A esquerda para além da Revolução Russa
A agenda de luta da classe trabalhadora hoje é enfrentar os cortes, o desemprego e a desestruturação do serviço público.
Pensar para além da Revolução Russa significa refletir sobre seus limites e sua importância para a esquerda contemporânea. E de que forma seu legado pode contribuir para a difícil tarefa de reorganização de uma esquerda consequente.
Para isso, em primeiro lugar, é preciso demarcar que a “esquerda” não é um bloco único. Há uma miríade de posições dentro do segmento que se reivindica de esquerda, e o balanço da Revolução Russa é um dos pontos nevrálgicos.
Há os que pensam, por exemplo, que o stalinismo foi uma decorrência natural do leninismo. Isso é uma grande calúnia contra Lenin. Se não por outros tantos motivos, porque praticamente todo o Comitê Central do partido Bolchevique que tomou o poder em 1917 foi assassinado por Stalin, que dizimou os bolcheviques históricos para aplicar a sua política. O balanço do stalinismo é um dos balizadores dos debates dentro da esquerda.
O mundo mudou, mas nem tanto
Desde a Rússia de 1917 até o Brasil de 2017, há uma longa evolução do capitalismo e mudanças importantes no perfil da classe trabalhadora. Uma coisa, entretanto, não mudou: aqueles que não são donos dos meios de produção (empresas ou terras) têm apenas a sua força de trabalho para vender e continuam sendo explorados.
A discussão sobre o “conceito” de trabalho análogo à escravidão mostra que, apesar dos grandes avanços do capitalismo que deram origem a novas formas de exploração, ainda convivemos com as formas mais arcaicas de apropriação da força de trabalho.
Convivemos também com as formas mais arcaicas de opressão, como o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Felizmente, além das lutas “tradicionais” da classe trabalhadora, por salário e direitos sociais, hoje vemos emergir fortemente as lutas contra as opressões. Estas não são questões menores.
Não foi por casualidade que o direito ao aborto foi legalizado na Rússia pós-revolução e mais adiante suprimido na União Soviética stalinista. As mulheres foram linha de frente na Revolução Russa e o direito de decidir sobre o próprio corpo e sobre a própria vida foi uma conquista que não sobreviveu à degeneração da democracia.
O fenômeno que temos chamado de primavera feminista vem demonstrando-se imparável, assim como a luta pelos direitos LGBTs, como vimos na reação imediata ao fechamento de exposições e à tentativa de legitimação judicial da “cura gay”. A luta antirracista, embora ainda receba muito pouca solidariedade da branquitude, também vem crescendo.
A esquerda contemporânea ainda não sabe bem como lidar com esses processos, confusa entre a diluição da questão de classe nas questões das opressões e a relativização dessas lutas como secundárias. Para dar a devida importância à luta por esses direitos civis e democráticos, é preciso perceber que não é por casualidade que movimentos de extrema direita têm nas pautas das opressões seu alvo prioritário.
É preciso perceber também a importância da luta por democracia real no processo de luta pelo socialismo. Não é possível pensar a emancipação do jugo do capital se ela não estiver integrada com a emancipação da opressão machista, racista e LGBTfóbica.
Uma ponte para a revolução
A Revolução Russa foi realizada por “Pão, Paz e Terra”. Não foi proclamando o socialismo que os bolcheviques ganharam a maioria nos sovietes e conduziram a tomada do poder. Foi a própria luta de classes que levou a esse desfecho. E a luta de classes se dá pelas reivindicações mais básicas do povo.
A agenda de luta da classe trabalhadora hoje é enfrentar os cortes, o desemprego e a desestruturação do serviço público. Enfrentar a reforma da Previdência, a reforma trabalhista e como ela será aplicada concretamente nas categorias de trabalhadores. A agenda das mulheres, dos negros e negras, das populações indígenas e da comunidade LGBT é o direito à equidade, ao respeito e à dignidade.
A tarefa da esquerda revolucionária é colocar essas luta no centro de sua política, fazendo uma ponte entre essas questões centrais porém específicas, com a luta mais geral e com a necessidade de mudar todo o sistema político e econômico.
Para se conquistar, por exemplo, uma reforma urbana – cuja urgência é evidenciada pela questão da moradia – é preciso uma forte pressão social e são necessárias muitas ocupações dos vazios urbanos. É necessária a organização do povo para tomar nas suas mãos essa tarefa.
Para impedir retrocessos é preciso derrotar os “Bolsonaros”. E para isso é preciso uma esquerda consequente, que tenha capacidade de dialogar com o povo atraído por estes fenômenos nefastos, em meio a uma confusão política cuja responsabilidade pode-se buscar nos 14 anos de governo da coalizão encabeçada pelo PT.
Corrupção
É nesse contexto que também se insere a luta contra a corrupção. A podridão do regime se expressa de forma aguda nos escândalos de utilização do dinheiro público pelos partidos, no enriquecimento ilícito dos políticos e no aparelhamento da máquina pública. Abandonar essa bandeira significa entregá-la, pelo menos no caso do Brasil, para a extrema direita que hipocritamente a tem utilizado para expandir sua base social.
