Pensando o lugar das LGBTs no capitalismo
O novo espaço social ocupado pelas LGBT suscita a compreensão histórica de sua luta por direitos. Afinal, se trata ou não de uma bandeira de esquerda?
Nos últimos dias foi veiculado na internet, por mídias alternativas influentes, um post que dizia mais ou menos o seguinte: “defender direitos de LGBT’s não são pautas de esquerda. Esquerda e direita são posicionamentos econômicos. Defender esses direitos é uma questão de caráter”.
Esse post, reproduzido aqui sem uma fidelidade exata dos termos mas preservando seu espírito, gerou bastantes comentários e posicionamentos nas redes dos mais diversos tipos.
Esse debate não é à toa. Nos últimos anos temos visto surgir uma nova-direita, liberal, que absorveu parte dessas pautas enquanto defesa da liberdade individual de cada um expressar sua liberdade. Em certa medida isso reflete algo de positivo de que as LGBTs aumentaram seu reconhecimento e passaram a ter mais aliados dentro de uma sociedade tão retrógrada e patriarcal como a brasileira. No entanto essa é uma seara complexa, porque cada dia mais as pautas identitárias, incluindo a de diversidade sexual e de gênero, se confundem com pautas econômicas na sociedade. Esse é o debate que pretendo fazer aqui.
Uma preâmbulo histórico
A história das LGBTs brasileiras ainda hoje é uma névoa para todos nós. Pouco se sabe sobre nosso passado, já que a história do Brasil como nós conhecemos não é uma narrativa global sobre os fatos históricos em si, mas sim representam um recorte dado pelo interesse historiográfico do pesquisador, e aos propósitos aos quais servem a pesquisa.
Nesse sentido nossa história não se relata justamente pelo lugar ocupado na sociedade pelas LGBTs.
Como se sabe nosso país foi fundado por uma aristocracia agrária voltada ao mercado externo e fundada sobre duas relações fundamentais: a) A relação econômica fundamental entre senhores e escravos, tendo como núcleo social fundamental um ; b) modelo familiar patriarcal permeado por uma cultura católica conservadora.
Em se tratando da relação senhor/escravo não existem registros marcantes, porque a expressão da sexualidade não cabia ao escravo, enquanto mercadoria. Isso não significa que os escravos não poussuíam diversidade sexual entre si, mas que, enquanto mercadoria dos senhores, eles eram tratados como não-humanos, e, portanto, sem nenhum recorte acerca das suas predileções sexuais.
Em se tratando da família patriarcal, era impossível quaisquer desvio desse tipo. A família patriarcal remete, fundamentalmente, a uma relação conjugal heterossexual. Aqueles que faziam a opção de viver suas vidas de acordo com sua sexualidade, renunciavam ao privilégio de fazerem parte desse núcleo social fundamental.
Portanto, o lugar social a que cabiam essas LGBTs eram uma espécie de limbo. Um setor, por definição, inorgânico, passando por fora de qualquer relação orgânica à nossa sociedade. Se localizavam na completa margem da sociedade, e permaneceram assim durante a transição da sociedade de castas para a sociedade de classes.
Isso não significa que não existissem práticas sexuais não normativas entre aqueles que faziam parte dos núcleos orgânicos da nossa sociedade, mas assumir-se LGBT nesse período significava se relegar ao inorgânico, à margem social.
Então, desde o periodo colonial, até o império, e em boa parte da república, o lugar social da maioria das LGBTs eram próximos à clássica definição marxista sobre o lúmpemproletariado,que por definição são aqueles que passam por fora do processo de produção, estando presentes em prostituição, boemia, vadiagem, entre outras ocupações marginais ao processo produtivo.
Esse regime de exclusão social no Brasil, em especial, nunca foi sedimentado juridicamente, mas vale ressaltar que a homotranssexualidade era crime em boa parte dos países centrais do capitalismo até poucas décadas atrás, mostrando que a marginalidade social das LGBTs não é apenas um processo que historicamente se sedimentou no país, mas sim teve reflexos em boa parte da formação das nações capitalistas.
