O último filme
O conflito gerado pela chegada de imigrantes sírios em uma cidadezinha do norte inglês é o tema central do mais recente filme do britânico Ken Loach, “O Último Pub”
Foto: Divulgação
Chegou ao Brasil, de forma tardia, a nova produção do cineasta britânico Ken Loach. Realizado em 2023, concorrendo à Palma de Ouro em Cannes – premiação, aliás, que o diretor já conquistou por duas vezes – “O Último Pub” é o último filme da larga carreira daquele que é considerado um dos maiores cineastas vivos. O texto contém spoilers.
O filme conta com a brilhante participação do roteirista Paul Laverty, parceiro de longa caminhada do cineasta. Com elenco que combina atores ingleses e sírios, com destaque para as atuações de Yara (Ebla Mari), TJ Ballantyne (Dave Turner) e Laura (Claire Rodgerson). A história se passa no norte da Inglaterra, numa comunidade que vivia da mineração, no condado nortista de Durham.
O filme é um primor. Mantém e atualiza o melhor do cinema de Ken Loach. Não tinha gostado da tradução do título para a versão brasileira (o nome original é o nome do Pub – “Old Oak”, em tradução literal, o “Velho Carvalho”, que remete às tradições mineiras),. Mas me dobrei por conta da analogia ao “último filme”, não sei se de forma proposital.
Cinema “Zeitgeist”
Na tela, encontramos o próprio “espírito do tempo”. Tanto “O Último Pub” quanto o conjunto da obra de Ken Loach se inserem nessa categoria, herdada do pensamento hegeliano, que em alemão responde por “Zeitgeist”. Trocando em miúdos, a condensação em um ponto ou obra do conjunto do clima intelectual, moral e cultural de uma dada época histórica.
A história resumida trata do conflito gerado pela chegada de imigrantes sírios numa decadente cidade do norte inglês, econômica e socialmente destruída com o fim da mineração. Yara encarna uma jovem fotógrafa, que após dois anos em um campo de refugiados migra com a mãe e seus irmãos para o Reino Unido. A fluência em língua inglesa lhe dá condições de interagir mais. Mas as famílias sírias são recebidas com hostilidade por parte da comunidade local, especialmente os setores mais atrasados: os antigos mineiros falidos, desassistidos pelo Estado; também pelos jovens sem perspectivas, que acabam por reproduzir discursos e práticas machistas e xenófobas.
A origem de Yara e dos sírios conta a história de morte e repressão que o regime de Assad impõe. O terror da ditadura síria afogou em sangue qualquer perspectiva democrática, levando a uma cruel guerra civil, que teve como saldo milhões de refugiados e migrantes.
TJ, dono do Pub (aliás, único espaço público de socialização da pequena cidade) é um líder comunitário, filho de mineiros, de tradição combativa, que busca auxiliar na solidariedade às famílias, sejam elas imigrantes, sejam elas da comunidade local.
O atraso na chegada ao Brasil fez com que a estreia nacional coincidisse com importantes acontecimentos no Reino Unido. A Inglaterra e a Irlanda do Norte assistiram uma onda de violência de caráter racista, articulada pela extrema direita, contra imigrantes, comunidades e mesquitas. A violência brutal, ampliada por uma rede de fake news, foi um retrato da polarização social e política, com figuras como o neofascista Tommy Robinson pregando a xenofobia, falando para os “ingleses verdadeiros”. Além de Robinson, a grande votação de Nigel Farage e seu novo partido (Reforma UK) indica ecos dessa política.
Não foi coincidência. Na ficção de Loach, os elementos dos sintomas mórbidos aparecem de forma nítida. Nas ruas, a explosão de violência é consequência direta da aderência ao discurso da extrema direita, que busca no “outro” – ou seja, nos imigrantes – a responsabilização pela crise que vivem os trabalhadores britânicos.
