Sobre A Ideologia Alemã
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Sobre A Ideologia Alemã

Reflexão elaborada por ocasião do curso sobre o Jovem Marx realizado pela Casa Marx-Engels, na cidade de Betim

Ruan Debian 2 jun 2025, 18:05

Este texto foi redigido, assim como outros, para o curso sobre o Jovem Marx realizado na Casa Marx-Engels – esta localizada na cidade mineira chamada Betim. Atividade fundamental desempenhada pelo Movimento Esquerda Socialista betinense em comemoração aos 207 anos do camarada Karl Marx.

Introdução

Redigido pelos inseparáveis amigos Karl Marx e Friedrich Engels no final de 1845 e início de 1846, a Ideologia Alemã, assim como Os Manuscritos econômicos-filosóficos, veio à luz em 1932, no Instituto Marx-Engels em Moscou, dirigido pelo grande revolucionário David Riazanov. Nunca é demais rememorar que tanto Riazanov quanto outros grandes revolucionários foram perseguidos e assassinados por Stalin; dessa maneira, dizimadas foram gerações de marxistas cuja contribuição, seja no campo político-militante, seja no campo intelectual, seria incalculável para a construção de um Mundo verdadeiramente justo.

Pois bem, alguns apontamentos históricos são necessários antes de adentrarmos às riquíssimas linhas que constroem a Ideologia Alemã. Primeiramente, cabe lembrarmos que gigantes do marxismo, como Vladmir Lenin, Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci e tantos outros não obtiveram a oportunidade de se debruçarem sobre a obra aqui refletida, pois todos faleceram antes da publicação feita por Riazanov ou estavam presos, como é o caso de Gramsci.

A obra objetivou refutar críticas e mentiras direcionadas a algumas formulações equivocadas sobre o comunismo e a outro livro redigidos anos antes por Marx e Engels, referimos a Sagrada Família. Os autores de calúnias infundadas, Bruno Bauer e Max Stirner, receberam críticas por parte dos pais do socialismo científico que beirou – se não é que transbordou – ao nível da ridicularização. Como é sabido, é apresentado na Ideologia Alemã contrapontos teóricos a outros autores, citemos o materialismo idealista de Feuerbach – este muito respeitado.

Outro ponto de suma importância de assinalarmos é o tato político de Friedrich Engels em não publicar essa obra logo após ao falecimento de Marx. Nas palavras do professor José Paulo Netto:

[…] a social-democracia alemã estava fortemente constrangida pela legislação antissocialista de Bismarck, imposta em 1878 e que perdurou até 1890 – naquelas circunstâncias, a dura crítica ao “socialismo verdadeiro” contida em A Ideologia Alemã certamente dividiria o Partido Social-democrata, no interior do qual existiam segmentos orientados pelo ideário “socialista verdadeiro.” (Netto, 2020, p.580).

Em outras palavras, a social-democracia continha inúmeras correntes políticas de orientações socialistas, comunistas, não revolucionárias etc. Só no campo socialista havia outras tantas tradições; ora, o marxismo, melhor dizendo, no plural: marxismos, somente predominou após a Revolução Russa de 1917, isso quer dizer que o marxismo nem sempre foi hegemônico nos movimentos sociais – e em nossa perspectiva, nos dias de hoje perdeu esse posto. O que nos interessa, de fato, é sublinhar que Engels preferiu manter a unidade da Social-Democracia do que criar uma cisão em seu seio caso publicasse a Ideologia alemã, pois não imbuído por egoísticos interesses, ele entendia a importância de manter a unidade dentro de um partido revolucionário em prol da classe trabalhadora.

Por fim, cabe mencionar que naquele momento ambos os autores estavam tendo um giro político-metodológico da Filosofia à Economia-Política. Nesse sentido, como mesmo apontou Friedrich Engels décadas mais tarde, as bases teóricas no campo da economia ainda eram muito incipientes quando a Ideologia Alemã estava sendo gestada (Netto, 2020). Todavia isso não diminuiu a grandeza da obra, porque é na Ideologia Alemã que se estabelece as bases para o materialismo histórico-dialético e o fundamental conceito da literatura marxiana: Ideologia – e que será nosso foco a partir de agora.

Conceito de Ideologia

Apontamos no texto sobre Os Manuscritos econômicos-filosóficos que a alienação não ocorre somente no mundo exteriorizado ao ser humano, mas em todo processo de produção desse mundo através do trabalho alienado. Este é resultado do trabalho submetido ao capital pelo qual continuamente é produzido: mais trabalho alienado, o próprio trabalhador enquanto mercadoria e as mercadorias no geral cuja síntese é o mundo alienado (Marx, 2009). Dito de outro modo, a alienação é o estranhamento do ser humano perante ao mundo que ele próprio criou. Posto isso, podemos partir da premissa que a ideologia cumpre a função de “naturalizar” o mundo alienado.

O trabalho submetido ao capital, ou seja, trabalho alienado, somente é possível graças a propriedade privada dos meios de produção, que somada a divisão social do trabalho, cria as classes sociais – de forma geral, a dos proprietários (burgueses) e não proprietários (proletariado). Ambas as classes são contraditórias entre si, notem, não são opostas, todavia contraditórias. Algo oposto tranquilamente existe sem seu antagônico; por exemplo, dois times de futebol rivais, se um deixar de existir não significa que o outro desaparecerá. Contudo, somente pode haver senhor de escravo se este existir, pois a eliminação, seja do senhor, ou seja do escravo, implica na eliminação de seu contraditório. Pois bem, somente pode existir burguesia pelo fato de existir proletariado, e vice-versa, mantendo-se em uma relação contraditória de negação; a esse processo de relação contraditória de negação chamamos de dialética.

