A verdade sobre a MP 1.303/2025: austeridade vendida como justiça fiscal
Austeridade fiscal e retórica social na medida provisória defendida como “justiça tributária” pela governo
A Medida Provisória nº 1.303/2025 foi apresentada pelo governo como uma ofensiva de “justiça tributária” voltada aos “BBB” — Bets, Bancos e Bilionários. No discurso oficial, tratava-se de um pacote para “taxar os ricos”, “corrigir distorções” e “simplificar o sistema tributário”. Mas basta olhar com atenção o conteúdo e o parecer do relator para perceber que a MP é, na verdade, mais um capítulo da política de austeridade fiscal inaugurada pelo Novo Arcabouço Fiscal (LC 200/2023): um conjunto de medidas que corta direitos, preserva privilégios e consolida a subordinação das políticas sociais à lógica do superávit primário.
1. O que a MP realmente faz
Por trás do marketing tributário, a MP 1.303/2025 altera pilares fundamentais do gasto social. O artigo 65, por exemplo, modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para permitir que transferências monetárias como o programa Pé-de-Meia sejam contabilizadas como “manutenção e desenvolvimento do ensino” (MDE). Na prática, isso rebaixa o piso constitucional da educação: o governo continuará cumprindo formalmente os 18% exigidos pela Constituição, mas com até 11% menos recursos efetivamente aplicados em universidades, escolas, docentes e infraestrutura.
Trata-se de uma manobra contábil típica de períodos de compressão fiscal — uma forma de cumprir o piso no papel enquanto se desmonta o financiamento público da educação na realidade. O mesmo espírito orienta o ataque ao seguro-defeso, cujo pagamento passa a ser limitado à dotação orçamentária anual. Em outras palavras: se faltar dinheiro, o direito simplesmente deixa de existir.
E o modelo Atestmed — que antes permitia até 180 dias de afastamento médico com laudo eletrônico — foi restringido a 30 dias, impondo perícia presencial e criando um funil burocrático para reduzir despesas com o auxílio-doença. Somados, esses cortes e travas podem representar mais de R$ 20 bilhões retirados de direitos sociais — educação, previdência e proteção ambiental — tudo em nome de “ajuste e responsabilidade”.
2. As promessas que evaporaram
Durante a tramitação, parte da base governista tentou vender a MP como um equilíbrio entre “sacrifício e justiça”: argumentava-se que, apesar dos ataques sociais, haveria “compensações” pela tributação de setores privilegiados como bets, fundos imobiliários e bilionários. Era o discurso das compensações morais: “tira-se um pouco da educação, mas cobra-se dos jogos”. Mas até isso ruiu. O parecer do relator derrubou o aumento da alíquota das apostas esportivas, mantendo os 12% originais previstos na Lei nº 13.756/2018.
Ou seja, nem o suposto lado bom sobreviveu: o agronegócio e as casas de apostas foram poupados, e a educação continua sendo sacrificada. O resultado é cristalino — os ricos lutaram para não pagar nem as migalhas, e venceram. Enquanto a educação, a pesca artesanal e o auxílio aos trabalhadores seguem estrangulados, as exceções tributárias e a renda do capital permanecem intocadas.
3. A guerra dentro do sistema financeiro
Um dos pontos mais comentados da MP foi o aumento da CSLL de 9% para 15% para instituições de pagamento e intermediários financeiros, como fintechs e plataformas de serviços digitais. A medida é correta e necessária, pois corrige uma distorção: empresas que funcionam, na prática, como bancos, eram tributadas como indústrias comuns. Mas o governo, ao apresentar a proposta, deturpou seu significado político. A MP não taxa os bancos. Bradesco, Itaú, Santander, Banco do Brasil — todos continuarão pagando os mesmos 20% de sempre. O que ocorre é uma igualação das fintechs aos bancos, e isso não por pressão popular, mas a pedido dos próprios bancos, que há anos reclamam da “concorrência desleal” dessas novas intermediárias.
Por isso nenhum banco reclamou: a medida atende aos grandes bancos, não os enfrenta. É o Estado intervindo para regular a disputa entre duas frações do mesmo capital — os bancos tradicionais e as plataformas digitais —, mas vendendo à opinião pública a imagem de que está “taxando o sistema financeiro”. É uma jogada típica do neoliberalismo progressista: apresentar o reequilíbrio interno do capital como conquista social.
4. Especulação premiada, investimento punido
Outro ponto de destaque é a criação da alíquota única de 17,5% para aplicações financeiras, substituindo a tabela regressiva que variava de 22,5% (curto prazo) a 15% (longo prazo). Na prática, isso significa reduzir o imposto dos especuladores de curtíssimo prazo e aumentar o imposto sobre quem mantém investimentos mais longos. Segundo o próprio mercado financeiro, a mudança estimula emissões de curto prazo e eleva a volatilidade, desincentivando a poupança e o investimento produtivo.
O governo até deve registrar um ganho fiscal inicial — porque aplicações hoje tributadas a 15% passarão a pagar 17,5% —, mas o efeito é passageiro. Com o tempo, o capital se ajusta, a base de longo prazo encolhe e o sistema se torna ainda mais especulativo. O resultado é arrecadação temporária e fragilidade permanente: o oposto de uma política econômica voltada ao desenvolvimento.
5. A lógica por trás do pacote
A MP 1.303/2025 é, em última instância, a expressão perfeita do novo regime fiscal brasileiro. Com o Novo Arcabouço Fiscal, o gasto social passou a ser variável de ajuste. Quando a regra impede o aumento das despesas, o governo busca “equilíbrio” cortando direitos ou reclassificando despesas — como no caso da educação. E quando tenta apresentar algo de “positivo”, o faz a serviço da própria lógica de mercado, como nas disputas entre fintechs e bancos ou na calibragem especulativa do sistema financeiro.
6. Conclusão: o real sentido da MP
No fim, o chamado pacote “BBB” — Bets, Bancos e Bilionários — não passa de austeridade fiscal revestida de retórica social. Fala-se em justiça tributária, mas o que se entrega é ajuste. Taxa-se um setor para abrir espaço contábil e cortar outro. Reduz-se o piso da educação, restringe-se o seguro-defeso, encurta-se o auxílio-doença, enquanto o capital financeiro e o agronegócio seguem blindados. É um projeto de reconfiguração do fundo público: menos Estado social, mais Estado fiscal. A MP 1.303/2025 não combate privilégios — os reorganiza. E ao reorganizá-los, reafirma quem continua mandando: o capital, em todas as suas formas.