A falsa guerra às drogas: A quadrilha que lucra não está na periferia

A política de drogas, chamada de forma oportunista de “guerra às drogas, é um massacre histórico e social contra uma parcela da população.

Iago Gomes 23 nov 2017, 18:22

“Quadrilha”
(Lívia Natália)

Maria não amava João,
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.

(do livro Correntezas e outros estudos Marinhos, Ed. Ogum´s Toques, 2015.)

Setenta e um! Setenta e um a cada cem assassinados no Brasil são negros! Dados de pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na semana passada, demonstram aquilo que todo mundo vê diariamente estampado nas manchetes de jornais como matérias espetacularizadas por noticiários televisivos, nas denúncias feitas pelo movimento negro, mas, sobretudo, no dia a dia de quem mora nas periferias das grandes cidades ou nos pequenos municípios brasileiros: os corpos que mais tem tombado vítimas da violência, são corpos negros! Em plena insistência conservadora dos adeptos da “consciência humana” e do mito da democracia racial, sabemos quem esse país segrega, jogando no limbo dos piores postos de trabalho, na maior porcentagem de desempregados, encarcerados e vítimas da violência protagonizada por um Estado racista! Temos, sem dúvidas, consciência racial de que a política de drogas, chamada de forma oportunista de “guerra às drogas, é um massacre histórico e social contra nós e serve a um programa de extermínio de nosso povo, que não estampa somente as manchetes jornalísticas e as estatísticas, mas o futuro do povo negro que luta e resiste desde sempre.

Todas as justificativas iniciais de proibição de drogas partiram de um programa muito bem elaborado pelas forças brancas dominantes para dar continuidade ao plano de segregação e genocídio dos setores sociais que para eles iam contra a lógica política e cultural da ordem, que excluía o que não era a figura do eterno colonizador e nem, consequentemente, aquilo que servia ao domínio econômico e social, a não ser que para isso fosse necessária a consolidação de outros lugares para eles na parte de baixo da pirâmide, o que começou a ser consolidado após a abolição da escravidão no Brasil, por exemplo com o povo negro, mas que afetou, mais a frente na história, outros setores mais minoritários em outros países, como os hippies. A influência dos EUA na dominação mundial teve impacto direto sobre todas as políticas de drogas do mundo, não a toa o padrinho do título de “guerra às drogas” é o presidente Richard Nixon, um dos que pregaram a “tolerância zero” ao consumo e venda e que com isso impulsionou o surgimento de grandes cartéis na América Latina.

É impossível avançarmos no debate sem pesar a história do país em sua formação colonial e pós-colonial, e um ponto necessário de ser colocado é o aspecto territorial resultante da dominação econômica do Estado. A população negra recém-liberta por suas próprias mãos modificou planos de dominação das classes brancas dominantes e fez com que as placas tectónicas do país se movessem das senzalas e casas grandes para as periferias e centros, do trabalho escravo para os desempregados e sujeitos dos trabalhos mais precarizados, dos açoites para as balas “achadas”. O crescimento de áreas periféricas com péssimas estruturas e sem acesso a políticas públicas reais veio acompanhado da força de dominação que passou a refletir o estruturante. A proibição de venda e consumo de drogas surge com o aspecto territorial do racismo, elegem pequenos líderes que lucram uma parte minúscula da fatia, que não pode ser mantido a longo tempo no poder para não gerar riscos de maior dominação e que exercerá controle em todos os aspectos relacionais da comunidade, mas que esconde os demais donos das maiores partes da fatia. O problema é que, se por um lado essa dominação ainda é controlada pelo Estado, por outro pode gerar problemas como a bala perdida que atinge uma turista europeia, que não são vistos como um problema ao Estado quando corpos como de Amarildo tombam, quando casos como o do Cabula acontecem, quando exemplos como de Rafael Braga surgem, e tudo isso acontece várias vezes por dia. Aliás, é colocado como um problema, mas de segurança pública!