Impossível será aprofundarmos na explanação teórica sobre o conceito de dialética, tão falado e pessimamente compreendido. O que nos interessa é perceber que da relação contraditória entre a exploração da burguesia sob o proletariado – determinada pela propriedade privada e divisão social do trabalho – emergem conjuntos de ideias sobre os seus posicionamentos no mundo social.

Notem, para Marx e Engels ideologia é tratado dentro do sistema capitalista num tom completamente pejorativo. Como aponta a professora Marilena Chauí, pode-se falar em ideários à esquerda, à direita etc., mas “[…] ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, que esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.” (Chauí, 2025, p.9).

A ocultação da realidade somente é possível, porque “A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens.” (Marx e Engels, 2009, p.44). Entendendo que as ideias da classe dominante de determinada época predominam estruturalmente em determinada época, a “ideologia é uma das formas da práxis social: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados da vida social, constrói abstratamente um sistema de ideias ou representações sobre a realidade” (Chauí, 2025, p.99).

Se a consciência é compreendida no campo social, a ideologia é um dos elementos que vai criar a ilusão de que a exploração de uma classe social sobre a outra sempre existiu e independentemente do que se fazer sempre será assim, ou seja, a ideologia anula a análise histórica da exploração, pois a transfere para o reino natural e até “sobrenatural”. Importante salientar que ilusão aqui não pode ser tomada no quesito de algo inexistente introjetado nas mentes das pessoas por alguma forma misteriosa ou como plano maléfico meticulosamente determinado por um grupo, “Por ilusão devemos entender abstração e inversão” (Chauí, 2025, p.97).

Pois bem, busquemos exemplificar a ilusão (abstração e inversão) através da fraseologia vulgar tão utilizada atualmente, principalmente por mentirosos autointitulados de coach: “eu quero, eu posso, eu consigo”. Caso a pessoa tome como absoluta verdade que basta se esforçar para conseguir tudo que realmente deseja, principalmente no campo financeiro, ela estará acreditando apenas na ideia (abstração) que o esforço é igual ao sucesso, eis aqui a inversão.

Dito de outro modo, a inversão é quando o sujeito toma uma ideia como verdade sem averiguar suas reais possibilidades de efetivação, mantendo-as apenas no campo abstrato.

Outro bom exemplo pelo qual podemos perpassar é a consigna intensamente utilizada pela burguesia, na Revolução Francesa, a qual definitivamente consagrou-lhe ao poder em todas as esferas da vida social: liberdade, igualdade e fraternidade. Com as décadas seguintes da tomada da bastilha, em 1789, percebeu-se que apenas ficou no campo das ideias tal fraseologia, na realidade social o que se consolidou foi o prevalecimento dos privilégios burgueses em detrimento da dignidade humana do povo trabalhador; nada muito diferente, em linhas gerais, do período monárquico (Hobsbawn, 2017).

Por fim, a ideologia cumpre o papel de naturalizar a alienação tornando um ideário particular de uma classe como universal a todas as classes (aqui a dominante, vulgo burguesia). O mundo estranhado pelo próprio trabalhador que o criou sob a subjugação explorativa imposta historicamente pela propriedade privada dos meios de produção e a divisão social do trabalho passa a ser normalizado, porque traz a pseuda ideia “que sempre foi assim e sempre será assim”; dessa maneira, “o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e exploração sejam percebidas em sua realidade concreta.” (Chauí, 2025, p.96).

Conclusão

Muito se poderia abordar sobre a obre A Ideologia Alemã, brilhantemente redigidas por Marx e Engels. Poderíamos discutir a função do Estado que é uma consequência social e histórica que cumpre ímpar papel tanto no manuseio dos negócios da burguesia quanto na harmonização da luta de classes (Marx e Engels, 2010; Mascaro, 2013). Todavia, perante ao que foi supracitado, consideramos suficiente para nossa singela introdução sobre um dos fundamentais conceitos na literatura marxiana, o de ideologia.

Obviamente não tivemos a tola inocência de esgotar o assunto, por isso recomendamos a leitura integral tanto da própria Ideologia Alemã quanto dos livros utilizados como referencial.

Nestas linhas finais, muito nunca será assinalarmos que a prática revolucionária jamais poderá estar dissociada dos estudos revolucionários, pois nós, comunistas, atuamos contra o poder hegemônico e seremos combatidos de todas as formas possíveis; ora, nós lutamos integralmente contra a ideologia burguesa. Estudar, indignar-se e organizar-se para construção do partido revolucionário é sem dúvida árduo para nós comunistas, mas vale a pena! Como apontou o camarada Trotsky no discurso de fundação da IV Internacional: “Sim, nosso partido nos toma por inteiro. Mas, em compensação, nos dá a maior das felicidades, a consciência de participar da construção de um futuro melhor, de levar sobre nossas costas uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão. A fidelidade à causa dos trabalhadores exige-nos a mais alta fidelidade ao nosso partido internacional.” (Trotsky, 2018, p.38).

Referências Bibliográficas

CHAUÍ, Marilena. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2025.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
LEON, Trotsky. Discurso gravado para a Conferencia de fundação da IV Internacional. In: DUTRA, Israel; AGUIAR, Thiago; Aguiar; MEIRA, Adria (Org.). Revista Movimento: crítica, teoria e ação. Porto Alegre: Movimento, 2018
MARX, Karl. Manuscritos Económico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.
RIAZANOV, David. Marx e Engels e a história do movimento operário. São Paulo: Global, 1984.


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Autores

Camila Souza