se agora de combater esses fermentos de divisões abertas e trabalhar por reuniões unitárias, mobilizações em torno das exigências de justiça social, orçamentária e fiscal em torno de eixos que já foram destacados no programa do NFP. A direção do PS espera tirar proveito eleitoralmente dos resquícios do macronismo, apresentando-se novamente com uma imagem de gestor compatível com o neoliberalismo. No entanto, foi essa orientação que afundou o PS com a presidência de François Hollande, e muitos militantes socialistas não se esqueceram disso. Muitos na direção dos partidos de esquerda têm toda a sua atenção voltada para as vicissitudes parlamentares ou a preparação das eleições municipais de 2026. No entanto, a atenção deveria estar focada para a organização unitária da resposta social e política às políticas patronais.

Os orçamentos devem ser votados nos próximos dois meses. Semana após semana, os ataques que eles contêm irão aparecer e a própria direita insistirá em reforçar os ataques sociais.

Assim como há um ano, o PS terá dificuldade em manter uma posição benevolente em relação a um governo ainda mais fraco do que seus dois antecessores. Isso torna ainda mais importante que o movimento social encontre forças para desmantelar essa aliança reacionária.


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