A influência anticomunista cristã na tentativa de golpe de 2023
Setores religiosos reacionários tiveram papel importante nos eventos golpistas
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Introdução
O incômodo teórico no qual ancoramos este texto está em compreender como o Comunismo se tornou um “real” inimigo para inúmeros sujeitos, em pleno século XXI, levando-os à tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. Apesar da cautela referente às hipóteses que toda investigação sociológica necessita, estamos tentados em “afirmar” que o anticomunismo de viés cristão exerceu fundamental influência na construção do imaginário social bolsonarista, transformando-se em um dos principais elementos motivacionais para a tentativa de fechamento do regime democrático de direito.
Quando rememoramos outras tentativas de golpes na história brasileira, como a Ditadura Militar de 1964, os mais diversos sérios estudos da historiografia sobre aquele trágico momento apontam que não havia possibilidades de uma revolução comunista nestas terras tupiniquins, mas ao menos a conjuntura internacional proporcionava meios para delirante ideia de o “perigo vermelho” emergir, pois naquele momento se experienciava, dentre tantas, a Guerra Fria e a Revolução Cubana, esta em 1959.
Muitos podem atualmente mencionar países como a China, a Coreia do Norte, Cuba ou Venezuela enquanto países socialistas e, dessa forma, justificar a suposta ameaça comunista. Todavia, como é sabido, nenhum desses países de fato são socialistas, quiçá comunistas. Ora, especialmente China e Venezuela atuam muito bem dentro da dinâmica regida pelo capital. Mas não podemos negar que tais nações são usados como ícones fantasmagórico para robustecer o imaginário social anticomunista na contemporaneidade. Contudo, como supracitado, a atual conjuntura internacional nem se compara com os anos da Guerra Fria e é irrelevante para justificar o 8 de janeiro.
Cabe ressaltar que a “ameaça” comunista não é novidade na história. Conforme salientou Motta (2021), o anticomunismo se destaca no cenário brasileiro em dois grandes momentos no século XX. Intitulado pelo autor como “Ondas”, a primeira onda anticomunista resultou na implementação do Estado-Novo, em 1937; e a segunda levou os militares ao poder, em 1964. O que ambas possuem em comum? Através da esfarrapada desculpa da ameaça comunista, todavia eficaz, galgaram à implementação de regimes ditatoriais. Apesar da Democracia ter sobrevivido aos atentados do 8 de janeiro de 2023, consideramos que uma terceira onda anticomunista iniciara com o golpe parlamentar desferido contra ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Necessitaríamos de mais tempo hábil para apresentarmos as análises sociológicas do porquê estarmos inseridos em uma terceira onda anticomunista; mas em síntese: mesmo não ocorrendo o fechamento do regime democrático de direito – como em 1937 e 1964 – desde o golpe de 2016, intensificou-se certa narrativa que associava o Partido dos Trabalhadores (PT) e a corrupção política enquanto sinônimo de comunismo. Dessa maneira, essa argumentação anticomunista produzida principalmente por lideranças religiosas, mas não somente, foram tecendo o imaginário social em parte da população sobre a existência do “perigo vermelho” da qual Lula era o principal representante – eis a “justificativa” do 8 de janeiro. Com a eleição de Bolsonaro, o gabinete do ódio especializado na fabricação de notícias falsas intensificou publicações completamente mentirosas; para citar apenas dois exemplos, basta lembrar das falsas afirmações as quais alegavam que o vírus da Covid-19 foi criado em laboratórios chineses, pois a China “comunista” tinha/têm um plano de dominação do mundo, e o caso de Mariele Franco mentirosamente acusada de envolvimento com pessoas ligadas ao tráfico de drogas.
Em que pese a vontade de nos enveredarmos pelas contradições tanto da gênese quanto dos processos que levaram à terceira abrasileirada onda anticomunista, foquemos nossa atenção na hipótese supracitada: em que o anticomunismo cristão exerceu fundamental influência no imaginário social de parcela bolsonarista constituindo-se enquanto principal elemento (contudo não o único) motivacional para uma tentativa de fechamento do regime democrático de direito.