O que é segurança pública? Para quem é a segurança pública? Em todo debate que ela é trazida, sempre a mesma perspectiva reacende: mais polícia! A questão é que a polícia não evita que o indivíduo consuma ou continue consumindo, nem que venda. Nem prender evita, afinal o judiciário que pune e a polícia que mata e encarcera são elementos de um mesmo modelo de segurança pública que foi criado exatamente para fazer o que faz: não dar conta do problema da política de drogas. Porque não querem que dê! Não querem que pessoas negras parem de morrer a cada quinze minutos, porque as estatísticas não atingem quem tá lá em cima lucrando e com malas de dinheiro em apartamentos duplex. Se temos portanto um modelo de segurança que é falido, é esperado que o tratamento dado a questão continue sendo por essa via, afinal dentro desse modelo temos um judiciário que não pune senadores donos de helicópteros de cocaína, mas que penaliza vários Rafaéis Bragas, e temos a polícia que defende bandidos em Assembleias Legislativas, como na do Rio de Janeiro, mas arrasta várias Claúdias e tortura Amarildos por aí.

Se então não é assunto de Segurança Pública, seria do que? Muito se tem avançado em debates e conquistas da legalização da maconha para vias de tratamentos a diversas doenças. Mas falar do debate de drogas na perspectiva da saúde pública não é apenas isso. É, primeiro, pensar numa política de redução de danos e que considere um tratamento humanizado. Pra isso é preciso desafiar a cultura manicomial e de internações compulsórias, não seguindo exemplos de prefeitos como Doria e ACM Neto que jogam água em moradores de rua e pessoas viciadas em craque ou colocam guardas-municipais para agredi-los. A legalização como assunto de saúde pública passa por reconhecermos a importância do SUS mas concordarmos que é preciso maior investimento e melhorias e que curas e tratamentos de doenças não podem ter maior importância no debate de drogas que a crônica doença do genocídio da juventude negra. Não podemos deixar nas mãos de instituições que elegem uma bancada evangélica que vota a favor da redução da maioridade penal e pela retirada de muitos direitos sociais, o discurso sobre o tema que também dá lucros a figuras grotescas como o deputado Isidoro na Bahia.

Os efeitos da política proibicionista são muitos e em todos os países colonizados o alvo predileto sempre foi os de baixo da linha racial e social. Por isso, que no Brasil, seja na briga de facções ou na mira do revólver da polícia sempre tem um corpo negro. O consumo e venda de drogas são justificativas suficientes para sermos a terceira maior população carcerária do mundo? Para sermos o país com a polícia que mais mata e a polícia que mais morre? Por termos tantos jovens negros morrendo? Para os de cima são justificativas, para nós ela não pode ser e nem nunca pode ter sido, porque somos nós os únicos afetados.

É preciso pensar soluções para a curto e longo prazo!

– Ampliar as discussões em torno da Política de Drogas nas associações de bairro, escolas, etc., sem moralismos e oportunismos – É preciso seguir avançando e acumulando;

– Aprofundar o debate dentro do SUS, com os sindicatos e profissionais e nos cursos de saúde nas universidades – Se precisamos tratar o tema como assunto de saúde pública, precisa ser um assunto tratado e ampliado dentro da própria área;

– Formar uma assistência social para lidar com o debate e os impactos da política de drogas nas comunidades periféricas, não tratando a questão como assunto de polícia! – Pessoas capacitadas e compreendendo os aspectos da política de drogas podem entrar em regiões extremamente negligenciadas pelo Estado;

– Apoio às famílias com vítimas de homicídios, possibilitando acesso a cooperativas, cursos profissionalizantes e bolsas de financiamentos e incentivos! – Já existem iniciativas parecidas protagonizadas por ações dos Direitos Humanos, inclusive não atendendo somente civis, mas também familiares de policiais atingidos. É preciso ampliar as iniciativas;

– Fim da restrição de contratação de profissionais com antecedentes criminais! – Muitos ex-presos e ex-presas acabam por não conseguir sair da linha criminal porque tem negado vagas de empregos por conta do histórico, o que gera um efeito cíclico;

– Seguir construindo um projeto de legalização que seja racializado e portanto anti-sistêmico e amplo! – Um projeto que não seja igual o do Uruguai e que vá além da liberação do consumo e do uso medicinal.


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Pedro Micussi