Entrevista mostra Lula com a estratégia de sempre

Roberto Robaina, fundador do PSOL e dirigente do MES, analisa a recente entrevista do ex-presidente Lula.

Roberto Robaina 28 abr 2019, 16:30

A entrevista de Lula mostra que a liderança histórica do PT segue afiada. Sua enorme inteligência, reconhecida quase que por todo mundo que conhece algo de política – exceto pela estupidez daqueles que, desde o início de seu mandato presidencial, escandalizavam-se com seus erros de português e sua falta de diploma universitário e que, anos depois, se converteram nos primeiros apoiadores do atual capitão presidente – foi a grande marca das quase duas horas de conversa com Mônica Bergamo e Florestan Fernandes Junior. Aliás, chamou a atenção, por óbvio, o contraste entre a inteligência e a capacidade de comunicação de Lula e a incapacidade de Bolsonaro. Este, trancado com as palavras, sempre nervoso para expor os planos centrais de seu governo na economia (cujo conteúdo é ditado pelos banqueiros e por Guedes), fica apenas à vontade, ainda que tosco, para proferir suas posições autoritárias e reacionárias. Lula, por sua vez, domina as palavras e os gestos com a fluidez e graça.

A conversa de Lula certamente será fartamente utilizada pelo PT, e a mídia burguesa dominante certamente tratará de ocultar. Não é para menos. Como iriam mostrar ao povo a argumentação de Lula desmontando a reforma da previdência e o projeto antipopular em curso no país? Afirmando que o plano de ajuste neoliberal serve apenas para enriquecer os mais ricos!? Nada surpreendente então o boicote de meios de comunicação que trabalharam e manipularam sem disfarce para garantir o impeachment de Dilma, em seguida a prisão de Lula e ainda a proibição de sua candidatura mesmo na prisão. Como o mesmo Lula disse, o impeachment, convertido em golpe parlamentar, não teria sido completo sem sua interdição. E, de fato, talvez Bolsonaro não vencesse. Digo talvez porque as eleições seriam outras, ainda que o movimento de extrema direita, expresso na forte ascensão eleitoral de Bolsonaro, pudesse também ser forte o bastante para ganhar de Lula. Chama a atenção, por sinal, que Lula fugiu dessa pergunta e, confrontado novamente com ela, novamente deixou de dar a resposta: por que a extrema direita cresceu tanto na esteira dos governos petistas? Apesar de a entrevista revelar que Lula segue em forma e afiado, essa foi apenas uma das questões não aprofundadas.

Só que não aprofundar alguns assuntos, por livre escolha, sempre foi uma marca de Lula, parte de sua sagacidade. Que o PT utilize a entrevista será lógico. O partido é o partido da chamada esquerda que tem a liderança nacional mais capaz, de longe. É claro que o PT se enfraqueceu muito e jamais voltará a ter a força que teve. Pode ser no máximo a sombra do que foi no passado. A força de Bolsonaro é precisamente o fato de que o PT tem como centro a defesa de um passado que não mais pode retornar. Não há chances de um movimento de massas progressista se formar defendendo a volta na roda da história. A esperança mobiliza milhões quando é por um lugar ainda não alcançado. O projeto do PT foi realizado. O impeachment impediu que a experiência da classe trabalhadora fosse completada com o PT, permitindo que o partido tenha se resignificado para uma parcela da vanguarda social e política do país, mas a experiência foi suficiente para impossibilitar o PT de ser a alternativa para a crise nacional. A ausência de alternativa é uma marca da política atual. Sua marca central. Refiro-me, sobretudo, a alternativas de esquerda, já que os projetos da burguesia são projetos de crise ou, no máximo, de solução autoritária para enfrentar a crise caso não consigam a hegemonia e o consenso popular para levar adiante seus projetos. O bolsonarismo foi a expressão caricata e antecipada, preventiva dessa possibilidade abertamente autoritária; Mourão a expressão “sensata” – sensatez no caso porque não explicita esta possibilidade entre seu atual leque de opções discursivas. Mas na esquerda Lula segue sendo a principal liderança e o PT o principal partido da oposição, o que é um trunfo do próprio bolsonarismo que, por sua vez, com sua estupidez e despreparo, é também explicação para que o PT consiga se manter e até se fortalecer novamente, ainda que bem menos do que antes. Lula, comparado com Bolsonaro, converte-se não apenas numa liderança brilhante e carismática – o que sempre foi – mas na encarnação de uma liderança universal qualquer.

