Portugal: greve geral mostra que a luta pode abrir caminhos à esquerda
A greve geral marca um sucesso político: a sua convocação, ao fim de 12 anos e em plano unitário, criou consciência de massas sobre a gravidade da ofensiva e tornou mais difícil a composição de uma maioria parlamentar PSD-Chega para aprovação do pacote legislativo
A greve geral – a primeira desde os tempos da troika – foi convocada pelas duas centrais sindicais, CGTP e UGT, o que só aconteceu em metade das dez greves gerais realizadas desde o fim da ditadura há 50 anos. Apesar do atual confinamento da esquerda, a simples afirmação da iniciativa do movimento sindical permitiu alterar os termos do debate público. Ganhou evidência o processo de regressão social comandado pela direita e camuflado sob o ruído atordoante das campanhas de ódio e mentiras que monopolizam o espaço público.
A brutalidade do pacote laboral revela um governo minoritário e instável, que pretende fazer todo o mal ao mesmo tempo e o mais cedo possível, enquanto dura a oportunidade para precarizar a título permanente a posição do trabalho na relação de forças social. Neste contexto, a greve geral foi um sucesso de participação, no setor estatal mas não só: serviços mínimos no transporte aéreo, paragem da Volkswagen, da Mitsubishi Fuso e também em setores do comércio ou da indústria. Segundo a CGTP, mais de três milhões de trabalhadores estiveram em luta. A manifestação em Lisboa juntou, apesar da ausência quase total de transportes, muitos milhares de pessoas, a larga maioria trabalhadores jovens e fora de enquadramento sindical, mas que marcaram presença.
A greve geral marca um sucesso político: a sua convocação, ao fim de 12 anos e em plano unitário, criou consciência de massas sobre a gravidade da ofensiva e tornou mais difícil a composição de uma maioria parlamentar PSD-Chega para aprovação do pacote legislativo. Só os patrões mostram entusiasmo pelas novas leis; nas sondagens, dois terços dos inquiridos que respondem declaram concordar com os motivos da greve; nenhum dos candidatos presidenciais da direita se atreve a apoiar abertamente a contrarreforma; sindicalistas afetos ao partido do governo participaram na greve geral e, no próprio dia, a tentativa do governo de definir a greve como “inexpressiva” caiu no ridículo. O líder dos neofascistas, que há semanas atacava os sindicatos e defendia as novas leis, declara agora compreender as razões dos grevistas e fala da retirada de alguns “elementos absurdos” da proposta do governo. Veremos que preço político estará André Ventura disposto a pagar para, com o seu voto parlamentar, agradar à burguesia.
O annus horribilis de 2025
Com a esquerda no seu pior resultado de sempre e o PS ultrapassado pelos neofascistas, logo à saída das eleições parlamentares de maio passado (ler balanço aqui), a nova direção socialista deixou claro que está pronta para garantir a aprovação dos orçamentos de Estado do governo Montenegro. Isto ao mesmo tempo que as contrarreformas da direita vão sendo aprovadas por acordo com o Chega.
Nas eleições municipais de outubro, a viragem à direita acentuou-se, com a conquista pela direita das maiores cidades. O PCP, com uma tradição municipal importante, perdeu um terço dos seus eleitos e as duas capitais de distritos que ainda governava. O Bloco e o Livre, coligados numa vintena de cidades importantes, conseguem resultados fracos, ainda piores quando concorreram separados.
Quanto às presidenciais, as sondagens atribuem a dianteira a dois candidatos de direita (Marques Mendes e Gouveia e Melo) e ao líder da extrema-direita (André Ventura), todos em torno dos 20%. O candidato apoiado pelo PS – uma figura muito à direita no partido – aparece afastado da disputa do segundo turno e ao nível do candidato ultraliberal (10%). A candidatura da ex-coordenadora do Bloco, Catarina Martins, surge em torno dos 5%, seguida pelas do PCP e do Livre. Assim, a direita portuguesa poderá consolidar a sua hegemonia em 2026, controlando o governo, a presidência e, pela primeira vez na história, uma maioria parlamentar superior a dois terços, capaz de aprovar reformas constitucionais sem o Partido Socialista ou qualquer outro partido de esquerda.
