“Precisamos construir algo novo a partir da negação deste regime apodrecido”

Em entrevista à edição especial da Revista Movimento, Luciana Genro fala sobre o atual cenário político brasileiro e as tarefas da esquerda neste contexto.

Luciana Genro 3 dez 2017, 21:17

Revista Movimento – Luciana, apesar de inúmeros escândalos e uma tremenda impopularidade, Temer segue governando. Por que ele se mantém diante de uma crise política contínua?

Luciana Genro – O governo Temer é um governo odiado pelo povo e sustentado pelos mercados, pela elite econômica e pelo apoio de um Congresso corrupto. Os escândalos são incontáveis e as pesquisas mostram que a popularidade de Temer não passa dos 3%. Ainda assim não há uma mobilização massiva nas ruas por sua queda, o que não significa que a crise política não se intensifique cada vez mais. O povo está anestesiado diante de tanta roubalheira, achando que nada vai mudar. Há um sentimento generalizado de descrença na política e nos políticos. Afinal, a população vai às ruas para derrubar Michel Temer e colocar quem no lugar? Rodrigo Maia, deixando os destinos do país nas mãos de uma eleição indireta conduzida por um Congresso corrupto? Por isso a luta por eleições gerais, que defendi desde que Eduardo Cunha e Temer se uniram no golpe palaciano, é a única que pode devolver ao povo a soberania para decidir o futuro político do país. Infelizmente naquela época a maioria das forças da esquerda optou por se agarrar a uma disputa que já se anunciava perdida no Congresso e só passou a encampar a defesa de novas eleições quando já não havia mais essa possibilidade.

Temer ainda não caiu porque a população não vê alternativas, está sem referências. No passado, o PT foi uma alternativa, durante um bom tempo seus governos foram apoiados pelo povo. Nós não apoiávamos, pois sabíamos que o partido havia se convertido num defensor do sistema, num agente para gerir os interesses do capitalismo. Sabíamos, e por isso fundamos o PSOL, que quando se governa sem mudar o sistema, é o sistema que acaba mudando o partido e seus dirigentes.

Os 13 anos de governos do PT geraram uma confusão muito grande no povo, que viu o partido se aliando com o que existe de pior na política brasileira. Que viu Lula apoiar Sarney para a presidência do Senado e escolher Henrique Meirelles para o Banco Central. O mesmo Meirelles que hoje é ministro da Fazenda de Temer. É uma dança das cadeiras para agradar aos mercados e ao capital financeiro. O povo viu Dilma trair seu programa e iniciar um ajuste fiscal com o banqueiro Joaquim Levy, retirando direitos trabalhistas relativos ao seguro-desemprego. Depois Temer intensificou com uma força brutal este programa que já vinha sendo iniciado pelo PT.

A corrupção foi a pá de cal que faltava para a desilusão geral da população com a política. Afinal viram o “partido da ética”, como o PT se apresentava nos anos 1980, envolvido em incontáveis escândalos, com seus dirigentes presos. Dilma caiu porque já não tinha forças para aplicar um duro ajuste contra o povo e barrar a Lava Jato. Por isso assumiu Temer, seu programa antipovo e a estratégia de “estancar a sangria” vocalizada por Jucá. Mesmo impopular, Temer não cai porque ainda não existe uma alternativa capaz de oferecer algo novo. O PSOL ainda não tem essa força, mas deve lutar para ter. Deve apostar que o povo construa suas próprias organizações, que lute e forje novos líderes. Precisamos de uma força nova, do povo.

O VI Congresso do PSOL que ocorre nesse final de semana, 2 e 3 de dezembro, tem alguns desafios pela frente? Quais são os principais desafios?

O principal desafio do nosso Congresso é a afirmação do perfil de partido que queremos construir. Nós apostamos em um PSOL inserido nas lutas e nos movimentos de base. Um PSOL cuja atuação parlamentar seja um reflexo desta inserção, cujos mandatos sejam ferramentas de luta da classe trabalhadora, das mulheres, dos negros e negras e da população LGBT.

As eleições de 2018 serão um momento de debate sobre os rumos do país e as saídas para a crise. As candidaturas do sistema, sejam elas da direita ou da velha esquerda, estão colocadas e pautando o debate político no país. Os falsos outsiders também colocam a cabeça para fora e ensaiam movimentos eleitoreiros, de olho na legítima insatisfação do povo com a política tradicional. Neste contexto cabe ao PSOL apresentar um programa e uma candidatura que denuncie este sistema apodrecido, faça um duro contraponto com a direita, desmascare a velha esquerda e enfrente velhas raposas que tentarão se apresentar como novidade apolítica.
Qual deve ser a relação do PSOL com os movimentos sociais?