Para salvar o Brasil do Comunismo
As conclusões do relatório de quase 900 páginas apresentada pela Polícia Federal sobre a articulação golpista daquele nefasto dia 8, inclusive com metas para assassinarem Lula, Alckmin e Moraes, explicitou que o atentado em Brasília não foi mera ação espontânea provocada pelo calor momentâneo. Muito pelo contrário! Houve meticuloso planejamento que mobilizou milhares de pessoas num expressivo movimento de massas cujo principal objetivo era a permanência de Bolsonaro enquanto chefe do Executivo. Pois bem, como se sabe, o desfecho não foi o fechamento do regime, mas não resta dúvida alguma que houve articulada e explícita tentativa de derrubada da democracia.
Em nome de “Deus” e contra o “comunismo”, a religião adentra como eixo principal para construção do imaginário social de suposto perigo vermelho que justificasse o golpe de Estado. Vejamos o porquê: com imenso alcance de massas, seja pela ação social, seja pela própria influência das instituições religiosas (Centro Espíritas, Igrejas Católicas e Evangélicas), no decorrer dos últimos anos foram disseminados em celebrações religiosas, como missas, palestras espíritas e cultos evangélicos, e nos mais diversos meios midiáticos (Youtube, Whatzapp, Instagram, canais de televisão etc.) que o Mundo perpassa neste momento pordecisiva batalha espiritual contra as avermelhadas forças das trevas.
A BBC News Brasil produziu um documentário intitulado: Profetas do bolsonarismo: Como religião foi usada no “8 de janeiro”1, que nos oferece importantes elementos para entendermos como as redes sociais foram fundamentais para a criação do imaginário social anticomunista. É bem explícito, como já dito, que as pregações levavam a entender que “forças ocultas” estavam agindo para a implementação do comunismo no Brasil.
O pastor e Deputado por São Paulo Marco Feliciano, que em um de seus canais no youtube possui mais 300 mil inscritos, redigiu em 2020 o seguinte texto: “A fé cristã e a família são o último bastião contra o comunismo”2. Texto curtíssimo, mas com inúmeras informações sem nexo, no qual afirma, embasados em teorias conspiratórias, que a igreja é a grande defensora contra o comunismo. Buscando dar legitimidade à teoria conspiratória, Feliciano aponta que o bilionário George Soros é responsável em financiar organizações “trevosas” ao redor do Mundo. Ou seja, algo que está completamente no abstrato (o comunismo) começa a ganhar concretude quando, mesmo indiretamente, pessoas são apontadas, sem provas, como financiadoras para a implementação do comunismo. Poderíamos mencionar vários outros vídeos contra o comunismo gravado por Feliciano, mas seria por demais extensa a lista, por conseguinte, somente comprovando que foram anos sendo construídas narrativas anticomunistas tanto dentro dos redutos da igreja quanto nas redes sociais.
Outro religioso, este de orientação Católica, o Padre Paulo Ricardo, que possui mais de 1 milhão de inscritos em seu canal no youtube, publicou diversos vídeos ao longo dos anos contra o comunismo. Citemos dois, o primeiro de 2018: “A Rússia espalhará os seus erros pelo mundo”: aula sobre Fátima e o Comunismo”3; e o segundo em 2022: “Comunismo no Brasil: onde mora realmente o perigo?”4. Obviamente não foram as únicas publicações, no hiato entre um vídeo para o outro vários materiais foram postados em sua página com teor anticomunista. O segundo vídeo foi publicado em 17 de outubro, antes do segundo turno das eleições para presidente. Não foi mera coincidência! O objetivo do conteúdo foi atribuir o comunismo a Lula e que Bolsonaro era o responsável em conter as forças trevosas (materializadas no Lula) cujos objetivos era voltar ao poder.
Padre Ricardo é anticomunista ferrenho e busca combater tanto no campo da fé quanto no campo teológico/filosófico as ideias oriundas do pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. Em determinado texto5 publicado em seu site, de autoria do teólogo J. P. Nunez, buscaram argumentos para combater qualquer interpretação que se possa comparar as primeiras comunidades cristãs com esse tal de comunismo.