Um partido que se repensa em novas circunstâncias
Apesar de uma menor participação militante que reflete este ciclo de recuos, a Convenção do Bloco foi um momento de respiração e de encontro do partido com a sua pluralidade. Quatro moções políticas foram votadas e na Mesa Nacional eleita estarão presentes elementos da moção A (65 eleitos), S (8), H (4) e B (3). Para a moção A, o Bloco “deve ser um motor de convergências, ao mesmo tempo que reivindica o espaço político que só ele ocupa e a partir do qual pode crescer: fidelidade às classes exploradas e uma estratégia para expandir seus movimentos; um compromisso com o pluralismo e a convergência como fundamento da construção do partido socialista; internacionalismo contra todos os impérios e oligarcas”. José Manuel Pureza, 66 anos, professor universitário e ex-deputado, sucede a Mariana Mortágua como coordenadora nacional, que decidiu não se recandidatar. Nos últimos anos, Pureza foi o principal rosto da luta pelo direito à morte assistida e participou em iniciativas de diálogo entre marxistas e cristãos.
A par do diagnóstico político, a Convenção operou uma ampla renovação e rejuvenescimento dos órgãos de direção – Mesa Nacional e Comissão Política -, cuja composição inclui 50% de novos membros. O debate da Convenção foi também marcado pelos temas da organização partidária e pela necessidade de intensificar a regularidade, autonomia e participação na vida democrática do Bloco. O que decide a vida política é a criação de organismos de base e coletivos de trabalho militante, comunidades de reflexão e ação.
Cinco tópicos sobre a situação em Portugal
1. O governo do PSD e a maioria parlamentar PSD/Iniciativa Liberal/Chega executam uma agressão social em força, no trabalho, na imigração, na habitação. E o primeiro-ministro Luís Montenegro consegue a proeza de colocar o PS a normalizar o processo, fazendo do Orçamento do Estado um produto de bloco central. O caso é bizarro: Montenegro articula assim uma base parlamentar de 95% dos deputados. Assistimos à decomposição da política tradicional, o que não seria má notícia se esta decomposição não fosse liderada pela oligarquia: o centro é arrastado pela direita e ambos vão a reboque do Chega.
2. A debilidade da esquerda é o balanço da “geringonça”, os acordos entre o PS e o Bloco e o PCP assinados em 2015 e que vigoraram até 2019. Desse período, o que ficou inscrito na consciência popular não foram os reais avanços conseguidos, nem as razões do Bloco depois de 2019, o voto contra os orçamentos do PS, nem a crise orquestrada entre Costa e Marcelo para fabricar uma maioria absoluta. O que ficou gravado foi o governo PS a partir de 2019, um pós-Covid conduzido por governantes medíocres, que deixaram nas arcas do Estado o dinheiro que faltava na saúde, a política de habitação ou a condição do trabalho.
A imagem da esquerda, mesmo após a geringonça, permaneceu colada ao mau governo 2019-2022 e à maioria absoluta. Não tivemos força para evitar essa colagem. E isso não teria mudado, nem mudará, só com palavras. Mudará sempre que conseguirmos interpretar a revolta, ter iniciativa e novos protagonismos na luta. Sem isso, nada será fácil no futuro para nenhum partido da esquerda.
3. As dificuldades dos partidos não significam que seja impossível erguer lutas. A esquerda italiana está em cacos há duas décadas, mas fez uma greve geral de milhões pela Palestina. Aqui, estamos na véspera de outra greve geral, momento crítico para mudar o ambiente político. E, mesmo num ano tão mau como 2025, houve sinais muito importantes: a maior manifestação de trabalhadores imigrantes da última década, a entrada em cena da juventude negra das periferias de Lisboa, a ampliação da solidariedade com a Palestina nos dias da flotilha. Nestas lutas, a esquerda faz-se maior e quebra o isolamento, disputa os temas do debate público através da mobilização concreta. É aqui que também o Bloco respira.
4. Não são as dificuldades dos partidos que ditam a necessidade da convergência. O que hoje impõe a convergência é a necessidade de enfrentar o pântano: temos um governo aliado aos neofascistas e sustentado pelo PS. Nas lutas pelos serviços públicos e pela habitação, pelo trabalho e contra a fascistização da vida social, é necessário identificar as linhas onde fazer a frente. Pensemos então política de movimentos, encorajemos a presença dos militantes, abramos todos os canais de diálogo.
5. Façamos as contas que toda a gente já aprendeu a fazer: em veículos eleitorais separados, a esquerda oferece vereadores e deputados ao Chega e contribui para que o pântano transborde e eleve os neofascistas a primeira força política – tal como já sucede em vários países da Europa. O Bloco tem o seu espaço social, que vem da diferença da sua política e do seu programa, da sua visão do mundo e da sua cultura partidária. Tudo isso, bem sabemos, distingue-nos radicalmente de partidos como o Livre ou o PCP. Essas diferenças são tão importantes como a necessidade real de convergirmos nas lutas e de oferecermos ao povo uma alternativa eleitoral em torno do que há de comum à esquerda. Um pólo que impeça a redução da democracia aos jogos de poder entre Luís Montenegro e os seus dois parceiros, Chega e PS.