Bolsonaro condenado, e agora? Reflexões sobre os limites do judiciário
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Bolsonaro condenado, e agora? Reflexões sobre os limites do judiciário

A condenação de Bolsonaro e o papel do direito a partir de uma perspectiva marxista

Letícia Chagas 17 set 2025, 08:19

Na semana passada, Bolsonaro foi condenado a mais de 27 anos de prisão por tentativa de golpe de estado em 08 de janeiro de 2023. Essa foi uma condenação importantíssima e histórica. O Brasil nunca antes havia responsabilizado aqueles que atacaram a social democracia na tentativa de instaurar ditaduras de cunho fascista.

A esquerda deve reconhecer essa condenação como uma vitória importante. Bolsonaro representa um risco real para o estado democrático de direito. Como socialistas, questionamos esse estado, mas fazemos isso em defesa da classe trabalhadora. O neofascismo não representa qualquer avanço para nossa
classe: ao contrário, é uma tática para manter a dominação da burguesia e perseguir as organizações revolucionárias.

Entretanto, essa é uma vitória com muitas contradições, e refletir sobre elas é mais importante do que nunca se queremos que a luta da classe trabalhadora avance, e farei esse debate a partir da crítica marxista do direito. Considero essa uma tarefa fundamental por dois motivos: (1) o debate sobre a crítica marxista do direito, embora esteja ganhando força nos espaços acadêmicos, ainda é pouco presente entre as organizações de esquerda e (2) a maneira como as organizações analisam o direito influencia diretamente na nossa atuação na luta de classes, como pretendo demonstrar ao final.

A crítica marxista do direito, como o próprio nome diz, é a maneira como a teoria marxista analisa o direito. Há diversas interpretações desse fenômeno entre nós, mas aqui me baseio sobretudo em dois autores: Évgeni Pachukanis, autor do livro “Teoria Geral do Direito e Marxismo”1, e Bernard Edelman, autor de “A legalização da classe operária”2.

Com base neles, a primeira consideração importante a se fazer é que o direito não é burguês apenas em seu conteúdo, mas sim em sua forma, o que significa dizer que o direito é burguês ainda quando estamos diante de leis ou decisões judiciais que em tese fortalecem a luta da classe trabalhadora.

No debate sobre os limites do STF, é comum a ideia de que o STF é burguês porque a maioria dos seus ministros são ligados à direita e ao centrão, porque a maioria deles são brancos, ou coisas do tipo. Todas essas críticas são reais, mas dizem respeito ao conteúdo do STF, e o problema não é só esse. Mesmo se o STF fosse repleto de ministros negros e da periferia, ele ainda assim seria burguês. Se suas decisões fossem favoráveis à classe trabalhadora, garantindo a proteção de direitos trabalhistas (o que não é o caso hoje), ele ainda assim serviria para a manutenção do capitalismo, um sistema de exploração do trabalho.3

Isso acontece porque o direito é uma forma social do modo de produção capitalista. Isso significa dizer que o direito, sob esse modo de produção, adquire uma forma específica – a forma contratual – que não existia antes do capitalismo. No modo de produção escravista colonial, por exemplo, haviam leis e contratos, mas nem todo mundo era considerado sujeito de direito: ao contrário, havia uma diferença enorme entre escravizados e sujeitos, e portanto o direito não tinha a relevância e generalização que tem hoje na sociedade.

No capitalismo, a forma contratual é essencial e decorre da própria forma mercadoria. Aqui, um parênteses: em “O Capital – volume I”, Marx explica que o conceito mais elementar para compreender o capitalismo é o conceito de mercadoria, já que, nesse sistema, a riqueza consiste em uma “coleção de mercadorias”. A produção constante de mercadorias é o que move o capitalismo e o que tem destruído nosso planeta. Isso acontece não porque essas mercadorias todas têm uma utilidade para nossa sobrevivência, mas sim porque é na produção dessas mercadorias que se extrai mais-valor. Quanto mais se produz, mais se explora o trabalho. A grande questão é que essas mercadorias não podem ir ao mercado sozinhas, e dependem das pessoas para irem até o mercado, como afirma Marx, e é aí que entra o direito:

Para que as coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. (grifo meu)4

