”O rosto não nos pertence mais: ele é propriedade de plataformas capitalistas”

Crítica trata da função do retrato na modernidade e sua hiperexposição, através das selfies, em tempos de redes sociais.

Marion Zilio 23 jul 2018, 09:14

Curadora, teórica e crítica de arte, Marion Zilio é a autora de “Faceworld, le visage au XXIe siècle” [Faceworld, o rosto no século XXI] e trata das fontes do narcisismo contemporâneo cuja a selfie é o paroxismo.

Há cada vez mais adolescentes que possuem uma conta paralela no Instagram em que eles se “soltam” mais. Isso é para se liberar de uma tirania da imagem?

A geração Y, dos nascidos entre 1984 e 1995, viveram a transição do antes e do depois-Internet. A geração Z, dos nascidos no ambiente dos anos 2000, vivem a difusão contínua e quase cotidiana de sua intimidade nas redes, muitas vezes em seu próprio detrimento, quando seus pais postam imagens de seus filhos em suas contas que são visíveis para todo mundo.

Sua vida é objeto de uma documentação permanente, da qual eles não são proprietários. Eu acho que os adolescentes são duplos: eles têm uma postura que varia de presa a predador, mas também de intensa otimização de seu capital visibilidade e vulnerabilidade que advém dessa exposição excessiva do perfil. Essa cisão pode se materializar através de duas contas Instagram paralelas que, para mim, não são antinômicas, mas se completam. A verdade passa por essas duas estratégias.

Como para os gregos, para quem a máscara não mascarava, mas os revelava ao mundo, os adolescentes usam passarelas que os permitem esculpir seus personagens. Eles se tornam mais vivos através dessa interface que os constitui no cotidiano. É preciso não esquecer que a adolescência é um período da vida em que estamos em transição: o rosto muda e é preciso se reapropriar de uma imagem do futuro – o que eles fazem através de selfies postadas nas redes sociais e o reclame pelo reconhecimento e pela estima de si por meio da validação de um “like”.

Qual é o significado da selfie?

Em primeiro lugar, é preciso se deter sobre o próprio rosto, que é, para mim, uma “invenção” recente. Com a invenção da fotografia, o rosto do povo “apareceu”. Antes, apenas uma certa elite tinha acesso ao seu próprio retrato. A partir de então, cada indivíduo pôde ter uma foto de si em seu bolso e entrar em uma economia de fluxo, de troca, de venda e de manipulação.

A selfie nasceu no começo dos anos 2010, quando a Apple implementou em seu iPhone uma função espelho e a possibilidade de difundir imagens em tempo real pelas redes sociais. O rosto foi, assim, “aumentado”, graças às hashtags, aos comentários e aos “likes” agenciados por interfaces do Instagram. Como o rosto, a selfie é uma interface entre o eu e o outro, o íntimo e o exterior, o de dentro e o de fora.

Em seu livro, você utiliza o termo “selfie-porn”, o que você quer dizer com isso?

É preciso entender o “selfie-porn” no sentido em que falamos de “food-porn”. As selfies são, por definição, inscritas em uma lógica de transbordamento, de “obscenidade” do visível, como escrevia Jean Baudrillard [1929-2007]. Elas são com efeito hiperexpostas, hipersexualizadas, mediatizadas excessivamente e respondem a um duplo constrangimento: dos rumores e de um voyeurismo levado ao extremo. É preciso lembrar que estes últimos estão ancorados em um complexo visual do qual é preciso pensar a partir da economia da atenção de hoje.

Para você, a selfie seria um ready-made contemporâneo?

Eu utilizo essa expressão em meu livro ao comentar a série “New Portraits”, do artista Richard Prince, que expôs e vendeu selfies “roubadas” das redes sociais. Duchamp havia exposto um objeto manufaturado e trivial, na ocasião um mictório, e o elevou ao nível de uma obra de arte.

Realizando uma simples captura de selfies postadas no Instagram, Prince exprime o fato de que, hoje, o rosto (as selfies em particular) se tornou ao mesmo tempo uma banalidade e um produto padronizado, mas também um conteúdo que nós legamos gratuitamente no Instagram e no Facebook. Mais que se comover pelo roubo e a venda de uma selfie sobre tela, é importante considerar que o rosto não nos pertence mais: ele é propriedade de plataformas capitalistas.

Você evoca a “facebookização” do mundo. O que ela implica?

Há uma década, a rede social banaliza e introduz o rosto em um sistema de arquivamento cotidiano, que transforma a memória que nós temos de nosso rosto, mas também a sua natureza. Com efeito, não se trata mais de um “retrato”, único e privativo, que cristaliza uma lembrança, mas de “rostos” que se tornaram imagens, fluxo, mercadorias, suportes de projeções fantasmagóricas, econômicas ou técnicas.

A rede social que, lembremos, é uma empresa, se tornou a metáfora de um novo destino dos rostos que se editam e se entregam à publicidade e à exibição de sua intimidade.

A selfie, nascida no início dos anos 2010, parece perder velocidade, e alguns já falam da era “pós-selfie”. O que você pensa sobre isso?

O rosto sempre foi objeto de um processo de aparição e desaparecimento, para então melhor reaparecer. Hoje, a mania da selfie está perdendo força. Kim Kardashian recentemente declarou querer parar de fazê-la. Isso marca uma mudança, uma nova inscrição da visibilidade da estrela no interior de interfaces como o Istagram. Mas Kim Kardashian não desaparecerá. Mesmo quando ela estiver em uma lógica de anonimato ela seguirá ditando novas normas.

Entrevista realizada por Séverine Pierron para o Le Monde. Tradução de Pedro Micussi.


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