A contradição da busca ativa nas escolas públicas de Florianópolis 
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A contradição da busca ativa nas escolas públicas de Florianópolis 

Santa Catarina e a violência institucional contra as mães em vulnerabilidade social

Juntas SC 1 nov 2025, 11:48

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A sucessão de escolhas equivocadas e políticas públicas de caráter colonialista na rede municipal de ensino de Florianópolis revela a persistência de práticas marcadas por uma lógica de controle e tutela. Nesse sentido, desde o início do ano letivo de 2025, a gestão municipal tem imposto à educação pública um conjunto de medidas autoritárias e descoladas da realidade social das comunidades, culminando na publicação de uma portaria em abril de 2025 (Portaria nº 364/2025), que institui um protocolo de caráter coercitivo, destinado a vigiar e constranger famílias sob o pretexto de combater a evasão escolar. 

Trata-se de mais um capítulo de uma gestão classista e excludente, que hoje tenta converter um espaço de emancipação e cidadania em instrumento de disciplinamento social, e cujo objetivo principal é a produção de índices que culminariam em recebimento de verbas públicas.

Além da profunda perda de autonomia das escolas municipais ao longo do ano, foi possível observar a consolidação de um modelo de gestão autoritário e centralizador, marcado por uma sucessão de determinações que desconsideram a realidade e a diversidade das comunidades escolares. Entre as imposições estão o uso obrigatório de materiais didáticos padronizados e incompatíveis com o contexto sociocultural dos estudantes; a aplicação sistemática de múltiplos instrumentos avaliativos de caráter tecnicista, orientados antes por metas burocráticas do que por processos pedagógicos significativos; além da implementação arbitrária do ensino em tempo integral apenas para determinadas séries, desfazendo todo um trabalho de educação integral transdisciplinar e orientado pela gestão das escolas que já estava em andamento desde o início de 2024.

Escolas com ranking de absenteísmo na porta, escolas com aulas nos refeitórios, escolas com diretores tutelados… São tantas camadas de sucateamento que é difícil trazermos somente um olhar sobre o assunto. O cenário do social é ainda mais alarmante, porque conta com o obscurecimento de dados, ausência de profissionais e ausência de espaços adequados de atendimento psicossocial.

Destacamos que tais decisões, tomadas de forma vertical, desrespeitando a autonomia das comunidades escolares e suas singularidades, geraram uma série de impactos negativos, desorganizando a rotina de inúmeras famílias que dependem de previsibilidade para conciliar trabalho e cuidado. Além disso, comprometeram o funcionamento das unidades de ensino, as quais atravessaram o primeiro semestre letivo de 2025 com déficit crônico de professores em diversas áreas, prática que leva a contratação sistemática de professores em caráter emergencial, ocasionando ainda mais problemas no que tange à saúde mental dos docentes.

Como se não bastassem as múltiplas modificações unilaterais que cumulativamente sobrecarregaram as equipes pedagógicas ao longo do ano letivo, mais uma controversa portaria foi publicada: a Portaria nº 364/2025 da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis. Sob a justificativa de combate à evasão escolar, a normativa exige que as escolas passem a promover um regime de vigilância generalizado. Trata-se de uma espécie de protocolo no qual os estudantes e suas famílias passam a ser monitorados e investigados a partir de duas faltas consecutivas injustificadas.

Assim, a normativa instaura uma cobrança excessiva sobre a frequência das crianças, além de prever a imposição de uma dinâmica coercitiva. Nesse sentido, apresenta-se como um caso exemplar de política pública sem base em evidências, apoiada em premissas moralizantes e punitivistas. Uma norma com o potencial de produzir impacto negativo, ou seja, de agravar a evasão escolar ao invés de reduzi-la. 

Nesse contexto, o procedimento apresentado como proteção, abre brecha para que a escola deixe de ser um local de acolhimento, e se torne um local de julgamento de famílias de periferias, especialmente aquelas lideradas por mulheres, que já vivenciam a dificuldade de viver em uma ilha tão cara e com problemas tão complexos (dificuldades com transporte público, ausência de saneamento básico, cesta básica mais cara do país, entre outros). 

Na mesma direção, destacamos que a realidade pedagógica descrita, ao mesmo tempo em que encobre os resultados concretos do processo educativo, se distancia dos fundamentos de teóricos da educação que propõem conteúdo e forma escolar que contribua com o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. 

Na prática, o novo procedimento transforma o controle de frequência, que é um instrumento administrativo, em mecanismo de vigilância dirigido às famílias, em especial às famílias pobres. Dentre os diversos pontos que não foram avaliados, é importante apontarmos que vivemos em um lugar que alaga por chuvas ou pela maré alta, com ciclones e, por vezes, frio intenso. Crianças que precisam passar pela Costeira e Rio Tavares, por exemplo, enfrentam essas dificuldades por diversas vezes ao longo do ano.

Embora se baseie formalmente em instrumentos normativos legítimos como o ECA e a LDB, a portaria interpreta a ideia de zelo de modo distorcido, substituindo o dever de apoio pedagógico e social por uma política de controle e coerção.

