Zuckerberg/Assange, espelho quebrado
Análise sobre a ida do presidente do Facebook ao Congresso estadunidense e a atual situação do ativista australiano.
Entre terça e quarta-feira, o bilionário Mark Zuckerberg, fundador e diretor executivo do Facebook, foi interrogado pelo Congresso americano durante 10 horas.
Julian Assange, o editor do WikiLeaks que tem dois livros publicados sobre vigilância e privacidade na Internet, não pôde opinar sobre o depoimento. Está preso na embaixada do Equador em Londres sem acesso a Internet, telefone e visitas desde o dia 27 de março.
Zuckerberg aceitou responder perguntas dos legisladores americanos depois de uma das maiores crises da história do Facebook. O escândalo da Cambridge Analytica e sua relação com a campanha presidencial vitoriosa de Trump fez com que as ações do Facebook despencassem nas últimas semanas e impulsionou o debate sobre ser preciso haver algum controle sobre os dados pessoais e as empresas que os coletam.
Privatização do espaço privado
O Facebook é usado por mais de 2,2 bilhões de pessoas ao redor do mundo; o WhatsApp, comprado por ele em 2014, por 1,5 bilhões; o Instagram, comprado por ele em 2012, por 800 milhões. Tais plataformas de comunicação têm grande importância na vida das pessoas. Entretanto, o Facebook não é enquadrado como um serviço de telecomunicações ou uma empresa de mídia. E ao se apresentar como empresa de tecnologia, fica livre de qualquer tipo de regulação.
Essa liberdade não é particular ao Facebook. No geral, as grandes corporações do Vale do Silício são autorizadas, pela sua estética inovadora e libertária, a guardarem seus bilhões de dólares em paraísos fiscais (como a Apple) ou a fazerem lobby pesado para entrar em cidades do mundo inteiro destruindo concorrentes e funcionando à margem da lei (como o Uber).
Para justificar essas ações, seus discursos repetem ad infinitum histórias de sucesso de pequenas empresas que foram fundadas em garagens e dormitórios de faculdades – tal narrativa foi a tônica do discurso de Mark Zuckerberg. Isso faz parecer que regular tais empresas torna-se também combater a inovação, a meritocracia e o sonho americano.
Se por um lado o Vale do Silício é o bastião da liberdade, por outro seu modelo de negócios atualmente é coletar e vender dados pessoais de bilhões de pessoas. Trata-se portanto do oposto do lema de WikiLeaks. No lugar de “transparência para os poderosos e privacidade para as pessoas comuns” temos liberdade para os poderosos e controle sobre as pessoas comuns.
O depoimento de Zuckerberg assumiu que existe em curso uma verdadeira “privatização do espaço privado”. A liberdade das empresas de comunicação de massas, na sua versão contemporânea, é a liberdade de coleta e cruzamento de dados privados da ampla maioria da população mundial.
A disputa pela informação é uma pesada guerra. Vale muito a informação recolhida da privacidade para turbinar os lucros das grandes empresas, chegando a novas modalidades de circulação “seletiva” da mercadoria, em escala de massas. No novo círculo do mercado de informação, a informação é mercadoria que faz valorizar mais mercadorias.
Liberdade para Assange
Do outro lado da guerra da informação encontra-se Julian Assange, confinado desde 2012 na pequena embaixada do Equador em Londres. O editor do WikiLeaks denunciou brutalidades nas guerras do Afeganistão e do Iraque, crimes diplomáticos e outros documentos de interesse público. Tal exercício de jornalismo fez da plataforma um importante ator da geopolítica.
Há pouco mais de duas semanas, o governo do Equador cortou o acesso de Assange à Internet, argumentando que ele violou sua promessa de se abster de comentar questões políticas. Cortou ainda seu telefone e não permite que receba visitas.
O governo equatoriano argumenta que os comentários de Assange poderiam comprometer as relações da nação latino-americana com outros países, especialmente na Europa. Sua ação foi tomada depois de uma série de tuítes de Assange em que ele denunciava a prisão do presidente catalão Carles Puigdemont na Alemanha.
Devemos nos somar aos intelectuais que lançaram uma carta aberta ao governo do Equador pedindo que reconectem o editor do WikiLeaks. “Fica claro agora que o caso de Julian Assange nunca foi somente uma questão jurídica, mas uma luta pela proteção dos direitos humanos básicos”, a carta diz. Ela foi assinada por figuras como Noam Chomsky e Slavoj Zizek, assim como pelo músico Brian Eno, o cineasta Oliver Stone, o ex-analista da CIA Ray McGovern, a atriz Pamela Anderson e o ex-ministro de finanças grego Yanis Varoufakis. Como diz a carta, “se o governo equatoriano não cessar sua ação indigna, ele também se tornará um agente de perseguição em vez da valente nação que defendeu a liberdade e a liberdade de expressão”.
Nada será como antes
A crise com o Facebook é um tema mundial e o depoimento de Mark Zuckerberg foi o principal fato político da semana. Isso coloca na ordem do dia a tarefa de construir uma agenda pela democratização das mídias e redes sociais. Isso significa resistir com Assange, mas avançar também no terreno da esquerda, do ponto de vista programático. As novas condições da comunicação colocam novas agendas e bandeiras de luta.
Combater a visão liberal dos grandes capitalistas e seus aparalhos ideológicos é uma necessidade que se renova. Precisamos assentar as bases para utilizar as ferramentas de transmissão de dados para uma maior transparência nos regimes democráticos, controle público e popular dos governantes e juízes. Uma ampliação dos direitos civis e das liberdades individuais, uma luta prolongada contra a vigilância e o controle de dados das grandes empresas.
O combate à indústria das notícias falsas é outra esfera da ação imediata. A proliferação de calúnias e mentiras no caso Marielle, para ficarmos num exemplo grave e próximo, foi derrotada com uma ampla mobilização da sociedade.
O central é que nada será como antes depois da ida de Mark Zuckerberg ao Capitólio. Nosso desafio e nossa luta se tornaram maiores e mais evidentes.
Artigo originalmente publicado no site do PSOL.