Os corpos no realismo stalinista
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Os corpos no realismo stalinista

Leia tradução inédita de capítulo do novo livro do psicanalista inglês Ian Parker

Ian Parker 18 jul 2024, 08:00

Imagem: fran_kie/Shutterstock

Publicamos abaixo a tradução inédita em português do capítulo Bodies (Corpos), presente no novo livro do psicanalista inglês Ian Parker Stalinist Realism and Open Communism: Malignant Mirror or Free Association (Realismo Stalinista e Comunismo Aberto: Espelho Maligno ou Livre Associação), realizada por Bruno Zaidan.

Corpos

O realismo stalinista ama fronteiras fortes, limites rígidos; ama saber o que é cada coisa e quem se encaixa onde. Por isso, não é surpreendente que, assim como Stalin reviveu a ideia da família nuclear na União Soviética para sustentar o regime com milhões de pequenos focos de poder – pequenas ditaduras em cada lar -, também a “família” e relações familiares “normais” sejam obsessão de Vladimir Putin e Xi Jinping.

Enquanto Marxistas revolucionários buscam alianças com todos os movimentos dos oprimidos, como os movimentos lésbico e gay, queer e transgênero, como parte de sua luta por um mundo em que sejamos livres para ser quem queremos ser, o realismo stalinista diz com qual realidade você deve conviver e aceitar, o que não se pode nem ao menos pensar em mudar. Grupos LGBTQI+ têm sido fechados na China porque representam uma ameaça ao regimen. Isso porque não apenas esses grupos eram lugares para falar que escapavam do controle direto do regime, mas porque a liberdade sexual e a experimentação por si só colocam o regime em questão. Uma característica fundamental do realismo stalinista é o controle estatal dos corpos, que nossos corpos não são para nós mesmos experienciarmos, definirmos e vivermos.

Na Rússia, a proibição por lei do que Putin chama de “relações familiares inventadas” – ou seja, a sexualidade gay e lésbica – é acompanhada de violência estatal, perseguição e encarceramento, bem como de ataques físicos por grupos paraestatais religiosos e neofascistas. A situação na Rússia e na China espelha o que há de pior nos ataques homofóbicos contra as comunidades gay e lésbica no Ocidente. O controle dos corpos é uma característica fundamental do realismo stalinista, e o controle ideológico é exercido por meio de conhecimentos pseudocientíficos sobre o que é o desenvolvimento sexual e de gênero ‘normal’ e ‘anormal’.

Trans

O realismo stalinista faz profundas afirmações sobre a natureza da realidade e, principalmente, sobre a suposta realidade de uma diferença biológica essencial entre diferentes tipos de corpos. Ele define a “realidade”, não apenas ao nível da experiência – de quem e como amamos e que tipo de seres pensamos ser – mas também no nível da diferença biológica. Assim como o realismo stalinista quer definir quem é Russo e negar a realidade étnica dos Ucranianos – dizendo a eles que não existem, e Putin culpa Lenin, entre outros, por promover a independência Ucraniana – também esse tipo de “realismo” quer definir quem é Chinês e retarta Tibetanos como relíquias do passado, e Muçulmanos em Xinxiang como resquícios incivilizados.

Assim como as nações e as fronteiras bem-definidas tão amadas pelos antigos Estados Stalinistas – algo que esses Estados aprenderam do colonismo e do imperialismo Ocidental, algo que espelha o realismo capitalista e o controle brutal das populações – também acontece com os corpos sexuados, e com a divisão das pessoas do mundo entre homens “reais” e mulheres “reais”. Aqueles que transitam entre as fronteiras e afirmam sua identidade são tratados como uma ameaça, corpos a serem contidos. E aqueles que transitam entre as categorias tradicionais de gênero são igualmente tratados como uma ameaça, a serem tratados medicamente, corrigidos.

Por isso há tanta hostilidade hoje entre os realistas estalinistas e seus simpatizantes em relação às pessoas trans, àqueles que desejam transicionar de seu gênero designado para outro ou são ‘não-binários’, ou seja, recusam-se a conformar-se às categorias de gênero existentes que impõem estereótipos masculinos e femininos sobre como homens e mulheres devem se comportar e pensar. Pessoas trans são uma ameaça ao realismo estalinista, e aqui há um paradoxo que opõe o realismo estalinista ao realismo capitalista.

Ordem

O realismo capitalista é organizado em torno da ficção da livre escolha, fazendo parecer que você pode consumir o que quiser desde que você possa pagar por isso – é preciso de dinheiro para sobreviver, e para isso você precisa vender sua força de trabalho. Portanto, o capitalismo ocidental consegue incorporar diferentes estilos de vida de gênero e sexualidade, “lavando de rosa” a exploração para fazê-lo aparentar mais livre. Certamente há muita homofobia e transfobia sob o capitalismo – suspeição e ódio por vidas que são diferentes, que não se encaixam – mas as palavras de ordem ideológicas do capitalismo neoliberal são liberdade, flexibilidade e escolha.

Essas palavras de ordem são ficções, e ocultam as vidas das pessoas trans, assim como as de pessoas lésbicas e gays, ao mesmo tempo em que fingem “incluí-las” e dar mais visibilidade a elas como consumidores de um nicho de mercado. Isso faz parte da estrutura do realismo capitalista; parece que tudo é livre e aberto, e que qualquer um que reclame tenha um problema pessoal, uma queixa. O neoliberalismo arranca o suporte do estado ao passo em que amplia o poder policial, e coloca sobre o indivíduo o ônus de ter que lutar para se definir contra um mundo e leis hostis.

O que o realismo stalinista oferece é certeza, lei e ordem. No lugar da aparente anarquia do mercado no Ocidente, nos corações capitalistas do imperialismo, onde as pessoas são obrigadas a se virar sozinhas e cuidar de suas famílias, os estados supostamente “pós-socialistas”, sendo Rússia e China os principais exemplos, oferencem segurança e controle. Com a segurança de dizerem quem você é, inclusive se é realmente um homem ou uma mulher, vem o controle, em que o estado patologiza você se fugir da linha, se fugir da sua sexualidade ou gênero atribuídos.

O realismo stalinista prospera na ordem e promete – no nível de sua intervenção política direta nas vidas das pessoas LGBTQI+, e no nível da fantasia para todos ansioso sobre quem são e o que devem fazer – um mundo ordenado. As palavras de ordem do realismo stalinista são fronteiras, limites e um mundo ordenado. Essa ordem divide o mundo em “campos”, esferas de influência, e divide as populações entre homens e mulheres que devem se encaixar de maneira saudável e feliz nos corpos descritos pelos “cientistas” realistas Stalinistas.

O reallismo stalinista é uma prática política e uma fantasia de ordem – coisas em seus lugares, pessoas em seus territórios nacionais governados por estados fortes, e corpos que têm o tipo certo de desejos por outros tipos de corpos – e assim é, entre outras coisas, uma forma de organização, uma organização do nosso desejo de mudar o mundo. Na realidade, é uma forma de organização que trava a mudança.


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Pedro Micussi