Vida além das eleições
Uma reflexão sobre as mobilizações pelo fim da escala 6×1
As manifestações convocadas contra a escala 6X1, organizadas pelo VAT em diversas cidades do país, se converteram num fato político. A começar pelo fato que os atos que ocorreram nos últimos feriados tinham sido atos bolsonaristas.
Além de reunir milhares de pessoas, a pauta da luta contra a escala 6X1 ganhou eco de massas, chegando ao topo das redes sociais. Estive no ato em São Paulo, onde presenciei a movimentação – os organizadores falaram em cinco mil pessoas – que resultou num ato bastante vitorioso. Para além de sua composição, que uniu tanto setores mais organizados no amplo espectro da esquerda quanto trabalhadores que foram motivados pela pauta, imagino que o impacto seja bastante superior. Digo isso porque ainda não foram muitos os que se desafiaram a sair cedo de casa, nas periferias, gastar em condução, mas o apoio de setores massivos, mesmo que ainda não de corpo presente, é crescente. Ressoa alto a necessidade da voz e de um programa da classe trabalhadora.
Não vou comentar os desdobramentos imediatos políticos, onde me parece necessário seguir a mobilização com um plano criativo e unitários de lutas (o exemplo de protestos dentro do Shopping em Belém e Curitiba foi muito inteligente), evitando que um setor da burocracia sindical governista utilize essa justa luta em curso para evitar críticas aos cortes que o governo federal prepara em seu pacote “antipopular”.
A força do VAT, originário da disposição e capacidade de liderança do jovem Rick Azevedo, eleito vereador mais votado do PSOL no Rio de Janeiro sob essa bandeira, é outro dado relevante. Vai precisar ser analisado e discutido, além de ver como coordena com outros setores políticos nas dezenas de cidades que se somaram ao movimento.
Este é um daqueles acontecimentos que coloca lente em problemas e contradições que vão para além da conjuntura. Notei e refleti isso nos discursos. Há algo muito importante que está se demonstrando, com formas particulares e características, como em todo acontecimento que desloca as famosas “placas tectônicas” da sociedade. De alguma gaveta da memória lembrei do clássico de Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena, mais pelo título do que pela tese. A grande questão é: os trabalhadores ocupando o centro da cena.
Façamos o seguinte exercício hipotético. Se há uns três meses, um ativista qualquer interrompesse as confortáveis salas dos estrategas das campanhas eleitorais da “Frente Ampla” sugerindo que uma das propostas capazes de pautar o cenário político fosse o fim da escala 6X1, certamente os “doutos” da realpolitik diriam se tratar de uma espécie alienígena (taxado de ingênuo, esquerdista, e outros epítetos).
Em pouco tempo, a rosa dos ventos da política mudou.
O momento de retrocesso político com a vitória de Trump nos Estados Unidos foi um choque. Um trauma em si mesmo. Observar os elementos centrais desse acontecimento, um dos maiores do século XXI, é mais importante do que apenas taxar e repetir a cantilena de que “Os fascistas vem vindo”. Kamala perdeu quase dez milhões de votos, comparada com o desempenho do Partido Democrata em 2020. Porque a classe trabalhadora não votou contra Trump? A obviedade de um cordão sanitário defensivo contra Trump não pode nos fazer fechar os olhos de que há algo muito errado na “representação do progressismo” do establishment.
No Brasil, numa outra escala e coordenadas políticas (pois Bolsonaro também se enfraqueceu diante dos resultados eleitorais), o debate se instalou acerca da derrota das chapas do PT e PSOL nas principais capitais.
Como entender que semanas depois dessa “derrota eleitoral” dura, o VAT liderado por Rick iria atravessar as fronteiras da polarização no parlamento; quando, mesmo que demagogicamente, no discurso de figuras da extrema direita, se escutou a defesa dos direitos mais elementares dos trabalhadores.
O próprio léxico também se alterou bruscamente: de “empreendedores”, “sustentabilidade”, “parcerias” saltamos para “classe trabalhadora”, “direitos”, “locais de trabalho”.
Algo passou por fora dos coordenadores de campanha, marqueteiros, que foram reduzindo proposta por proposta, para “suavizar” a imagem dos seus candidatos. A expressão máxima, de forma trágica, desse tipo de raciocínio político é Marcelo Freixo, que de líder da “Primavera carioca” se transformou num cabo eleitoral de Eduardo Paes.
Tais estrategistas observam a superestrutura, desprovidos de arsenal teórico e enxergam a superfície. Enxergam a espuma do mar, observam as ondas como leigos que sequer conhecem a dimensão profunda do oceano. Sem plano de rotas ou conhecimentos, confundem as correntes marítimas com a quebra das ondas na praia.
Ouvi com atenção a fala da coordenadora do VAT no caminhão de som em São Paulo. Notei autenticidade num discurso que continha um classismo que há muito não escutava. Algo forte, intenso, porque era real. Vi contradições que me lembravam os jovens do MPL em 2013, voltando a sua crítica aos “partidos e movimentos” que apenas chegavam na hora das manifestações. Há que se debater os termos postos, porque não se pode colocar na vala comum setores mais à esquerda e combativos (que podem ter dificuldades de se relacionar com métodos e articulações que não sejam acostumados) e burocracias sindicais que abandonaram há décadas qualquer trabalho de base nas fileiras da classe.
Como já disse, isso pode se evidenciar nas contradições da luta contra o pacote. Não se pode afirmar como e com que via o movimento vai se expressar, isso é o debate da próxima semana.
De toda forma, vejo que existem lições importantes, patentes, vista a olho nu. Saímos da eleição falando que era o momento de polarização ao redor do programa, de ideias concretas e não de “sacadas de marketing”. O que vi na Paulista e nos atos por todo país é “puro programa”.
E a classe, utilizando as ferramentas disponíveis para se expressar, por fora dos aparelhos tradicionais; foi assim em 2013; na onda de ocupação de escolas de 2015; na Primavera das Mulheres; não esqueçamos que mesmo durante a pandemia tivemos a luta antifascista, a luta da juventude negra e o breque dos Apps.
São duas as conclusões mais amplas do que está passando, a meu ver:
Em primeiro lugar, uma demonstração do tamanho do erro de reduzir o político ao eleitoral. As eleições são condicionadas pelas circunstâncias da sociedade, em que pese sua autonomia relativa cada vez mais aparente pelos fundos milionários de campanha. Sem disputar a hegemonia para que a classe se expresse, com sua força própria, com seus métodos e suas referências, a própria disputa eleitoral terá um sentido muito limitado.
O segundo é que a classe trabalhadora, como ela é, com seu rosto atual, majoritariamente feminina, negra, com grande parcela LGBTQI, precisa estar no centro dos acontecimentos. Isso é uma tarefa permanente. É um assunto a ser desenvolvido com muita seriedade pelo conjunto da esquerda e do ativismo.
Uma discussão menos grosseira acerca da “relação de forças” que alguns utilizam como argumento para justificar todo e qualquer recuo parece estar na ordem do dia.