Divaldo Pereira Franco, líder de prestígio na comunidade espírita recorrente ao seu trabalho de caridade com as famílias pobres da Bahia, gerou profundos incômodos, até espanto, ao disseminar mentiras sobre a vida de Karl Marx. A leitura simplória de qualquer biografia minimamente séria impediria Divaldo Franco reproduzir falácias corriqueiras no seio da extrema-direita como a que Marx nunca trabalhou e que não era filósofo6. Em outro vídeo, Divaldo defendeu a anistia para os golpistas do 8 de janeiro, disseminando que os bons estavam calados perante a injustiça desferida contra os patriotas7.
Nessa linha de raciocínio, percebemos que as narrativas construídas pelos três líderes religiosos mencionados associaram a figura do diabo ou dos espíritos obsessores (estes na tradição Espírita e aqueles na tradição Católica e Protestante) ao comunismo. O PT e o Lula seriam no atual momento os principais inimigos que deveriam ser combatidos independentemente dos métodos, pois o terceiro governo lulista decretaria a derrota das forças do “bem” na Terra. No imaginário social daqueles extremados bolsonaristas isso deveria ser evitado, o “mal” não poderia governar. Invadir Brasília, destruir patrimônio público, agredir quem quer que estivesse no caminho se fazia necessário e justificável para aqueles “devotos” de Jesus Cristo; afinal, para eles, estavam travando luta direta contra as trevas em nome de “Deus”.
Conclusão
Diante do exposto, estamos convencidos que a narrativa anticomunista cristã foi construída com o intuito de manter a corja bolsonarista e o que mais há de podre nas forças armadas no poder através do ópio religioso. Portanto, apontamos que a punição para os envolvidos na tentativa de golpe desferida contra a democracia em 8 de janeiro de 2023 seja efetuada, principalmente, para o ex-presidente Jair Bolsonaro e as elites envolvidas. Caso isso não ocorra – deixando Bolsonaro anistiado – a justiça burguesa abrirá precedentes irreparáveis contra a democracia. Por fim, caracterizamos que não existe conjuntura para a implementação de outro regime ditatorial, o que há são elementos para formação dessa conjuntura. A resposta se esses elementos poderão em médio prazo resultar ou não no fechamento do regime, perpassa sobre a prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas.
Referência Bibliográfica
SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. 2002. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva.
https://padrepauloricardo.org/blog/o-novo-testamento-apoia-o-comunismo
Vídeos utilizados:
Documentário BBC: Profetas do bolsonarismo: Como religião foi usada no “8 de janeiro” Link: https://www.youtube.com/watch?v=QVLYafGRvA4&t=43s
“A Rússia espalhará os seus erros pelo mundo”: aula sobre Fátima e o Comunismo
Link: https://www.youtube.com/watch?v=GaJcVEz_4EE
DIVALDO FRANCO – KARL MARX E O MARXISMO
Link:https://www.youtube.com/watch?v=sOlzMx6Hs6g&list=PL858FGYY6phcmZ3K2W6ruG2xErJ3x9JP4
Divaldo Franco, famoso médium espírita, defende golpistas em vídeo e gera reação entre espíritas Link: https://www.youtube.com/watch?v=LkERdb5et3o&t=5s
Comunismo no Brasil: onde mora realmente o perigo? Link:https://www.youtube.com/watch?v=IwCYmJ6FwUw
Notas
- https://www.youtube.com/watch?v=QVLYafGRvA4&t=43s ↩︎
- https://pleno.news/opiniao/marco-feliciano/a-fe-crista-e-a-familia-sao-o-ultimo-bastiao-contra-o-comunismo.html#! ↩︎
- https://www.youtube.com/watch?v=GaJcVEz_4EE ↩︎
- https://www.youtube.com/watch?v=IwCYmJ6FwUw ↩︎
- https://padrepauloricardo.org/blog/o-novo-testamento-apoia-o-comunismo ↩︎
- https://www.youtube.com/watch?v=sOlzMx6Hs6g&list=PL858FGYY6phcmZ3K2W6ruG2xErJ3x9JP4 ↩︎
- https://www.youtube.com/watch?v=LkERdb5et3o&t=5s ↩︎