Houve uma vez um futuro
A crise de projeto marca o tempo presente. Não há perspectivas de futuro, nem para os ex-operários sem emprego, atolados em dívidas e sem a devida cobertura; nem para seus filhos. Não há perspectiva de retorno para as famílias sírias e outros desterrados (seja pela guerra, pela repressão política, refugiados climáticos ou por condições econômicas). “O Último Pub” mostra a construção de jantares solidários como saída para retomar a sociabilidade, mas também para combater a pauperização real e imediata. Há fome em plena Europa do século XXI.
TJ mostra a Yara a sala onde ficam as fotografias, memórias da luta dos mineiros, sobretudo da grande greve de 1984-85. Onde há desesperança, destruição das condições de vida e discurso de ódio, houve um neoliberalismo atroz, que acabou com a estruturação de vida de milhões.
Vale retomar o conceito desenvolvido por Fisher (2011), usando a mesma Inglaterra pós-neoliberal: há um lento cancelamento do futuro. Nesse caso, a Inglaterra é o mundo.
A questão central, expressa de forma lírica e simples em “O Último Pub”, é como superar a divisão fatal que a classe trabalhadora vive; como superar a falta de solidariedade e a fragmentação. Como reconstruir uma subjetividade coletiva, capaz de inverter a tendência corrosiva que destroi o caráter e relega à destruição das condições emocionais do sujeito?
Há dor, há complexidade, mas há pistas.
Reconstruir a memória do passado, restabelecer os laços do presente, oferecer “frestas de futuro”.
Fora da solidariedade, não há esperança. E a bandeira do neofascismo é organizar a desesperança, convertendo-a em ódio.
O espírito de 1984
Loach chegou aos seus 88 anos, mantendo sua arte ligada ao engajamento. Manteve seu devir em resgatar o melhor das tradições da nossa classe, sem deixar de modernizar e enfatizar o que há de mais contemporâneo. Não abandonou sua vertente revolucionária, trotskista, opositor decidido das burocracias stalinistas e da hipocrisia social-liberal. Em recente artigo alertou:
“A esperança continua de esquerda, mas precisamos nos organizar. Um caminho existe, a classe operária tem a mesma força de sempre, porque faz tudo: produz serviços, transportes, tudo. Mas se não agir para proteger os seus interesses, cai na propaganda de extrema-direita, e isso destroi a esperança.”
Desesperado, TJ desiste de tentar suicídio ao ver esperança numa pequena cadelinha, chamada Marra (gíria mineira para aferir algo como “camarada). Marra acaba morta por pit bulls que não são mais que a representação da violência das milícias neofascistas. Uma vez mais posto à prova, ele recorre à solidariedade de classe, ao espírito de luta dos mineiros (recorda seu pai, líder combativo) para seguir combatendo, oferecendo refeições comunitárias, socializando como na exposição de fotos de Yara, tentando contornar a sabotagem feita pelos contrários à presença imigrante.
Um dos melhores momentos do cinema de Ken Loach pode ser encontrado no documentário que leva o nome de “Espírito de 45”, retratando a força política da classe operária e de um programa radical, quando Attle derrotou eleitoralmente o prestigiado Churchill.
É no “espírito de 1984”, da greve e solidariedade mineira, mesmo derrotada, que TJ busca forças para seguir seu devir.
Nas últimas cenas do filme, onde o desfile religioso ganha traços ecumênicos e os ritos, místicas e tradições apontam para uma identidade comum de classe, é que esse espírito aparece como hipótese de emergência para um novo “espírito do tempo”.
O estandarte clássico dos mineiros agora recebe a inscrição de “Força, Resistência, Solidariedade”, também em árabe. É essa força que levou dezenas de milhares às ruas para impor um recuo físico aos neofascistas e xenófobos semanas atrás.
Ken Loach se despede das telas deixando o que há de permanente em nós, em nossa classe: FORÇA, RESISTÊNCIA, SOLIDARIEDADE.