Maio de 68 marca o ano 1 da revolução sexual?

Estudos recentes desmistificam a ideia de que as mobilizações de 1968 sacudiram completamente os costumes sexuais de uma geração.

Anne Chemin 23 mar 2018, 15:22

“Gozar sem entraves”, “Quanto mais eu faço amor, mais eu tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais eu faço a revolução, mais eu tenho vontade de fazer amor”… Os grafites nos muros de Paris em Maio de 68 forjaram uma lenda: esse mês feliz marcaria o ano 1 da revolução sexual.

Um mito que Michelle Zancarini-Fournel desconstrói pacientemente: “É preciso distinguir as representações que foram impostas ao longo das décadas que seguiram 1968 e as práticas reais da época”, previne a historiadora que dirigiu, com Philippe Artières, “68. Une histoire collective (1962-1981)” [68. Uma história coletiva, sem edição em português].

Em 1968, houve certamente a interpelação de Daniel Cohn-Bendit ao ministro dos esportes do presidente francês Charles De Gaulle – “Eu li o seu ‘Livro branco sobre a juventude’, em 300 páginas não há nem sequer uma palavra sobre os problemas sexuais dos jovens” – e as reivindicações do Movimento de 22 de março sobre o acesso dos meninos à residência universitária das meninas de Nanterre. Mas isso foi quase tudo. “A questão da sexualidade interessava os estudantes de Sociologia de Nanterre antes de 1968, mas ela praticamente não foi abordada durante as assembleias gerais nas universidades”, sublinha Michelle Zancarini-Fournel. “E, no movimento social, se falava pouco ou praticamente nada sobre isso – salvo em alguns empreendimentos de mulheres”, completa.

As feministas nos pontos avançados

É sobretudo ao longo das décadas seguintes a Maio de 68 que o discurso sobre o corpo e a sexualidade, pouco a pouco, se liberta. As feministas estando nos postos avançados desse movimento que sacode com a moral, o pudor e a decência.

“Elas insistem sem cessar sobre o fato que seus corpos as pertencem”, conta Michelle Zancarini-Fournel: “É, aliás, o título de um livro testemunho escrito pelas mulheres de Boston e publicado, na França, em 1977: ‘Nosso corpo, nós mesmas’ [Albin Michel]. Esses movimentos lutam sobretudo a favor da contracepção e do aborto, mas, nos ‘grupos de consciência’, a questão da sexualidade também é abordada”

Na França, os movimentos feministas obtêm ganho de causa no terreno do direito: a contracepção é autorizada sem restrições, inclusive para as menores de idade, em 1974, e a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em 1975.

Mas as práticas amorosas e sexuais são muito mais lentas para se transformar. “Elas evoluem por capilaridade, na longa duração. Há certamente as grandes mudanças, mas, para repará-las, é preciso observar o comportamento dos casais durante duas ou três décadas, como fazem os sociólogos Michel Bozon e Nathalie Bajos. Não é uma cascata, é um curso d’água que flui vagorosamente”, sublinha Michelle Zancarini-Fournel

Cênarios igualitários

Para Michel Bozon, autor de “Pratique de l’amour” [Prática do amor, sem edição em português], esse lento movimento permitiu às mulheres aumentar “consideravelmente suas margens de manobra” no domínio da sexualidade, resume na edição francesa do ‘Le Monde diplomatique’ de fevereiro.

A partir dos anos 1970, a passividade feminina deixou de ser a norma, o repertório das práticas sexuais aumentou e cenários cada vez mais igualitários emergiram. Essa revolução se inscreve em uma paisagem nova, ele insiste: aumento do nível de instrução das mulheres, participação crescente no mercado de trabalho, modificação dos equilíbrios no interior da família.

As pesquisas permitem medir a amplitude dessas transformações. Desde os anos 1970, as carícias, a masturbação mútua e o sexo oral tiveram cada vez mais importância na França. Em 1970, dois terços dos franceses declaravam que sua última relação sexual tinha acontecido a partir da iniciativa do homem, enquanto que, nos anos 2000, quatro quintos deles diziam que haviam acontecido a partir da iniciativa dos dois parceiros.

“O aumento espetacular, entre os anos 1970 e os anos 2000, da satisfação que as mulheres exprimem sobre sua vida sexual está ligado à sua atitude mais ativa durante a interação sexual”, sublinha Michel Bozon.

“Disciplinas internas”

Podemos então falar de “revolução”? Michel Bozon questiona. “Eu sou reticente em qualificar de revolução as mudanças intervindas nas condutas a partir dos anos 1960”, estimava ele em 2002 na revista “Mouvements”. “Esse uso rotineiro da expressão ‘revolução sexual’ vem de uma visão da sexualidade que envelheceu. Não representamos mais, ao modo de Wilhelm Reich ou de Herbert Marcuse, os comportamentos sexuais como se fossem obstaculizados por restrições sociais que simplesmente precisam ser levantadas para permitir uma expressão livre das pulsões sexuais”.

Antes de revolução, Michel Bozon prefere falar da passagem de uma sexualidade construída pelos “controles e disciplinas externas aos indivíduos” a uma sexualidade que repousa sobre “disciplinas internas”. A autonomia, ele resume, prevaleceu sobre o prazer livre.

“Não se trata de uma libertação, mas de uma interiorização e de um aprofundamento das exigências sociais”, desenvolve Michel Bozon: “As mudanças devem, sem dúvida, serem consideradas menos como uma emancipação do que como uma individualização. Com a interiorização dos controles, o indivíduo deve estabelecer ele mesmo suas normas e sua coerência íntima, enquanto continua a ser julgado socialmente.”

Artigo originalmente publicado no jornal Le Monde. Tradução pela Revista Movimento.


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