No capitalismo, todas as pessoas são consideradas sujeitos de direito,
independente das diferenças de classe. E isso é essencial para esse sistema, porque é o que permite a exploração do trabalho. Para que você trabalhe, é necessário que assine um contrato de trabalho, em que troca sua força de trabalho por um salário. No contrato de trabalho, salário e força de trabalho são consideradas equivalentes, o que oculta a extração de mais-valor. No capitalismo, diferente do escravismo, não é necessário usar da violência para se garantir a exploração: o que garante a exploração é a ideologia jurídica, que cria a aparência de que não há exploração alguma. Esse é o objetivo da forma jurídica: garantir a manutenção da exploração da força de trabalho, criando a ideia da troca entre equivalentes. A ideologia jurídica replica essa ideia de troca entre equivalentes em todas as esferas da nossa vida, o que contribui para reproduzir, constantemente, as condições de reprodução desse sistema.

Você pode estar se perguntando agora: “tá, mas o que isso tem haver com o STF?”. Calma, estou chegando lá. A forma jurídica, mesmo quando nos garante “conquistas”, trata de fazer com que nossas conquistas nunca ultrapassem o limite da exploração do trabalho e, portanto, que o capitalismo possa seguir.

Não é à toa que Bolsonaro foi condenado pelas mãos do Supremo Tribunal Federal, em um julgamento televisionado, em que todos assistíamos dentro de nossas casas ou do nosso local de trabalho. Bolsonaro poderia ter sido impeachmado e sua condenação poderia ter acontecido antes se tivéssemos tido manifestações massivas, com o povo na rua exigindo isso. Certamente, isso não aconteceu por muitos motivos. Um deles tem haver com o fato de que a “esquerda” hegemônica hoje – o que inclui partidos como PT, PCdoB e, infelizmente, alguns setores do PSOL – não quiseram apostar nessas mobilizações porque têm medo de perder o controle do povo. Diante desse medo, o mais seguro era garantir uma condenação de Bolsonaro de um modo passivo e controlado pelo judiciário.

O grande problema é que, como já afirmado, as conquistas pelo direito nunca podem ultrapassar os limites da exploração do trabalho, e são conquistas que agem para domesticar a classe trabalhadora, para que a gente não se rebele demais, não exija demais.

Bernard Edelman demonstrou isso ao analisar a luta pelo direito de greve na França. Como se sabe, a greve nem sempre foi legalizada, permitida pelo direito. Para que isso acontecesse, houve muita luta. Mas essa legalização também trouxe consequências: o direito ganhou o poder de dizer qual greve seria permitida ou não. O resultado é que são permitidas as greves que exigem melhores condições de trabalho (como aumento salarial, por exemplo), mas não as greves que lutam por questões consideradas “políticas”. É por isso que Edelman afirma que

Mas o que é menos conhecido é que a classe operária pode ser “desencaminhada”, precisamente por suas próprias “vitórias”, que podem apresentar-se também como um processo de integração ao capital. A “participação” nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há veneno em seus “presentes”.5

Com isso, reafirmo: a condenação de Bolsonaro é uma vitória. Mas estar cientes das limitações dessa vitória é essencial para que nossas organizações revolucionárias possam intervir com mais qualidade sobre a realidade. Isso significa estar cientes de que nossas lutas não podem ser limitadas pela institucionalidade, o que exige acreditar e apostar mais na luta de classes, nas mobilizações de massa, na construção na base, e menos no STF e no Congresso Nacional.

Bolsonaro foi condenado, mas seguimos vivendo uma crise do capitalismo a nível mundial. Seguimos com a retirada de direitos trabalhistas, com diminuição do investimento na educação, com ampliação da uberização do trabalho, com uma piora da crise climática. Será impossível lutarmos contra essa crise se confiarmos mais nas instituições da social democracia do que na luta de classes, já que, no final, essas instituições, como o próprio STF, agem para garantir que as coisas continuem como estão.

Notas

  1. PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017. ↩︎
  2. EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016. ↩︎
  3. Há debates importantes sobre a função dos direitos sociais para a exploração do trabalho, o que significa que mesmo os direitos trabalhistas também têm contradições. Sobre isso, indico os seguintes textos: CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. A invenção da classe trabalhadora brasileira: o direito do trabalho na constituição da forma jurídica no Brasil. Tese. Faculdade de Direito da USP; BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais. São Paulo: Outras Expressões, 2013. ↩︎
  4. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 209. ↩︎
  5. EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 18. ↩︎

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