O “Gueto” de Rafah
O ataque contra a cidade de Rafah representa uma escalada sem precedentes na atual agressão genocida contra a Palestina
Foto: EBC
O cerco que o exército israelense faz à cidade de Rafah é mais um crime contra a humanidade. A sordidez da ação de Netanyahu foi tamanha que se calculou iniciar a operação contra Rafah no mesmo horário em que era transmitido o Super Bowl nos EUA como forma de encobrir as críticas que são crescentes na opinião pública mundial.
Rafah é uma cidade estratégica, fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito. Sua população estimada antes do genocidio em curso era de cerca de 300 mil pessoas. Com a destruição da infraestrutura da região norte da Faixa de Gaza, se calcula que 1,5 milhão de palestinos estejam em Rafah e nos seus entornos. O massacre de Rafah contou com uma escala de tanques israelenses na área leste da cidade, matando cerca de 170 pessoas em apenas dois dias, visando como alvo os civis e refugiados, improvisados em tendas e alojamentos precários. O terror é óbvio por conta de que a única saída da cidade, em direção ao Egito, permanecer como uma fronteira fechada.
A destruição de Gaza não tem precedentes na história recente. Em recente artigo, Gilbert Achcar enumerou alguns dados, avassaladores, para termos proporção da destruição massiva e do caráter do ataque israelense: já se lançaram duas vezes mais explosivos do que a bomba atômica que destruiu Hiroshima em 1945; 700 mil moradias foram destruídas em Gaza, tendo outras 290 mil parcialmente destruídas, chegando a um total de 70% dos domicílios do território. Se chega perto da cifra de 30 mil palestinos mortos, em sua maioria mulheres e crianças, além de 70 mil gravemente feridos.
Há cerca de 15 dias, alguns países, liderados pelos Estados Unidos, em aliança com o Reino Unido e a Austrália anunciaram o fim do financiamento à agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) em Gaza. A proliferação de doenças e a falta de água e de insumos básicos já é uma realidade desde dezembro.
O cerco à Rafah evoca na lembrança um dos piores capítulos da história humana: o gueto de Varsóvia. Após a invasão da Polônia, em 1939, o exército alemão isolou parte da comunidade judaica em um gueto em Varsóvia; submetidos às piores condições de vida, a população do gueto, era subjugada pelo exército alemão e pelos colaboracionistas poloneses num processo de terror que durou de 1940 a 1943. A coragem do destacamento de combate armado judaico, a Organização Combatente Judaica, levou adiante a resistência que iria se condensar no heróico levante de abril de 1943.
Estamos assistindo a uma brutalidade nesse patamar, aos olhos do mundo, nos dias que se seguem em Rafah.
Com a fome e as epidemias, o exército isralense, sob o comando de Netanyahu quer levar adiante o seu plano de transferência compulsória e limpeza étnica, “empurrando” as massas palestinas para o deserto do Sinai.
Há um esgotamento da política diplomática. A hipocrisia do imperialismo se nota quando do desconhecimento de quase todas as resoluções da ONU. Fred Henriques escreveu artigo detalhando a crise do papel das ditas organizações multilaterais. Nesse bojo, a decisão do Tribunal de Haia, que acatou apenas parcialmente a petição da África do Sul, é contraditória. Por um lado, isola a narrativa sionista abrindo caminho para a definição de Genocídio; por outro, é inerte ao não condenar de forma decisiva e sugerir o cessar-fogo imediato.
Também a política que Biden vem desenvolvendo tem esse caráter. É hoje o principal sustentáculo da ação genocida, em que pese tenha que se separar da linha de Netanyahu, criticando “excessos” e defendendo publicamente a necessidade de uma trégua “prolongada”.
Isso é uma expressão da crise internacional que envolve o tema da Palestina, cruzando conflitos e interesses entre diferentes alas do imperialismo, a organização militante da extrema direita, com Trump, diversas corporações e figuras como Milei sendo enfrentadas pela ação resiliente do movimento democrático de defesa da causa palestina.
Podemos ver cisões e crises nos principais países, como nos atos de campanha de Biden onde ele está sendo criticado por parcelas da juventude por seu apoio à Israel; ou na recente crise do Partido Trabalhista Inglês, com vereadores de importantes distritos sendo afastados pela direção partidária por tomarem posições a favor do cessar-fogo.
Não é qualquer coisa, dentro do contexto de crescimento do orçamento militar – mais de 9%, a maior cifra desde o fim da Segunda Guerra – a escalada que ameaça se expandir, com os Houtis resistindo militarmente e debilitando o tráfego de navios no Mar Vermelho, uma das grandes rotas do comércio marítimo internacional.
A extrema direita no mundo já escolheu o ataque à Gaza como grande cruzada ideológica, material e militar. O plano sobre Rafah é parte disso. E conta com o apoio vergonhoso, ainda que com contradições, de Biden, do Reino Unido e de parte dos países ocidentais.
A esquerda precisa caracterizar o papel de Netanyahu como um fenômeno histórico que busca superar limites impostos após a Segunda Guerra, para efetivar sua estratégia de uma nova Nakba.
É preciso conectar as lutas antifascistas, que levou, por exemplo, um milhão de alemães às ruas contra o partido neonazista AfD, com a luta em solidariedade ao povo palestino, apoiando o imediato cessar-fogo. A África do Sul protocolou nova petição em Haia, agora atualizando a denúncia da barbárie, a partir de Rafah.
Os governos dos países democráticos devem se empenhar para uma saída imediata, que envolva o cessar-fogo, a retomada da ajuda humanitária e a libertação dos presos políticos palestinos.
A crueldade de Netanyahu também é evidência de seu desespero, pois sabe que o tempo corre contra ele, mesmo dentro da sociedade israelense.
O “gueto” de Rafah pode significar um ponto de inflexão para as tropas israelenses. Sob os escombros da humanidade em Rafah, com o cheiro da morte por todo lado, a força da resistência do povo palestino se faz sentir. Nossa obrigação moral é seguir lutando com esse povo.