O PSOL tem militantes em inúmeros movimentos sociais, construindo cotidianamente as lutas da classe trabalhadora e as lutas setoriais por mais direitos em diversas frentes. O deputado Pedro Ruas costuma dizer que “onde há luta, lá está o PSOL”. Nosso lado é o lado dos movimentos sociais, portanto devemos ter uma relação de proximidade, de apoio e de acolhimento, sempre respeitando a autonomia e a construção específica de cada movimento. Não podemos repetir o erro do PT, que se apropriou de muitos movimentos e acabou gerando uma paralisia na potência social e reivindicativa que eles representavam, estagnando processos fundamentais de luta. O PSOL tem que jogar a força de seus mandatos e de seus organismos partidários no apoio aos movimentos sociais, incorporando suas demandas e estabelecendo um processo vivo de unidade e troca com todas as organizações que estiverem na resistência contra a retirada de direitos.

O MTST é um exemplo específico de um movimento social que deve ser apoiado pelo PSOL, com o qual temos uma relação bastante próxima e que aposta no método da ação direta como forma de mobilização por moradia digna. A liderança de Guilherme Boulos demonstra a linha acertada do MTST, que vem pautando o debate político no país com ocupações multitudinárias de vazios urbanos na luta por moradia, mas também na luta contra os ataques do governo Temer, contra a retirada de direitos e contra este sistema apodrecido, por um outro modelo que atenda às necessidades da maioria do povo.

Qual o caminho para avançar – num cenário onde Lula segue a frente nas pesquisas? Como a esquerda socialista deve se relacionar com a influência eleitoral do PT?

A liderança de Lula nas pesquisas reflete a insatisfação do povo com o governo Temer e a lembrança das políticas sociais implementadas pelas gestões petistas – especialmente pelos governos de Lula, que ocorreram em um momento sem maiores turbulências na economia mundial. No instante em que a crise econômica se intensificou, os governos do PT já começaram a ensaiar a aplicação de um ajuste fiscal contra os trabalhadores. Dilma e seu ministro da Fazenda, o banqueiro Joaquim Levy, são a prova disso.

A esquerda socialista deve apresentar uma alternativa ao país. Não podemos ficar escondidos sob a sombra do lulismo, alimentando ilusões em relação a uma candidatura que tem o direito de se expressar, sim, mas cujas limitações já estão mais do que colocadas. Lula representa a conciliação de classes, o alinhamento com as empreiteiras corruptas e uma política de aliança com os partidos da ordem. Não é à toa que ele e Dilma já vêm falando em “perdoar” o PMDB e que a narrativa do golpe está sendo desidratada pela direção do PT. Eles podem repetir em 2018 as mesmas práticas que levaram o país à situação em que nos encontramos hoje.

O PSOL precisa dialogar com a base petista, que possui segmentos bastante descontentes com a cúpula partidária e ainda alimenta ilusões de uma guinada à esquerda que o PT não tem mais condições de operar. Precisamos mostrar que todos aqueles que buscam um programa de transformações reais para o país encontram no PSOL uma guarida para travar o bom combate que a cúpula do PT lamentavelmente abandonou.

Como explicar o “fenomeno Bolsonaro”?

Bolsonaro é um político tradicional que tenta se apresentar como um outsider, como uma novidade na política. Trata-se de um sujeito que é deputado federal há 26 anos. É um político profissional que construiu um clã familiar com seus filhos parlamentares. Bolsonaro cresce em grande medida devido à situação dramática da segurança pública no Brasil. É apelando ao medo das pessoas e à falsa noção de que medidas duras trarão mais segurança que ele conquista apoio. A candidatura presidencial do PSOL precisa promover um duro enfrentamento ao pensamento fascista representado por Bolsonaro nas eleições, apresentando um programa para a segurança pública que propicie o combate à criminalidade, assegure a garantia de direitos, valorize os trabalhadores e defenda um novo modelo de segurança para o país.
O PSOL é reconhecido nacionalmente pela combatividade de suas candidaturas e pela presença marcante nos debates. Não há dúvida de que nosso partido é o mais preparado para enfrentar Bolsonaro e a extrema-direita na campanha presidencial.

Quais os desafios programáticos da esquerda, como forma de superar o chamado “programa democrático e popular”?

Os desafios são muitos. Precisamos apresentar um programa que coloque abaixo este sistema apodrecido e apresente medidas concretas de transição a um outro modelo, com democracia real, com a economia funcionando em benefício da maioria do povo e com o combate central às desigualdades. A primeira questão é que nenhum programa desse tipo poderá ser implementado apostando-se apenas na lógica eleitoral. Será com organização do povo e mobilização que se poderá enfrentar as adversidades que virão num contexto de mudanças reais.

