Em nota técnica, pesquisadores da UFRGS detalham desmonte do Código Ambiental do RS
Segundo especialistas, mudanças no Cema promovidas no governo Leite contribuem para “eliminar, enfraquecer ou subverter a legislação”
Foto: Divulgação/IGP
Dois pesquisadores do Instituto de Biociências da UFRGS, Gonçalo Ferraz e Fernando Becker, divulgaram uma nota técnica que descreve as alterações implementadas pelo governo de Eduardo Leite (PSDB) no Código Estadual do Meio Ambiente (Cema)..
Após análise de mais de 200 artigos, os professores concluíram que as mudanças no código parecem seguir três princípios: eliminar, enfraquecer ou subverter a legislação. “o novo Cema representa um desmonte da legislação ambiental, cujas implicações para a sociedade em geral são aumento dos problemas socioambientais, a deterioração ambiental e a diminuição de qualidade de vida”.
Conforme o Jornal Já, cada artigo da legislação anterior foi comparado com seu equivalente na nova lei, e as diferenças são avaliadas em relação às suas implicações regulatórias e ambientais.
O Código alterado eliminou sumariamente partes fundamentais do texto original. Desapareceram todos os artigos sobre áreas de uso especial, que, não sendo Unidades de Conservação, precisam ser definidas e protegidas. Também foram suprimidas as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar.
Por fim, o último artigo do novo Cema (art. 233) revoga treze outros, além de um parágrafo único do Código Florestal do Estado, atentando severamente contra os mecanismos de proteção de florestas. O que não é eliminado, é enfraquecido.
Segundo Becker e Ferraz, o novo Cema é particularmente erosivo com o sistema de licenciamento ambiental. A lei brasileira segue uma lógica de licenciamento bastante razoável, em que os empreendimentos passíveis de causar dano ambiental precisam uma licença prévia à instalação, uma licença de instalação e, finalmente, uma licença de operação que é renovada ciclicamente mediante avaliações.
O novo código mantém estas três licenças, mas acrescenta outras três, de definição imprecisa e que flexibilizam perigosamente todo o sistema de licenciamento, apresentando ao empreendedor incentivos contrários à preservação do ambiente do estado.
Chamam-se “Licença Única”, que pode valer pelas três anteriores, “Licença de Operação e Regularização”, para quem começou a operar sem ter obtido licenças prévia e de instalação, e “Licença Ambiental por Compromisso”, a LAC, uma novidade que se obtém por via eletrônica mediante uma “declaração de adesão e compromisso”, diz a reportagem.
O texto modificado não é claro no que se refere a quais atividades podem ser licenciadas por cada licença. Essa definição fica para depois. Será feita por meio de resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema).
A resolução do Consema 372/2018, por exemplo, especifica os tipos de empreendimento e o tipo de licenciamento a que estão sujeitos. Ela pode ser alterada a qualquer momento com modificação da classificação dos empreendimentos.
A subversão da lei vem na linguagem e num sem-fim de pequenos detalhes que, aparentando uma preocupação com a eficiência, na verdade invertem o sentido da lei e comprometem a capacidade do Estado proteger o ambiente e gerenciar o uso de recursos naturais com efetividade.
Por exemplo, o termo “Ministério Público” (MP) aparece três vezes no Código anterior, indicando situações em que alguém tem obrigação de dar ciência de algum procedimento ao MP ou dando ao MP o poder de convocar uma Audiência Pública.
Quantas vezes aparece “Ministério Público” no novo código? Zero.
De forma semelhante, em todos os lugares onde o código original estipulava publicação de alguma decisão no “Diário Oficial do Estado” , o CEMA alterado estipula publicação na “rede mundial de computadores”.
Por fim, numa alteração sutil e reveladora, que passa facilmente despercebida, o termo “Poder Público” foi substituído por “Estado”.
O “Poder Público” é um poder que representa o público e como tal tem de respeitar e proteger o interesse coletivo; aparecia trinta e oito vezes no código anterior. No novo texto é mencionado nove vezes. A troca foi sistemática, exceto nos trechos do CEMA novo que não constavam do Projeto de Lei e foram devolvidos ao texto do código antes da votação em janeiro de 2020.
As omissões, enfraquecimento e modificações de linguagem aqui mencionadas são apenas uma pequena amostra das mais de 150 mudanças introduzidas no Cema.
Além das mudanças, foram eliminados 59 artigos e inseridos 46 novos que flexibilizam a legislação em favor do empreendedor.
Os autores da Nota Técnica reconhecem que o código anterior “não é a oitava maravilha do mundo”, mas foi fruto de décadas de busca e construção de um conjunto de regras para o bom uso de bens coletivos.
“O novo Cema representa um desmonte da legislação ambiental, cujas implicações para a sociedade em geral são aumento dos problemas socioambientais, a deterioração ambiental e a diminuição de qualidade de vida”.
Em termos conceituais e de estratégia, as alterações realizadas implicam uma temerária mudança do princípio de gestão ambiental feita pelo Estado: privilegia-se uma abordagem reativa, na qual o poder público só entra em ação após os problemas ambientais ocorrerem, em desfavor de uma abordagem preventiva, de precaução, em que o poder público procura diminuir o risco de que problemas ambientais venham a ocorrer. “A abordagem preventiva é mais efetiva em cuidar do ambiente, mais barata e menos conflituosa do que uma ênfase predominantemente reativa”.
“A concepção reativa de gestão ambiental também é extremamente arriscada, se considerarmos que diversas mudanças no Código implicam no enfraquecimento dos órgãos ambientais e de sua atuação. Sob um princípio reativo de gestão, a função de fiscalização dos órgãos ambientais deveria ser muito fortalecida, assim como as políticas e ações de recuperação ambiental e reparação de danos. Esperar-se-ia encontrar órgãos bem estruturados para exercer intensa e ampla fiscalização, e programas plenamente funcionais de recuperação ambiental, contando com tecnologia e número de servidores que dessem conta dessas demandas. Seria necessário, também, que as punições fossem exemplares para quem desrespeita as regras. É justamente o contrário do que vem ocorrendo com os órgãos ambientais no RS. O que estamos vendo com o impacto das cheias pode ser tanto percebido como resultado de uma gestão preventiva enfraquecida, como de uma gestão reativa não implementada: como a prevenção contra os eventos extremos tem sido fraca e a abordagem de fiscalização e recuperação é insuficiente, temos um enorme impacto socioambiental, cujo custo de recuperação pode chegar à casa da centena de bilhões de reais (sem contar os prejuízos gerados), e que produz enorme turbulência na vida das pessoas e na economia. As mudanças no Cema reduziram o caráter preventivo da gestão ambiental e, paradoxalmente, não contribuíram para melhorar sua função reativa”.
*Com informações do Jornal Já