LGBTs, mercado de trabalho e inclusão desigual
Depois de um amplo período ocupando esse não-espaço de marginalização social completa, as LGBTs foram se inserindo à conta-gotas no mercado de trabalho, em expansão especial com o crescimento do setor de serviços no país.
O processo acelerado de desindustrialização do país (que começa na década de 90 com o início da aplicação do modelo neoliberal no país, e perpassa tanto os governos abertamente neoliberais – Collor, Itamar, FHC – quanto os governos ditos de frente popular – Lula e Dilma -) ampliou de forma bastante acentuada o peso do setor de serviços na classe trabalhadora brasileira, onde se dá parte bastante significativa da ocupação de LGBTs.
Esse processo se confunde com o movimento internacional no mundo do trabalho de expansão do trabalho flexível e precário, desregulamentação das leis trabalhistas, crise do modelo de regulação fordista da produção e adoção acelerada de regimes de trabalho taylorizados.
E é justamente nesse processo que se consolidou uma transição mais consistente da massa LGBT completamente marginalizada à proletarização em direção a uma massa LGBT que transita pelo mercado formal de emprego.
Sendo assim pode-se fazer referência ao conceito de inclusão desigual do sociólogo Michael Burawoy (Burawoy, 2010): Ao mesmo tempo que existiu um sentido de inclusão dessas LGBTs ao mercado de trabalho, essa inclusão se dá sob a cristalização de um regime de superexploração e espoliação acentuada desse setor da classe, por meio do subemprego e da precarização completa do trabalho. Ao mesmo tempo em que passam a ocupar espaço no mercado de trabalho, esses espaços são bastante precarizados, em ocupações altamente rotativas. Essa inclusão desigual das LGBTs cria um paradigma semelhante ao debate sobre a divisão sexual do trabalho desenvolvido por Helena Hirata e Daniéle Kergoat (Hirata; Kergoat, 2007); fazendo uma analogia poderia se dizer que essa divisão social do trabalho com recorte de sexualidade e diversidade de gênero se organizaria em torno de dois princípios: um deseparação (existiriam empregos típicos de LGBTs, e empregos tipicamente não LGBTs); e um de hierarquia (empregos tipicamente ocupados por LGBTs “valem” menos que empregos tipicapente ocupados por pessoas cisheterossexuais).
Essa transformação nas estruturas de regulação do trabalho permitem pela primeira vez localizar com mais nitidez as LGBTs na divisão social do trabalho, e justamente em um período de ampliação da desigualdade social e da concentração de renda. Portanto, o que se pode concluir é que essa inclusão desigual não apenas ampliou a desigualdade entre ricos e pobres no país, mas também cristalizou uma desigualdade entre pessoas cisheterossexuais e LGBTs no mundo do trabalho.
Uma categoria que pode ilustrar esse debate aqui desenvolvido é a categoria de operadores de telemarketing. Uma categoria que cresceu absurdamente durante a década de 90 e na primeira década do século 21 chegando no ano de 2012 a se configurar como a segunda maior categoria do país (1,4 milhão de operadores em 2013) atrás apenas das empregadas domésticas. Uma categoria tipicamente fruto dessas novas formas precarizadas de regulação do trabalho, com uma exploração brutal dos trabalhadores, alta rotatividade, e contratos frágeis (Braga; Santana, 2015), onde existe uma participação muito significativa de LGBTs no seu contingente. Essa categoria é significativa pelo seu tamanho, expressão e simbolismo de um tipo de emprego com a cara dos novos tempos no mundo do trabalho, e, portanto, um exemplo nítido da inclusão desigual da população LGBT. No entanto além dessa existem várias outras categorias que se enquadram como trabalhos tipicamente LGBTs e hierarquicamente inferiores, como os trabalhos relacionados ao cuidado (“care”), entre outros.