Este programa é o que Trotsky chamou de programa de transição, mas o próprio Marx já havia desenvolvido essa ideia no Manifesto Comunista. É na luta por medidas de transição que fazem a ponte entre as necessidades do povo e a estratégia de emancipação que desenvolvemos a possibilidade de uma revolução.
A diferença entre um programa meramente reformista e um programa de transição é que o primeiro se apoia exclusivamente na estratégia eleitoral, e o segundo aposta na organização autônoma da classe para desenvolver a mobilização e, efetivamente, avançar nas conquistas imediatas e na estratégia de mudança estrutural.
Socialismo como processo, não como operação jurídica
Indo além dessa constatação programática, é necessária uma discussão muito profunda de como construir uma nova economia. A economia soviética passou por um avanço muito grande do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, mas os trabalhadores continuaram alienados dos meios de produção.
Quem controlava tudo era o Estado, mas não era um Estado controlado pelos trabalhadores, e sim apropriado por uma casta que começou a defender seus próprios privilégios e a manutenção da União Soviética no marco da manutenção dos seus privilégios.
A mera estatização dos meios de produção não se configura em socialismo. A necessidade de estatizar os meios de produção se apresentou aos bolcheviques no decurso do processo. O que Marx e Engels diziam era que nesse processo de transição para um novo modelo de sociedade, as medidas concretas que serão tomadas dependem da correlação de forças, das necessidades e dos problemas enfrentados.
No texto Sobre a questão da moradia, Engels inclusive cita o exemplo da expropriação com ou sem indenização. Ele afirma que indenizar ou não os proprietários não é uma questão de princípio, é uma questão de correlação de forças. Então tudo pode ser debatido e questionado ao longo desse processo, desde que não se perca a estratégia que é a organização autônoma da classe trabalhadora na luta pela sua emancipação.
Sobre isso há uma passagem da Rosa Luxemburgo que me parece muito útil para o debate:
“O perigo começa quando querem fazer da necessidade virtude, fixar em todos os pontos da teoria uma tática que lhes foi imposta por essas condições fatais e recomendar ao proletariado internacional imitá-la como modelo da tática socialista. (…) Todos nós vivemos sob a lei da história, e só em escala internacional a ordem socialista pode ser introduzida. Os bolcheviques mostram que podem realizar tudo aquilo de que um partido autenticamente revolucionário é capaz nos limites das possibilidades históricas. Não devem querer fazer milagres. Pois uma revolução proletária exemplar e perfeita num país isolado, esgotado pela guerra mundial, estrangulado pelo imperialismo, traído pelo proletariado internacional, seria um milagre. O que importa é distinguir, na política dos bolcheviques, o essencial do acessório, a substância da contingência.” (LUXEMBURGO, Rosa. A revolução russa. Introdução Isabel Maria Loureiro. Rio de janeiro: Vozes, 1991, p. 97.)
Não é possível, então, discutir as decisões tomadas pelos bolcheviques abstraindo as condições objetivas daquele momento. A Revolução Russa enfrentou uma limitação inegável: aconteceu em um país atrasado, e não era isso que Marx previa, nem o que Lenin queria. Mas se os bolcheviques não tivessem tomado o poder quando conquistaram a maioria nos sovietes, teriam traído a classe e, ademais, acabariam na Sibéria, pois a contrarrevolução estava à espreita.
Com o poder nas mãos, eles lutaram pela revolução na Europa, principalmente na Alemanha, mas ela foi derrotada em 1919. Lenin não tinha nenhuma ilusão de que a União Soviética poderia sobreviver enquanto um país socialista sem o suporte da Alemanha. Entre outros tantos fatores, esta foi a primeira grande tragédia que acabou por condenar a Revolução Russa ao isolamento e abriu as portas para o fortalecimento de Stalin e de sua política de defesa do “socialismo em um só país”.
Nestes cem anos da revolução, me parece fundamental afirmar a sua atualidade. A luta pela emancipação e a necessidade da organização autônoma da classe trabalhadora seguem mais atuais do que nunca. Ao mesmo tempo, não há um modelo pronto e acabado, como a velha esquerda dizia haver – apontando a China, a União Soviética ou Cuba, cada uma com o seu modelo. Isso acabou. Não há modelo, e nem deve haver.
A construção do socialismo é um processo e a grande questão é quem comanda esse processo. É preciso evitar que uma casta burocrática assuma a direção desse novo modelo . E é preciso desenvolver mecanismos democráticos que o coloquem sob controle do povo. Isso vale também para a discussão sobre o funcionamento do partido e de como a base controla os seus dirigentes e tem voz ativa nos debates e nas grandes decisões.
Não é por decreto que o socialismo acontece, não é uma operação jurídica. É uma operação política na qual a classe trabalhadora e o povo devem estar no comando. E este é um grande desafio: como garantir que, de fato, o povo fique no comando.
Este é o debate que a esquerda tem que fazer para se livrar da carga negativa deixada pelo stalinismo, resgatar o melhor das tradições democráticas e ao mesmo tempo aprender com esses grandiosos acontecimentos.
A revolução de 1917 foi o fato mais importante da história do século XX e as suas lições são fundamentais para qualquer esquerda que queira se desenvolver como uma alternativa renovada, porém fiel aos princípios que guiam a luta pela emancipação.
(Publicado originalmente no HuffPost.)