Exploração desenfreada no setor digital na África
As multinacionais não estão apenas saqueando os recursos naturais da África, mas também estão explorando os trabalhadores do continente em condições extremas
Foto: rawpixel.com / The African Union Mission
O advento da inteligência artificial (IA) exige a identificação a fundo de uma enorme massa de dados para permitir que os algoritmos melhorem sua eficiência. Para realizar essas tarefas, quase 90% das empresas de alta tecnologia recorrem à terceirização.
IDENTIFICAÇÃO DE CONTEÚDO
No mundo francófono, a economia de custos é estimada em mais de 30% para empresas sediadas no Marrocos, na Tunísia ou em Maurício, e 50% em Madagascar. Madagascar é o lar de quase 250 agências de BPO (terceirização de processos de negócios).
As condições de trabalho lá são deploráveis. A estação de rádio francesa RFI relatou as experiências dos funcionários: “Os treinadores vêm atrás de nós. Se eles acham que você está demorando muito para processar uma imagem simples, eles o advertem. Se isso acontecer uma segunda vez, eles o mandam de volta. Se, por exemplo, você não tiver concluído as 200 tarefas que deveria fazer em um dia, terá que continuar. E isso não é contado como hora extra.” [1]
Quanto aos salários, eles começam em cerca de 90 euros por mês e podem chegar a 500 euros para funcionários altamente qualificados. Juntamente com esse trabalho tedioso de identificação de dados, outros BPOs [terceirização de processos de negócios] oferecem serviços de moderação. Eles são usados pelas principais empresas de redes sociais, como Facebook, TikTok, Instagram, Twitter e outras.
PERIGO PARA A SAÚDE MENTAL
A Sama é uma dessas empresas de BPO com sede no Quênia. Seus funcionários passam dias inteiros processando conteúdo ultraviolento, incluindo assassinatos, tortura e violência sexual contra mulheres e crianças. Eles colocam tags, alimentando os algoritmos dos filtros das redes sociais e da inteligência artificial. As consequências para a saúde mental dessas pessoas são graves, chegando ao nível de transtorno de estresse pós-traumático. Em nenhum momento a empresa queniana estabeleceu estruturas de apoio psicológico para seus funcionários.
Pior ainda, para realizar as moderações nos idiomas locais, a Sama recrutou jovens graduados, muitas vezes pobres, de vários países do leste e do sul da África. Ela os trouxe para o Quênia sem avisá-los sobre a verdadeira natureza do trabalho. A empresa falou apenas do trabalho administrativo, omitindo a questão do confronto diário com o ódio on-line que eles teriam de suportar. Uma vez no Quênia, esses jovens trabalhadores estavam presos.
RESISTÊNCIA E ORGANIZAÇÃO
Uma reclamação inicial em maio de 2022 contra a Meta, a empresa controladora do Facebook, e sua subcontratada Sama foi apresentada pelo ex-funcionário Daniel Motaung. A queixa se concentrava nas condições de trabalho, questões salariais e falta de apoio psicológico.
Outras reclamações se seguiram quando a Sama cessou suas atividades de moderação e demitiu os funcionários. O tribunal queniano suspendeu as demissões enquanto aguarda uma decisão.
Ao mesmo tempo, 150 funcionários criaram o primeiro sindicato africano de moderadores de conteúdo, apesar das políticas de intimidação dos empregadores. Outros funcionários, como os da Majorel, a empresa que assumiu as atividades de moderação do TikTok, anunciaram sua decisão de participar do sindicato.
Embora desprezados pelos principais grupos de redes sociais, os moderadores desempenham um papel essencial no combate ao ódio on-line. As falhas podem ter consequências dramáticas. Outro julgamento está ocorrendo na Etiópia contra a Meta. Durante a guerra em Tigray, os apelos para o assassinato de um professor universitário de Tigray que morava na capital, Adis Abeba, circularam por vários dias no Facebook. Apesar de suas declarações à rede social, as mensagens continuaram a circular. Ele foi baleado por seus assassinos.