Edward Snowden: Trump criou um manual global para atacar aqueles que revelam verdades desconfortáveis
O jornalismo mais essencial de cada época é precisamente aquele que o governo tenta silenciar.
Na última terça-feira (21), promotores federais do Brasil apresentaram acusações criminais contra Glenn Greenwald, jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer e fundador do Intercept Brasil, por suas reportagens explosivas sobre corrupção no alto escalão do governo brasileiro.
A importância pública dessas reportagens foi chocante. Por exemplo, uma das revelações expôs como o conhecido juiz Sergio Moro havia fraudado um julgamento para prender a figura política mais popular do país na véspera da eleição presidencial, abrindo caminho para a vitória de Jair Bolsonaro, que então prontamente recompensou Moro com o controle do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Diante desse contexto, é compreensível por que uma parcela significativa dos políticos brasileiros — incluindo até alguns alinhados com o vergonhoso regime Bolsonaro — optou por ficar lado a lado com organizações de liberdade de imprensa na denúncia dessas acusações absurdas de “cibercrime” como um ato de repressão política.
Por mais ridículas que sejam essas acusações, elas também são perigosas — e não apenas para Greenwald: elas são uma ameaça à liberdade de imprensa em toda parte.
A teoria jurídica usada pelos promotores brasileiros — de que jornalistas que publicam documentos vazados estão envolvidos numa “conspiração” criminosa com as fontes que os fornecem — é praticamente idêntica à que foi usada na acusação, pelo governo Trump, do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, numa nova aplicação da historicamente dúbia Lei de Espionagem [Espionage Act].
Nos dois casos, as acusações foram uma reviravolta sobre uma posição anterior. A polícia federal brasileira declarou, em dezembro, que havia formalmente considerado se Glenn poderia ter participado de um crime e, inequivocamente, apontou que não. Essa admissão bastante extraordinária foi feita depois de uma ordem judicial feita por um ministro do Supremo Tribunal Federal em agosto de 2019 — motivado por demonstrações de agressão pública contra Greenwald por parte de Bolsonaro e seus aliados — que explicitamente barrava a polícia federal de investigar Greenwald. O ministro declarou que isso “constituiria um ato inequívoco de censura”.
Para Assange, as acusações sob a Lei de Espionagem chegaram anos após a mesma teoria ter sido considerada — e rejeitada — pelo ex-presidente Barack Obama. Embora o governo Obama não fosse fã do WikiLeaks, o ex-porta-voz do procurador-geral de Obama, Eric Holder, explicou mais tarde. “O problema que o departamento sempre teve ao investigar Julian Assange é que não há como processá-lo por publicar informações sem que a mesma teoria seja aplicada a jornalistas”, disse o ex-porta-voz do Departamento de Justiça, Matthew Miller. “E se você não vai processar jornalistas por publicar informações sigilosas, como esse departamento não vai, então não há como processar Assange”.
Isso quer dizer que, embora a Casa Branca de Obama tenha usado a Lei de Espionagem para acusar mais fontes de repórteres do que todos os governos anteriores combinados, ela estabeleceu uma distinção a processar diretamente esses repórteres e suas organizações de notícias. Quando eu revelei o escândalo global de vigilância em massa em 2013, eu entendia essas regras não escritas. Enquanto o mesmo Glenn Greenwald pacientemente me ouvia explicar as evidências confidenciais detalhando os crimes do governo, todo mundo na sala sabia — ou pensava que sabia — que, como a fonte original dessas divulgações, as consequências do nosso pequeno projeto de revelação de verdades seriam só minhas.
O governo Trump, entretanto, com seu desdém pela liberdade de imprensa, correspondido apenas pela sua ignorância sobre as leis, não respeitou tais limitações na sua capacidade de processar e perseguir. Sua decisão sem precedentes de indiciar um editor sob a Lei de Espionagem tem implicações profundamente perigosas para jornalistas de segurança nacional em todo o país. Embora eu acredite que Greenwald teria relatado o caso da vigilância em massa mesmo que isso significasse arriscar ser preso, podemos dizer o mesmo de todos os membros da imprensa?
Há outra semelhança nos casos Greenwald e Assange: suas cruzadas implacáveis os tornaram figuras polarizadoras (incluindo, pode-se notar, um ao outro). Uns foram isolados por publicar informações que facções poderosas ocultaram por fins políticos, outros ao expressar opiniões heréticas nas plataformas mais públicas. É provável que autoridades dos dois países acreditassem que as opiniões fraturadas do público sobre suas ideologias pudessem distrair o público do perigo mais amplo que esses processos representam para a imprensa livre.
Ainda assim, as acusações contra cada um deles têm sido amplamente reconhecidas pelo o que são: esforços para impedir as investigações mais agressivas pelos jornalistas mais destemidos, e para abrir a porta a um precedente que logo pode acalmar as penas até dos menos covardes. Nas horas após as acusações serem apresentadas, dezenas de grupos de liberdades civis e editores se apresentaram para denunciá-las e para reprimir o efeito assustador que elas foram intencionalmente projetadas para produzir.
O jornalismo mais essencial de cada época é precisamente aquele que o governo tenta silenciar. Esses processos demonstram que eles estão prontos para impedir a imprensa — se puderem.
Publicado em inglês no Washington Post e traduzido pela Revista Movimento.