O ponto central deste programa deve ser a política econômica. Não é possível que o Brasil siga utilizando os recursos do esforço produtivo do país para pagar juros de uma dívida que sequer passou por auditoria. É fundamental também a anulação das reformas antipopulares e da lei das terceirizações. Isso inclui, evidentemente, o fim do teto de gastos – que existe apenas para pagar os juros de uma verdadeira caixa preta chamada de dívida pública.

O sistema tributário é uma das raízes da desigualdade social no Brasil. Esta injustiça começará a ser corrigida com a taxação das grandes fortunas. Um imposto de 5% sobre fortunas acima de R$ 50 milhões geraria uma arrecadação de R$ 90 bilhões ao país. Um imposto maior sobre a herança também é uma alternativa neste caminho.

O Brasil precisa de uma Assembleia Constituinte para refundar suas instituições e caminhar no sentido da construção de uma democracia real, onde o povo tenha poder de decisão e não seja apenas chamado a votar em eleições. O combate ao machismo, ao racismo e à LGBTfobia é central. Além de tudo isso, é preciso seguir um duro combate contra a corrupção, garantindo independência de atuação aos órgãos de controle e apoiando as investigações como a Lava Jato.

O MES tem tido uma atuação parlamentar importante nas cidades (falar dos mandatos do MES, Samia, Sandro, David, os do Rio Grande do Sul). Comente sobre algumas inciativas.

Os mandatos do MES são uma ferramenta de luta da classe trabalhadora e uma expressão de um PSOL combativo, conectado com os processos de mobilização do povo e com as reivindicações democráticas por direitos. Sâmia Bomfim já se consolida em São Paulo como a principal referência de oposição à gestão privatista de João Doria. O mandato da Sâmia fortaleceu muitas lutas na Câmara e ganhou destaque com o enfrentamento ao absurdo projeto da ração humana. Graças à pressão das ruas e das redes, impulsionada pela liderança da Sâmia, foi possível coletar mais de 60 mil assinaturas por uma CPI da Ração Humana e o prefeito teve que recuar nesta iniciativa obscura.

No Rio de Janeiro, o mandato do David Miranda tem a cara da juventude e faz um enfrentamento forte ao governo reacionário do Marcelo Crivella, combatendo o fundamentalismo e lutando pelos direitos da população LGBT. O apoio e a realização das paradas LGBTs de Copacabana e Madureira são expressões da força desta luta, mesmo com uma prefeitura conservadora atuando contra.

No Rio Grande do Sul, o mandato do deputado estadual Pedro Ruas é uma fortaleza na defesa dos servidores públicos contra os projetos de retirada de direitos do governo Sartori e está na linha de frente da oposição aos ataques do PMDB. É um dos deputados que mais apresentou iniciativas na Assembleia Legislativa. Uma delas está perto de ser aprovada: a extinção do Tribunal de Justiça Militar, um órgão anacrônico, que só existe em três estados da federação, cujos integrantes são escolhidos pelo governo para o cargo de juiz e ganham status de desembargadores, sem sequer ter prestado concurso público, garantido uma carreira vitalícia.

Em Porto Alegre, a bancada de vereadores atua unida e tem a parlamentar mais votada da cidade, a Fernanda Melchionna. O mandato da Fernanda, líder da oposição na Câmara, é uma referência na luta das mulheres e na pauta cultural, com projetos de incentivo à leitura, apoio à arte de rua e combate à violência machista no transporte público, além de iniciativas que garantem cota para mulheres motoristas nos táxis e em aplicativos de transporte individual.

Em seu primeiro ano como vereador de Porto Alegre, Roberto Robaina é a expressão mais acabada da unidade entre teoria política e prática militante. Ele tem uma qualificação política excepcional, anos de experiência como dirigente político. Seu mandato é uma ferramenta de luta dos trabalhadores contra o governo Marchezan. A Frente Parlamentar em Defesa da Carris é um exemplo de que um mandato pode articular a mobilização da categoria contra a privatização da empresa de ônibus mais antiga da cidade, que presta um serviço com qualidade superior aos consórcios privados e está na mira da prefeitura.

Já o Prof. Alex Fraga, que assumiu na metade da legislatura passada, já está consolidado como um guerreiro pela educação pública e de qualidade em Porto Alegre. Professor concursado do município, tem vinculação direta com os trabalhadores e apoia as mobilizações na categoria. Seu mandato construiu um importante trabalho de luta por melhores condições nas escolas, com a Frente Parlamentar Contra a Violência nas Escolas, pautando esse debate e apresentando sugestões ao governo.