Entre os equívocos estruturais contidos na portaria, talvez o mais preocupante seja a definição de baixa frequência como duas faltas consecutivas. Essa padronização, descolada de qualquer parâmetro pedagógico, cria um ambiente que penaliza justamente os estudantes em situação de maior vulnerabilidade. Além disso, ao adotar um critério tão restritivo, o poder público amplia a distância entre a educação oferecida às crianças da rede privada e aquela imposta à rede pública. Enquanto na escola privada permaneceria prevalecendo a lógica do acolhimento, o que seria esperado em qualquer rede de ensino, as recentes e autoritárias imposições sobre a rede municipal de educação de Florianópolis propõem uma lógica de suspeita e da ameaça. 

Tal perspectiva ainda evidencia uma questão de gênero central: quem seriam os tais familiares que devem ser sistematicamente monitorados e investigados por essa escola idealizada pela atual gestão municipal? Quase sempre as mães. Mulheres pobres, periféricas, mães atípicas. Mulheres que sustentam sozinhas seus lares, equilibrando múltiplas jornadas de trabalho precário, cuidado e sobrevivência. A portaria, ao transformar o acompanhamento escolar em uma prática de fiscalização, institucionaliza o julgamento permanente dessas mães, submetendo-as a um regime contínuo que reedita tecnologias patriarcais de controle. 

Dessa forma, o Estado deposita a responsabilidade de garantia de condições dignas de vida exclusivamente para o âmbito doméstico, culpabilizando as mulheres pela precariedade que ele próprio produz. Nessa dinâmica, o discurso da “busca ativa”, um instrumento legítimo de garantia de direitos, se converte em prática de controle disciplinar de gênero e classe, reafirmando que, no imaginário institucional, a mãe pobre continua sendo o elo frágil a ser vigiado, corrigido e educado, e não a cidadã cujos direitos deveriam ser assegurados.

O que estamos testemunhando é a violência institucional aplicada à educação e a ausência de políticas interseccionais. Se por um lado o uso do aparato estatal deveria corroborar com a permanência das crianças, por outro a ausência de transportes escolares, alinhados a falta de atendimentos psicossociais e racismo climático, vigiam e punem as vidas que o Estado insiste em revitimizar. Em vez de garantir o direito à educação, cria-se um regime de tutela e investigação, que busca transformar orientadores escolares em agentes de controle social e famílias em suspeitos permanentes.

Essas medidas atualizam um velho projeto colonial e patriarcal de tutela sobre mulheres pobres, negras e periféricas, especialmente as mães solo. A história brasileira é marcada por mecanismos de controle sobre seus corpos e maternidades: da Lei do Ventre Livre, que libertava as crianças apenas para reescravizá-las socialmente, à Lei de Alienação Parental, que ainda hoje criminaliza e pune mulheres-mães que ousam denunciar violência doméstica perpetrada contra elas e/ou seus filhos e filhas.

Por meio desses mesmos dispositivos de controle reconfigurados sob o discurso de uma suposta proteção, famílias periféricas são estereotipadas como uma população que necessita ser vigiada. Vale lembrar que, em Santa Catarina, políticas de tutela parecem encontrar terreno fértil em um estado que carrega um histórico particularmente violento de institucionalização de crianças, inclusive crianças com famílias que existem, resistem e lutam para permanecer juntas, como no paradigmático e bastante recente caso das Mães de Blumenau. 

Portanto, não se trata de episódios isolados, mas de um sistema que massacra famílias pobres por todos os lados. Quando a escola, espaço de afeto, conhecimento e emancipação, se torna instrumentalizada para essa lógica, o Estado deixa de educar e passa a punir para controlar. A consequência previsível é o adoecimento emocional das crianças, que podem vir a associar a escola a medo e ansiedade, reforçando um padrão de subordinação. E a mensagem subjacente é clara: o estudante da rede pública deve aprender, desde cedo, que não pode faltar, mesmo diante de indisposição, imprevistos familiares ou problemas de transporte. Nesse sentido, trata-se de uma política que reproduz as condições estruturais de exploração que a escola deveria transformar. 

Dessa forma, a Portaria nº 364/2025 tende a produzir exatamente o efeito oposto ao que declara combater. Em vez de fortalecer os vínculos entre escola e comunidade, ela os fragiliza, instaurando um clima de desconfiança que pode levar muitas famílias a se afastarem do ambiente escolar. Os possíveis impactos são previsíveis: a estigmatização e exposição de crianças e adolescentes faltosos; a sobrecarga e o adoecimento de professores e orientadores convertidos em agentes de fiscalização; a subnotificação de registros como forma de evitar sanções administrativas; e, por fim, a própria evasão escolar.

Em um país profundamente desigual como o Brasil, a escola deveria ser o lugar onde a justiça social começa, e não onde ela termina. Transformar professores em denunciantes e mães em investigadas é instaurar o terror no coração da educação pública. É um ato de violência institucional que precisa ser nomeado, denunciado e barrado. O que precisamos é de investimento, cuidado e políticas públicas de apoio, não de protocolos de suspeita e controle.

Nesse sentido, o coletivo Juntas SC se posiciona a favor das políticas públicas interseccionais e principalmente pela participação democrática das famílias em vulnerabilidade nas decisões sobre conteúdo, forma e dinâmicas escolares. 


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