LGBTs, esquerda e possíveis saídas políticas
Os aspectos históricos e econômicos levantados acima são parte de uma reflexão, ainda atabalhoada e um tanto esquemática, de que papel cumprem as LGBTs no capitalismo contemporâneo como uma forma de responder ao debate que deu origem a esse texto.
A esquerda costuma repetir como jargão comum que a opressão LGBT se liga a esquerda porque somente com a destruição do modo de produção capitalista que se pode ter liberdade plena entre nós. Esse discurso (ainda que correto, de fundo) carece de aprofundamento para poder disputar de fato a consciência das LGBTs para a luta por um futuro que não se resuma à miséria do capitalismo. E justamente nessa esteira, proporcionada pelo vácuo de formulação marxista sobre o tema, que cresce a narrativa pela via liberal e do consumo dentro da pauta.
No entanto o discurso liberal não se sustenta, pois o que a realidade mostra é que a superestrutura de discriminação sexual e de gênero produz estruturas desiguais no trabalho, ao mesmo tempo que sua sedimentação histórica é produzida por essas mesmas estruturas. Tanto um quanto o outro necessitam de si mesmos para se reproduzir. Se retroalimentam.
E indo além: a contradição entre o liberalismo e os direitos da população LGBT não são apenas uma contradição filosófica, com resoluções abstratas relacionadas ao fim da sociedade de classes, mas são fundamentalmente contraditórios porque é impossível defender medidas de liberalização da economia que desregulam as relações de trabalho e defender ao mesmo tempo a população LGBT que é profundamente afetada por esses novos modelos predatórios de trabalho. E trazendo pro debate atual no país: é impossível defender reformas como a trabalhista e a da previdência, e leis como a da terceirização irrestrita (medidas amplamente defendidas pelos liberais) com discurso simpático as LGBTs quando essas medidas vão acabar por destruir as condições de trabalho dessas LGBTs que se localizam nessas ocupações altamente precarizadas.
Portanto, ainda que sejam questões de mínima civilidade, o respeito à diversidade sexual e de gênero se pensado do ponto de vista da dignidade das LGBTs vulneráveis só se resolvem através da combinação da luta identirária com as lutas políticas e econômicas travadas pela esquerda. Isso significa que não somente é perigoso e contraproducente admitir setores liberais como aliados na luta LGBT, como é tarefa da esquerda socialista politizar os espaços LGBTs e construir uma simbiose entre a luta por reconhecimento identitário com as lutas econômicas relativas, em especial, as reformas brutais do governo golpista sobre o emprego. Além disso, é entender que quando se fala dessas LGBTs vulneráveis estamos falando de uma maioria negra e uma presença significativa de mulheres LBTs, e portanto não existe perspectiva de transformação da luta social em luta política sem a intersecção desses debates estruturantes da nossa sociedade, através de uma análise classista. A luta LGBT tem que ser cada vez mais preta, mais feminina, e sobretudo, mais ligada à defesa das condições de vida e de trabalho da maioria da população LGBT, que é pobre e sofre mais com a violência e a discriminação no Brasil.
Nesse sentido, se a luta LGBT não é, hoje, uma pauta de esquerda ou de direita, é nosso dever lutar diariamente pela hegemonia das pautas de esquerda no movimento, denunciando a contradição iminente entre os princípios liberalizantes da economia e nossa dignidade. Se atentar nessa disputa é um dos caminhos pra descolonizar nossas lutas e, além de ser consequente com a maioria da população LGBT do país, caminhá-las para uma situação onde elas cumpram um papel determinante para escancarar as contradições do capitalismo, e dar escopo para um processo de transformação estrutural da sociedade.
Em períodos de retrocessos brutais, colorir nossas lutas, e saber identificar nossos aliados é fundamental.