Na entrevista, o próprio Lula faz a avaliação das forças de esquerda e seus líderes, identificando alguns e escolhendo os que prefere. Cita a inteligência de Ciro e faz a crítica de sempre, elogia Flávio Dino, do PC doB, e não cita ninguém do PT, o que deixa claro que, no PT, a liderança é ele mesmo. Nada mais óbvio. Apesar disso, a jornalista insistiu e perguntou por Haddad. Apenas veio aí o elogio e a referência ao ex-candidato. Mas não é porque Lula não goste de Haddad. É que Lula quer ele mesmo seguir liderando e dando as cartas. E é o que está fazendo. Cabe às forças políticas de esquerda definirem se querem seguir sua linha e dar a ele o papel de estrategista-chefe. Este tem sido um dos debates no PSOL. No partido, todos defendem que Lula seja libertado e criticam que sua prisao teve motivação politica. Mas há os que consideram que Lula é inocente e os que não lhe concedem este atestado. Na entrevista, Lula não deixou de mencionar Boulos. É seu preferido no PSOL porque representa a ala que lhe apoia ativamente, ao contrário da contestação a sua liderança política que marcou o PSOL desde sua fundação, em 2004, antes do mensalão e da Lava Jato. Depois dos escândalos, novas levas de militantes e parlamentares aderiram ao PSOL, mas a origem do partido não teve relação com a queda de popularidade da liderança petista. Lula tratou o ex-candidato do PSOL e líder do MTST como tem tratado sempre: um menino que promete. Quando escuto Lula dizer isso sempre lembro de sua frase de que, na juventude, todo mundo deve ser de esquerda e pode ser radical e depois amadurece e se torna conciliador.

Como Boulos segue se espelhando muito na liderança de Lula, o ex-presidente segue posando de conselheiro. E aqui bate o ponto da entrevista para uma estratégia que Lula não esconde: sua insistência de dobrar a aposta na colaboração de classes. É claro que Lula está numa situação difícil e, na ausência de mobilizações pela sua liberdade (tais mobilizações não tiveram e não terão força), sua sorte está nos acertos com a classe dominante, que controla o Congresso, a mídia e o Judiciário. E, claro, as Forças Armadas. Por isso, inclusive o PT foi tão enfático em condenar a prisão de Temer. É a mesma razão pela qual lamentou o destino de Sérgio Cabral, com o qual o PT fez parceria, juntos prometendo a redenção nacional com a Copa e a Olimpíada. A continuidade das prisões de políticos em razão de escândalos de corrupção atrapalha os planos pela antecipação da liberdade de Lula ou, agora, a concessão de sua prisão domiciliar. Assim se enredou num nó sem possibilidade de desatar o partido que, nos anos 90, teve como eixo o combate à corrupção.

Mas, para além de suas táticas de diálogo, a estratégia de Lula segue sendo a colaboração de classes. Também neste caso não há surpresas. Foi sua marca sempre. E novamente na entrevista. Não me refiro a sua reiterada afirmação de que tem paz no coração, de que prega o amor, de que vai sair melhor da prisão, de que segue sendo o “Lulinha paz e amor”. Tudo isso pode ser dito sem problemas, pode ser interpretado apenas como expressão de bom humor, bom coração e paz de espírito.

Mas Lula diz muito mais. Diz que quer sair da prisão e conversar com os generais e saber por que tanto ódio ao PT. Num momento como esse, dizer isso é um sinal claro de conciliação. Alguns podem acreditar que é isso que a esquerda necessita defender. Não é o que penso. A cúpula de um exército que jamais fez autocrítica do golpe de 64, que sempre o definiu como revolução, não atua ingenuamente. Não está aí para ser convencida. Está para proteger os interesses da classe dominante. Uma classe dominante que está empobrecendo um povo já muito pobre.

Quando Lula anuncia querer conversar com a cúpula das Forças Armadas, trata de se postular a um papel que não tem mais lugar para ele: o papel de executivo em chefe do Estado. Lula, como presidente, assumiu este papel e adotou uma estrategia de colaboração de classes. Passou a ter tanta confiança nos líderes da burguesia que se envolveu em perigosas transações com um dos ramos mais corruptos da burguesia nacional, as empreiteiras, empresas que, desde o regime militar, acumularam capital em falcatruas de todo o tipo. A colaboração de classes só interessa estrategicamente para a classe dominante. Eis uma estratégia que, ao fim e a cabo, só prepara derrotas para o povo. Provoca confusão, ilusão, desmoralização. Desmobiliza as bases e corrompe os líderes. Foi o que ocorreu no Brasil. Não precisamos de um caminho já trilhado e que resultou numa importante derrota, pela qual estamos todos pagando com o governo Bolsonaro.

Diante desta nova situação é preciso a mais ampla unidade de ação, aproveitando neste terreno as próprias contradições das classes dominantes, suas divergências internas nas questões relativas ao modo de vida, à cultura, aos direitos civis e liberdades democráticas de modo geral. Uma unidade ampla e uma frente da classe trabalhadora, suas organizações e partidos que reivindicam esta condição, para enfrentar o programa neoliberal, ajuste anti-popular neste caso, contando em sua implementação com a unidade burguesa, malgrado as divergências existentes na política.

Nessa esteira, é preciso aumentar a capacidade associativa de nosso povo, fortalecer a confiança dos trabalhadores em si mesmos, apostar com toda a audácia na juventude e na renovação de uma esquerda digna desse nome.


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Pedro Micussi