Em Pelotas, a vereadora Fernanda Miranda expressa o forte trabalho construído pelo PSOL há muitos anos cidade e enfrenta os projetos reacionários da prefeitura do PSDB. O mandato da Fernanda é uma referência na luta das mulheres na cidade e a garantia de uma voz firme na fiscalização do poder público. Tanto que conseguiu aprovar um projeto que determina que as empresas de transporte público sejam transparentes em relação a seus custos e à composição tarifária. E em Viamão o vereador Guto Lopes encarna com muita força a luta em defesa dos servidores públicos e de uma educação sem mordaça.

Em Natal, o vereador Sandro Pimentel faz um importante trabalho ao lado da classe trabalhadora e dos moradores das periferias, atuando em defesa dos servidores públicos, dos carroceiros, dos animais, na fiscalização da licitação do transporte público e muitas outras frentes. Um importante projeto aprovado por Sandro assegurou um desconto maior no IPTU pago pelos moradores dos bairros periféricos de Natal, relativo a imóveis no valor de até R$ 87 mil.

Este breve relato de algumas iniciativas dos nossos mandatos já dá a dimensão da importância de construir um PSOL combativo, cujos espaços no Parlamento não sejam instâncias burocráticas e estejam a serviço das lutas do povo.

Como unir as pautas democráticas – como a luta das mulheres, LGBTs, negras e negros- que vem ganhando força- com as pautas gerais da política como a luta contra a corrupção e a luta por um programa econômico alternativo?

Este é um desafio central para a esquerda. Não há dúvidas no Brasil que quem está nas lutas por direitos às mulheres, à população LGBT e aos negros e negras são as forças de esquerda, seus coletivos, partidos e organizações. Ao mesmo tempo, nós do PSOL e do MES também estamos mobilizados pela construção de um outro modelo econômico e pela derrubada deste regime apodrecido e corrupto. Conectar todas as pontas destes processos de luta é um desafio que só pode ser superado pela militância diária, pelo contato direto com a população e pela formulação política consequente. O dia 8 de março, por exemplo, expressou um perfil combativo e classista na luta pelos direitos das mulheres. A Parada Livre de Porto Alegre reúne 30 mil pessoas todos os anos, com forte presença dos LGBTs da periferia e da Região Metropolitana. Recentemente realizamos em Porto Alegre o Festival Zumbi dos Palmares, que reuniu milhares de pessoas através da manifestação artística do rap. A cultura da periferia se expressou com força no centro e contou com todo nosso apoio. É preciso estar presente nos processos de massas para ganhar o povo e apresentar nossa política de defesa de uma democracia real, do combate à corrupção e aos privilégios e de uma economia que funcione em benefício dos 99% da população.

Fale um pouco sobre as iniciativas que você como liderança política- via Emancipa e PSOL- vem desenvolvendo?

Um dos meus maiores orgulhos foi ter fundado o Emancipa em 2011, uma ONG de Educação Popular que realiza um belo trabalho e inspira outros projetos em nível estadual e nacional. Somos parte da Rede Emancipa, que há dez anos é parte da luta por uma educação popular e qualificada. Em Porto Alegre mais de 1500 jovens já foram alunos do nosso cursinho pré-vestibular e pré-ENEM e ajudamos mais de 500 estudantes a ingressarem na universidade. Este ano construímos a Emancipa Mulher, um curso gratuito de formação feminista e resistência antirracista exclusivo para mulheres. Mais de 100 mulheres participaram de cerca de 200 horas de atividades. Também inauguramos a Casa Emancipa Restinga, um espaço aberto à comunidade em um dos bairros mais carentes de Porto Alegre, onde são desenvolvidas atividades culturais e esportivas, além do cursinho pré-universitário.

Como fundadora e dirigente do PSOL, estou jogada na luta por um partido que atue na construção de um terceiro campo na política, sem estar alinhado ao lulismo e combatendo duramente a direita. Precisamos derrotar o lulismo e superar o PT. Derrotar a ideia de que é possível governar para o povo e realizar transformações com conciliação de classes. E superar uma experiência política que já não é capaz de oferecer nada de novo à população, apenas um retorno ao passado. Precisamos construir algo novo a partir da negação deste regime apodrecido. Uma alternativa que resgate o encanto das pessoas com a política, que valorize a combatividade da juventude e que esteja sintonizada com o anseio do povo por mudanças, por democracia real e por um combate sem tréguas à corrupção. Sigo nesta caminhada.


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Pedro Micussi